Não foi possível coordenar o cuidado. Cheguei a essa conclusão - que a Atenção Primária não tem conseguido coordenar a atenção à saúde - enquanto conversava com meu paciente J. Com pouco mais de 70 anos, pele morena, cabelos curtos e brancos, olhos amarelos, roupas largas, cinto apertado para segurar as calças, rendia-se, a cada dia, à doença que o consumia.
Cerca de dois meses e meio antes estivera internado em hospital universitário durante três dias. Foi quando os olhos começaram a amarelar, acompanhando a dor na barriga e fraqueza. Recebera alta com o diagnóstico de pancreatite e retorno agendado para dali a três meses. Portador de hipertensão e diabetes, era bem conhecido da equipe do centro de saúde. Uma ou duas vezes por semana nos visitava a fim de checar a pressão e a glicemia. Mais do que isso, vinha prosear. Conversas sempre agradáveis. Era assim que driblava a solidão própria da viuvez. Sua filha e netos residiam perto, mas mantinham o dia ocupado com o trabalho.
Logo após a alta, nos procurou. A tomografia que trazia consigo revelava imagem hipodensa na topografia da cabeça do pâncreas. Suspeitamos de câncer. A icterícia, dor abdominal, perda de peso e fraqueza combinavam bem com essa grave doença, sendo, em geral, esses, os achados iniciais mais comuns, ainda que associados a um tumor já avançado no momento do diagnóstico. (TEMPERO e BRAND, 2005, p. 1413) Pelo fato de estar situado profundamente na região epigástrica, ser mole e de consistência menor que uma alça duodenal ou da grande curvatura gástrica, o pâncreas não é explorável pelos métodos habituais da propedêutica física. (RAMOS JR, 1986, p. 565) Em alguns casos, a interrupção do fluxo de bile (colestase) pela papila duodenal maior acarreta dilatação do colédoco, do ducto hepático comum e do ducto cístico, ocasionando, além do aumento do fígado e icterícia, dilatação da vesícula, palpável como uma tumefação oval, lisa, regular e indolor sob o rebordo hepático, constituindo o sinal de Courvoisier e Terrier. (SOBOTTA, 1977, p. 119; VALLERY-RADOT et al, 1948, p.571) Da mesma forma, a estenose e obliteração do Wirsung (ducto pancreático) facilitam o desenvolvimento de pancreatite a montante, o que parece haver efetivamente ocorrido, dado o diagnóstico presente no relatório de alta em posse do paciente. (CABANNE e BONENFANT, 1982, p. 886) Dado importante para se suspeitar de doença pancreática é a dor epigástrica com irradiação para os dois hipocôndrios. O exame de imagem de eleição é a tomografia computadorizada helicoidal com cortes finos no pâncreas. (TEMPERO e BRAND, 2005, p.1413) O adenocarcinoma de pâncreas pode se desenvolver em qualquer porção do órgão, mas em 60 % à 80 % dos casos o comprometimento é cefálico, provocando icterícia generalizada por retenção e dilatação da via biliar principal e da vesícula, associados à hepatomegalia. (CABANNE e BONENFANT, 1982, p. 885-886) As icterícias por retenção de origem neoplásica têm por característica comum o desenvolvimento insidioso, indolor e apirético, e evolução progressiva, sem remissão. A causa mais comum é o câncer de cabeça de pâncreas; mais raramente, um câncer de vias biliares, da ampola de Vater ou secundário do fígado. (VALLERY-RADOT et al, 1948, p.571)
Nosso paciente sequer imaginava o que se passava dentro dele.
Depois da internação, passou a nos visitar mais amiúde, por causa da icterícia, cada dia pior, do prurido e da glicemia que teimava em não baixar. O prurido parece ser causado por endorfinas e/ou sais biliares retidos e causa grande incômodo. (SILBERNAGL e LANG, 2006, p. 168) A piora do diabetes decorre da invasão do tecido pancreático pelo tumor, acarretando queda da produção de insulina. Por isso, suas visitas diárias passaram a contar com administração de doses altas desse hormônio.
Os encontros foram se cercando de novos significados. J acreditava numa hepatite; afinal de contas estava muito amarelo. Eu, ao fitar seus olhos, cada dia mais amarelos, “enxergava” o tumor crescendo no seu interior, obstruindo a papila duodenal maior e a ampola hepatopancreática. Enxergava também uma rede com pontos de atenção que pouco ou nada conversam. Nós, da Atenção Primária, tomamos ciência da curta internação no hospital universitário pelo paciente e não acompanhamos a proposta da equipe do hospital para o seguimento da investigação diagnóstica e do tratamento. Mais do que a obstrução da via biliar, o amarelo de seus olhos refletiam uma Rede de Atenção à Saúde (RAS) ainda desarticulada, comprometendo a integralidade do cuidado.
As RAS são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela APS. (BRASIL, 2015, p. 24)
A linha de cuidado do câncer está dentro da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas Não Transmissíveis, assim como aquelas referentes às doenças do aparelho circulatório, diabetes e doenças respiratórias crônicas. O objetivo maior dessa rede é a atenção integral à saúde, por meio da realização de ações e serviços de promoção e proteção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde. (BRASIL, 2015, p. 96) No caso específico do câncer, objetivos importantes são a detecção precoce e o tratamento oportuno, entre outros. Em 2012, foi publicada a Lei n. 12.732 que determinou um prazo de 60 dias, contados a partir do diagnóstico em laudo patológico, para o início do tratamento. No entanto, a demora do diagnóstico anátomo-patológico faz com que pacientes, no momento do diagnóstico, já se apresentem com a doença avançada, comprometendo ou impossibilitando o tratamento curativo. (BRASIL, 2015, p. 111)
Fazem parte da RAS responsável pela linha de cuidado, prevenção e controle do câncer: Atenção Primária à Saúde (APS), Atenção Domiciliar, Atenção Especializada - ambulatorial e hospitalar, Sistemas de Apoio, Regulação, Sistemas Logísticos e Governança (BRASIL, 2015, p. 114).
Para que a RAS seja efetiva, é condição sine qua non que a APS esteja organizada, coordenando o cuidado, responsável pelo fluxo do usuário nessa rede. (BRASIL, 2015, p. 20)
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) atribui à APS a responsabilidade de
Coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e gerir projetos terapêuticos singulares, bem como acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção das RAS[…] e Ordenar as redes: reconhecer as necessidades de saúde da população sob sua responsabilidade, organizando-as em relação aos outros pontos de atenção. (BRASIL, 2012, p. 26)
Em outras palavras, espera-se que a APS coordene e integre a atenção fornecida em algum outro lugar, que organize e racionalize o uso de recursos, tanto básicos como especializados. (ANDRADE et al., 2006, p.787)
A falta de comunicação entre a equipe do hospital universitário e da unidade básica de saúde (UBS) durante a internação do paciente J e a alta não pactuada, sem transferência do cuidado, denota uma RAS fragmentada e desarticulada, justamente quando havia tanto a se conversar. Por exemplo, sobre a ausência do câncer de cabeça de pâncreas - a doença mais provável - como possibilidade diagnóstica no relatório de alta. Sobre a alta antes de concluída a investigação diagnóstica e iniciado o tratamento. Sobre o retorno em somente três meses, aparentemente inadmissível diante da possibilidade de doença tão grave e de rápida evolução - a maioria dos indivíduos acometidos de câncer de pâncreas vêm a falecer entre 6 e 18 meses. Sobre o que, como e quando informar o paciente e seus familiares.
A ausência de oportunidades de encontro e trocas entre os diferentes pontos de atenção compromete a possibilidade de coordenação da atenção e construção conjunta de projetos terapêuticos singulares.
De acordo com Starfield (2002, p. 365-6), “A essência da coordenação é a disponibilidade de informações a respeito de problemas e serviços anteriores”. Portanto, a APS não é capaz de cumprir sua missão de coordenar o cuidado e ordenar as redes se permanecer distante dos demais pontos de atenção, se não tiver acesso à informações produzidas em outros pontos das RAS, se não existirem espaços de trocas, mais eficazes que o tradicional sistema de referência e contra-referência.
Por que atribuir à APS a tarefa de coordenar o cuidado e ordenar as RAS? Para responder a essa pergunta, é preciso recuperar o seu papel no sistema de saúde como um todo.
A APS constitui-se na principal porta de entrada de vários sistemas de saúde do mundo. Trata-se do primeiro nível de contato dos indivíduos com esses sistemas que se valem de unidades de saúde localizadas o mais próximo possível do local onde as pessoas residem e trabalham, garantindo o seguimento longitudinal, continuado, dos indivíduos e famílias. Em geral, o acesso às UBS é mais rápido e fácil do que aos ambulatórios e hospitais. Portanto, as equipes das UBS encontram os pacientes com maior frequência do que aquelas dos outros pontos da RAS, fazendo com que, usualmente, suas equipes conheçam melhor os pacientes, onde e como vivem, seus familiares, medos, angústias, desejos, histórias de vida, o que contribui para um grau de responsabilização elevado em relação ao cuidado.
Outro aspecto relevante é a esperada postura ético-político-clínica em favor do cidadão, em sintonia com a origem de sistemas de atenção organizados a partir da APS. Um dos marcos do movimento de reorganização dos modelos de atenção à saúde foi a conferência organizada pela Organização Mundial da Saúde na cidade de Alma-Ata, no Casaquistão, em 1978. Nesse momento, o desafio era superar o modelo centrado na assistência hospitalar, no médico e no consumo de medicamentos e equipamentos, e, sobretudo, incapaz de melhorar os níveis de saúde ou possibilitar o acesso da maior parte da população aos serviços e tecnologias. A expansão do número de UBS que ocorreu a partir dos anos 1970 no Brasil demonstra a opção do país por um modelo centrado na APS. Isso se deu no bojo de um movimento social pela re-democratização, com grande participação popular, em especial na luta por uma Reforma Sanitária, principalmente nas áreas periféricas de grandes centros urbanos do país, fazendo com que a saúde passasse a ser um direito de cidadania e um dever do Estado, incorporando a participação da comunidade como uma das diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme consta no artigo 198 da Constituição. Essa nova política pública deveria, em teoria, valorizar as opiniões e desejos dos cidadãos e pacientes nos encontros clínicos e gerenciais, visto ser uma conquista popular da luta pela re-democratização.
O modelo centrado na APS, com UBS próximas de onde moram e trabalham os indivíduos, não garante, por si só, o respeito à fala do paciente. A depender do tipo de clínica colocada em prática, corre-se o risco de apenas transportar a biomedicina para mais perto das pessoas, ignorando o protagonismo destas nas propostas e decisões clínicas, em nome de um saber científico quase sempre restrito aos profissionais de saúde. Tem-se a impressão de que, ao invés de avançar no sentido da inclusão da cidadania nas questões clínicas e gerenciais, caminhou-se, em grande medida, rumo à descentralização e fortalecimento da biomedicina, agora mais próxima das famílias. Nem mesmo o incentivo para o exercício de uma clínica centrada na pessoa, em particular na Estratégia de Saúde da Família (ESF), equilibrou adequadamente o jogo de forças entre a “Saúde” prioritariamente biomédica e o protagonismo consciente e real dos indivíduos e famílias. Não obstante a Organização Mundial da Saúde, no seu Relatório Mundial de Saúde de 2008 - “Atenção Primária à Saúde: agora mais do que nunca” - enfatizar a importância do cuidado centrado na pessoa - um método integrado e sistemático para juntar a pessoa e a doença - a participação do paciente na construção de seu projeto terapêutico ainda está aquém do compromisso inicial da APS. (WHO, 2008; McWhinney e FREEMAN, 2010)
Aponto o Método da Roda ou Paidéia, proposto por Campos (2003), como um caminho interessante para nortear o trânsito dos pacientes entre os diferentes pontos de atenção da RAS. Isso porque aposta na co-gestão, na negociação, no direito dos sujeitos de fazer escolhas, conferindo-lhes certo grau de responsabilidade e retirando-os da condição de dominados por consentimento. (BEDRIKOW e CAMPOS, 2015, p. 72-8) Acredito que a APS terá melhores condições de coordenar o cuidado e ordenar as RAS mediante sujeitos-pacientes mais responsáveis, mais empoderados e com maior protagonismo. Em outras palavras, esses sujeitos-pacientes seriam elementos estratégicos para vencer barreiras existentes entre os diferentes pontos de atenção, isto é, superar o que Morin chamou de instinto de propriedade territorial ou “enclausuramento disciplinar onde cada um é proprietário de um estreito território e compensa sua incapacidade para refletir sobre o território dos outros com a proibição rigorosa feita aos outros de penetrarem o seu território”. (MORIN, 1990)
O forte vínculo do Sr. J com a equipe da UBS não deixa dúvidas sobre a pertinência da participação da APS na coordenação do seu cuidado. Infelizmente, diferentes barreiras a mantêm demasiadamente afastada de outros pontos da RAS, sem que um projeto terapêutico singular seja co-construído.
Por ocasião do nosso último encontro, o Sr. J se mostrou ainda mais emagrecido, com olhos e bochechas encovados, expressando um grau de desnutrição avançado, uma vez que a face tende a ser a última parte do corpo a perder sua gordura, conhecida como corpo adiposo da boca ou boule graisseuse de Bichat. Passara a falar em câncer e morte, palavras ausentes de seu vocabulário há pouco mais de um mês. Fica a impressão de que, junto com a perda da gordura facial, murchou também a esperança de qualquer reviravolta na progressão rápida de sua doença. Para nós, profissionais de saúde, a sensação de derrota. Sua filha está ainda mais próxima do pai. Percebe o avanço da doença e o estrago que o tumor - livre de qualquer tratamento - fez no corpo dele. A equipe do centro de saúde a recebe e escuta.
Que este relato sirva para provocar novas discussões no que tange a RAS responsável pela linha de cuidado, prevenção e controle do câncer, aproximando, de fato, a APS dos demais pontos de atenção.
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