"La Rose de Java" é um romance escrito, em 1937, pelo escritor Joseph Kessel (1898-1979). Seu primeiro parágrafo encadeia a trama futura com o final do romance “Les temps sauvages" (1975):
"Ayant traversé la mer intérieure du Japon, Le Kita-Maru, qui venait de Vladivostok, jeta l’ancre dans le port de Kobé.” (Kessel, 1979, p. 9)
As duas obras são quase autobiográficas, uma vez que Joseph Kessel, filho de judeus russos, nascido na Argentina - durante estadia de seu pai médico numa colônia agrícola judia naquele país -, alistou-se na aviação francesa ao completar dezoito anos de idade, e, voluntariamente, seguiu com o corpo expedicionário francês para uma missão na Sibéria ao final da Primeira Grande Guerra. Em “Les temps sauvages”, Kessel narra, em primeira pessoa, sua passagem por Vladivostok.
Nesses dois romances, o personagem principal se apaixona por mulheres locais - Lena e Florence. Em ambas as tramas, uma doença sexualmente transmissível - provavelmente sífilis - obstaculiza a aproximação íntima. No caso de Lena, foi suficiente para que o protagonista a abandonasse, poucos dias antes de embarcar para Kobe:
- Qu’à cela me tienne, mon chéri, mon angelot. Je vais te combler. La maladie, je ne suis pas de qui je l’ai reçue. Un de ces gras, lourds, ignobles vieux marchands à longue barbe et à millions de roubles qui prennent leur vrai plaisir à faire de toi une plaie? Ou encore un petit officier de l’étranger? Quelques-uns ont bien voulu se satisfaire de mes os, à défaut des autres grosses vaches. Qu’est-ce que ça peut me faire, dis? Et de repasser le mal au premier venus, dis? (Kessel, 1980, p. 171)
Sua atitude responsável e ética de comunicar ao amante sobre sua doença, indica seus sentimentos verdadeiros em relação a ele.
No caso de Florence, tratava-se de mentira apregoada pelo pai a fim de “proteger" sua filha.
A sífilis é uma doença que desafiou a medicina por cerca de cinco séculos, entre o final do século XV e meados do século XX, quando finalmente um tratamento comprovadamente eficaz foi colocado à disposição da população. Foi durante a década de 1940 que a penicilina passou a ser usada com sucesso para essa doença. Antes disso, a sífilis era um grande desafio do ponto de vista médico e social. Fazia parte do cotidiano das cidades, e era frequente em regiões portuárias nas quais havia grande circulação de pessoas de diferentes países e prostituição. Atualmente, não obstante o grande avanço no tratamento dessa doença, ainda existem muitos casos, diagnosticados ou não, entre a população, alguns graves como quando a infecção é congênita.
A postura de Lena, contando ao homem que a cortejava sobre sua condição de saúde, é louvável e eticamente exemplar. O texto permite também discutir a relação entre pobreza e sífilis e o lugar destinado às mulheres nas sociedades nitidamente patriarcais, com menos possibilidades de sobrevivência, e necessidade, em alguns casos, de prostituir-se, decisão esta hipocritamente naturalizada.
Questões de cunho moral dificultaram o rastreamento, abordagem e cuidado de mulheres prostitutas infectadas. Políticas públicas destinadas ao controle de infecções sexualmente transmissíveis trouxeram algum alento nesse sentido, mas estamos longe de controlar a incidência dessa doença, mormente entre a parcela mais pobre e excluída da sociedade. Trata-se de tema que interessa a gestores da saúde pública, equipes de saúde da família, ginecologistas, pediatras, urologistas, neurologistas, geriatras, dermatologistas, médicos do trabalho, serviços de urgência e assistentes sociais, entre outros.
Em “La Rose de Java”, Florence, ainda em Kobe, antes de embarcar no navio que dá nome ao livro, desloca-se em riquixá - charrete de duas rodas com um banco para passageiros, puxado por um condutor a pé. Tratava-se de um japonês idoso, portador de insuficiência cardíaca:
J´apercevais alors un vieux visage fané, ride, sur lequel perlaient déjà de légères gouttes de sueur, et don’t les yeux cernés de poches étaient ceux d´un cardiaque.
[…]
Pendant un kilomètre, le vieil homme soutint facilement ce train. L´habitude, l´art de ménager son souffle, acquis au cours d'un demi-siècle de labeur, remplaçaient les forces que l´âge et le mal lui avaient dérobées.
Mais, passé le pont de la voie ferrée qui coupait la nouvelle ville de l´ancienne, cette maîtrise ne suffit plus.
O velho condutor japonês foi capaz de percorrer o primeiro quilometro graças à habilidade e experiência de meio século de trabalho como “kourouma”. Contudo, viu-se obrigado a parar diante de subida “pesada”, para tomar fôlego e avaliar se poderia continuar. Estava exausto e seu coração dava sinais de estar no limite de sua capacidade.
Pendant un kilomètre, le vieil homme soutint facilement ce train. L'habitude, l´art de ménager son souffle, acquis au cours d´un demi-siècle de labeur, remplaçaient les forces que l´âge et le mal lui avaient dérobées.
Mais, passé le pont de la voie ferrée qui coupait la nouvelle ville de l´ancienne, cette maîtrise ne suffit plus.
La côte, qui, de là, menait au quartier des consulats était si dure que, instinctivement, je mis pied à terre.
A passageira mostrou-se inconformada com a interrupção da viagem e exigiu, rispidamente, que aquele amarelo, reduzido a animal de carga - "pauvre bête de somme" -, recomeçasse imediatamente e puxar a riquixá. Bem que ele tentou, mas percorreu, com grande esforço, apenas a primeira metade da subida.
Le vieux Japonais soupira profondément, rapprocha les épaules, bomba les reins, attaqua la montée. Je le suivis, mon kourouma près de moi. Chaque pas coûtait au vieil homme une peine de ses mains crispées. Tout son corps était happé en arrière. Je contemplais avec une curiosité malsaine ce combat désespéré. Il dura jusqu´à la mi-côte.
Là, le kourouma à bout de souffle fit halte.
Esta segunda parada deixou Florence ainda mais irritada. Limitava-se a gritar para que ele continuasse. Permaneceu insensível e indiferente ao sofrimento daquele trabalhador japonês, mesmo quando ele lhe dirigiu um olhar de súplica.
- Marche!
Le vieil homme tourna la tête vers elle. Une angoisse indicible labourait son visage ruisselant, l’angoisse de ceux qui sentent une bête funeste attachée à leur coeur exténué.
- Marche! Cria la jeune femme d’une voix stridente.
O esforço final foi demasiado para aquele coração agredido tão violentamente.
Le kourouma se tassa sur lui-même, ainsi qu’un coureur qui prend son élan, puis il voulut d’un seul effort arriver au sommet de la côte. Les premières foulées furent courageuses. Soudain, il vacilla.
La métisse poussa un cri. La voiturette se renversait.
Um medo desesperador tomou conta da jovem mulher, pois a riquixá começava rolar ladeira abaixo. Coube ao velho japonês trocar sua vida pela dela, colocando sua mão entre os aros da roda, bloqueando assim o veículo. Quase que imediatamente, caiu, ele, inerte.
Cependant, les genoux du kourouma pliaient. Un râle sifflant ravageait sa gorge. Ses doigts lâchaient…lâchaient… La voiturette penchait de plus en plus et, déjà, je la sentais s’animer de cette force terrible que prennent les choses lorsqu’elles échappent au pouvoir des hommes. L’équilibre suprême allait se rompre dont la vie de la métisse dépendait.
[…]
Le vieux kourouma, brusquement, abandonna les brancards. J’ai encore dans les oreilles la clameur hystérique de la femme.
Mais, en même temps, le vieil homme, dans un mouvement désespéré, dans un sursaut d’agonisant, passa ses bras entre les rayons d’une roue. Puis sa grosse tête s’imprima, inerte, dans la poussière.
La voiturette, bloquée, versa simplement sur le côté.
Essa trágica passagem do romance é de interesse de, entre outras, pessoas interessadas na saúde do trabalhador. Vários sãos os aspectos merecedores de atenção minuciosa.
O trabalhador envolvido no episódio, e demandado por sua profissão a realizar extenuante esforço físico, era um homem idoso e aparentemente portador de insuficiência cardíaca. Portanto, é bem provável que um um médico atento e preparado para atuar no campo da saúde do trabalhador teria afastado aquele "kouroumaia" de sua atividade até que fosse, pelo menos, investigada e tratada sua cardiopatia, podendo inclusive ser contraindicado seu retorno ao trabalho de forma definitiva. Para isso, caberia ao médico estudar e conhecer os diferentes aspectos da profissão em questão, inclusive relacionados aos riscos à saúde. O cuidado do paciente trabalhador deveria ser interdisciplinar, com contribuição de outros especialistas, como cardiologista, por exemplo, e, de preferência dentro de uma rede de atenção com fluxo e comunicação entre seus diferentes pontos de atenção. Outro aspecto diz respeito ao reconhecimento da profissão para que o trabalhador tivesse direito a benefícios como auxílio doença ou aposentadoria por invalidez. Com certeza, não era esse o caso no Japão de 1919. Tratava-se, muito provavelmente, de trabalho informal, sem proteção social do Estado e à mercê da própria sorte.
Passados mais de cem anos, nos acostumamos a ver, e naturalizar, pessoas puxando carroças ou carrinhos de mão e até de supermercado com objetos recolhidos pela cidade, para serem revendidos. Nem todos esses catadores de recicláveis estão vinculados a cooperativas e amiúde permanecessem na informalidade. Em que medida são conhecidos e acompanhados pelas equipes de saúde da família de forma a terem seus riscos e problemas de saúde avaliados e tratados? Quantos não lutam contra doenças cardíacas, pulmonares, ortopédicas enquanto puxam suas carroças?
Outros aspecto que o trecho em questão nos oferece diz respeito à forma como a cliente passageira se dirigiu ao “kouroumaia”, rebaixando-o à condição de mero animal de carga, sem compadecer-se de sua condição de idoso, extenuado, claramente sem condições de executar aquele trabalho. Uma das razões para tal comportamento, indicada no texto, era o fato de ele ser “amarelo” e pobre. Em outras palavras, preponderou preconceito de raça e classe social na relação entre os dois. Ela se mostrou totalmente indiferente e sem empatia pelo “kouroumaia”. Ele, por sua vez, revelou-se submisso e não foi capaz de agir sem se prejudicar, sendo coagido a continuar o insuportável esforço. É correto dizer que relações desse tipo podem, como no caso apresentado, causar adoecimento de trabalhadores.
Hoje, assim como no enredo de 1919, muitos trabalhadores são vítimas de processos de trabalho e comportamentos desrespeitosos, agressivos, tanto por parte de alguns cientes como de alguns chefes. Não à toa que o principal problema de saúde ocupacional deste século XXI está na esfera psíquica, com possíveis interações de dupla mão com o físico.
Ainda que tenhamos avançado muito no que se refere a legislações que protegem trabalhadores, fica-se com a sensação que as profissões mudam, os personagens são outros, mas a essência dos problemas permanece a mesma.
Referências:
Kessel, Joseph. La Rose de Java. Paris: Gallimard, 1979. p. 23-28.
Kessel, Joseph. Les temps sauvages. Paris: Gallimard, 1980.
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