Embora fitasse seus sábios e serenos olhos nos demais membros do grupo, o que enxergava eram aroeiras, mandacarus, jumentos, bois e casas de farinha. Os versos rimados e até engraçados do folheto cordelista a conduziram do salão comunitário para a roça nordestina da sua infância e juventude.
Meu velho sertão querido
Sertão das minhas lembranças
Sertão das serras cinzentas
Sertão das minhas andanças
Onde o cabôco sofrido
Perde suas esperanças.
- À medida que o senhor foi lendo, um filme foi passando na minha cabeça, engatou Alice. Eu trabalhei numa casa de farinha.
Lá no forno se mexia
Aquela massa branquinha
Ficava mole e gostosa
E eu provava bem quentinha
Eu morro, mas não me esqueço
Duma casa de farinha.
- Eu tocava o jumento depois de prender o caçuá de um lado e do outro da cangalha, sobre a qual ainda botava uma criança. Dentro do caçuá, a gente punha milho e farinha. Criei meus filhos ali. Era sofrido, mas eu gostava.
O caçuá do sertão
É feito pra carregar
Batata doce e mandioca
Pra todo e qualquer lugar
Unido com a cangalha
Pro jumento trabalhar.
O caçuá é amarrado
Na cangalha do jumento
Tem um suado por baixo
Pra não fazer ferimento
Se ferir só um pouquinho
Ele dá coice no vento.
Não foi apenas Alice que se emocionou com suas reminiscências longínquas.
Com um largo e espontâneo sorriso, Odete intercalou explicações para as palavras e idéias que emergiam das poesias, ajudando os não nordestinos. Levantou-se da cadeira de palha para melhor mostrar como seria o trançado de um caçuá feito de cipó. Ela mesmo os tecia.
O caçuá se divide
Em testeira, aro e cambão
Atravessando os cipós
Numa outra direção
Todo feito de cipó
Rasteiro lá do sertão.
O caçuá ele é feito
De cipó de cajarana
Pra fazer um caçuá
Leva quase uma semana
Tem que tecer direitinho
Pra ficar muito bacana.
No caçuá se transporta
Mandioca, milho e batata
Feijão verde do roçado
Lá do cantinho da mata
Jerimum e melancia
E o queijo que vem da nata.
Pouco antes, enquanto ainda caminhávamos pela Vila Réggio, próximos à arvore de jambo, Odete puxou cautelosamente Elza a tempo de impedir que pisasse sobre uma cobra. Com grande precisão e agilidade, Virgínia usou seu pequeno guarda-chuva para dar fim ao animal. Por via das dúvidas, acertou as duas cabeças. Também conhecida como cobra-cega, não é peçonhenta, mas tem uma mordida forte e costuma ser agressiva. Além disso, quando morde, deixa a pessoa cega! Mais tarde, vim a saber que a cobra-de-duas-cabeças ou cobra-cega não é classificada nem como lagarto nem dentro do grupo das serpentes, como já foi anteriormente, mas numa sub-ordem à parte, Amphisbaenia. O curioso incidente ofídico provocou temor, caretas, comentários e risadas. Já valera a pena sair de casa - ou deixar o consultório, no meu caso. Na roda, estimulada pelos cordéis, Virgínia relembrou os tropeiros que tocavam jumentos cobertos com capas de couro e carregados com o milho colhido. A madrinha - a mula mais velha - portava o cincerro. Partia à frente, enfeitada com fitas, e puxava a tropa de cerca de cinquenta animais, em direção à feira. Foi fácil visualizar a tropa. Tudo isso graças aos folhetins que Luciana nos trouxera da Bahia.
Dispostos em roda, todos nós sorrimos, suspiramos e cochichamos com o vizinho ao lado.
Elson também cresceu no sertão nordestino. Tudo aquilo que ouvíamos tinha um significado especial para ele. A vida na roça tinha sido dura, sofrida. As mulheres criavam dez ou doze filhos e nenhum virava bandido ou saia do prumo. Havia grande solidariedade.
As famílias sertanejas
São elas as mais sofredoras
Trabalhando nos roçados
Cultivando as lavouras
Mas às vezes viram vítimas
Das secas devoradoras.
Tudo que vem do sertão
É com muito sofrimento
Limpar roçado e plantar
Depois do desmatamento
E os escravos do sertão
São o boi e o jumento.
Durante cerca de meia hora, deixamos a periferia de Campinas. A viagem pelo sertão baiano estendeu-se ao cearense da menina Leny.
Eu, nascido na cidade de São Paulo, aprendi tanto! Emocionei-me e passei a admirar ainda mais aquelas pessoas que encontro todas as semanas. Com eles, senti a cultura nordestina - tão esculachada por ocasião das eleições que dividiram o país há poucos meses. Sofrida, resistente, rica, viva. Com toda certeza, os discursos xenofóbicos vieram de pessoas ignorantes e que não tiveram a felicidade de conviver com gente como esses amigos que descobri caminhando e lendo.
O Brasil tem seus sotaques
E gírias que só a peste
De Norte a Sul do país
Passando pelo Sudeste*
*Estes versos são do “Dicionário nordestinês” de Izaias Gomes de Assis (Isvá Editora, Parnamirim-RN, agosto de 2014). Todos os demais versos foram tirados de “O caçuar do sertão” de Manuel Silva (Chico Editora, Parnamirim-RN, novembro de 2012).