domingo, 4 de setembro de 2016

Testículo de Adão

Este episódio começou com uma ação de combate à dengue, realizada por agentes comunitários de saúde. Prosseguiu com um curso de fitoterapia. Terminou numa  atividade de promoção da saúde.
Leny é o nome da agente comunitária de saúde. Dedica-se a visitar pessoas vinculadas ao nosso centro de saúde, procurar e eliminar potenciais criadouros do Aedes aegypti, oferecer seus ouvidos aos mais variados sofrimentos e pedidos, levar as demandas dos pacientes às reuniões da equipe de saúde da família e está à frente do Liang gong e do grupo de caminhada. Há mais de uma década.
Recentemente, mostrava-se um pouco triste, por causa da viagem da mãe que, depois de quase meio século em São Paulo, retornara ao Ceará. O abraço super apertado na irmã, registrado na fotografia tirada em Nova Olinda, transmitiu à filha, que por aqui ficara, a força dos antigos laços familiares, o valor das raízes nordestinas. Sua “jururuzisse” provinha, com certeza, do distanciamento da mãe. Buscava driblar o nostálgico sentimento valendo-se da razão. Sua mãe estava feliz e isso é o que importava. 
O retorno ao nordeste começara muito tempo antes; há cerca de um ano. Juntamente com o médico, Leny tocava o grupo de caminhada das sextas feiras. Durante pouco mais de uma hora, o grupo descobre as ruas dos bairros que circundam a unidade de saúde. Cada semana uma experiência diferente. Foi assim que provaram o guaraná - a fruta mais doce que já botaram na boca. Que viram o mandacaru. A cobra. Os coelhos. Os patos. As galinhas. A leitura de poesias, contos, fábulas, crônicas, piadas. Durante o segundo semestre do ano passado, foram os cordéis. Alguns trazidos por moradores que passavam as férias com suas famílias. Paulatinamente, a cultura nordestina foi reaparecendo em alguns e se imiscuindo nos demais. No caso de Leny, os versos de Patativa adentraram também sua casa e a de sua mãe, em especial nas conversas dominicais. Consequência disso foi a viagem que fizeram ao Cariri Cearense no começo deste ano, depois de quase cinquenta anos. Acredito que foi esse reencontro com seu passado rural, menos complicado, menos tecnológico, menos apressado que, meses depois, levou Dona Maria a desembarcar definitivamente em Nova Olinda e abraçar sua irmã Antonia. Leny ficou aqui, ao lado dos filhos e netos, longe da mãe. Um dia, chorou. Acho que foi quando leu no para-choque de um caminhão que quando a saudade não cabe no peito, ela transborda pelos olhos. 
Ao mosquito transmissor da dengue basta qualquer pequeno reservatório de água. Uma folha, um copinho, uma tampinha, uma bola murcha. O olho treinado da agente de saúde enxerga o criadouro onde por vezes não vemos. De casa em casa, procurando, vasculhando, conversando, orientando. Um dia, enquanto aguardava que o morador da chácara a ser vistoriada abrisse o portão, levantou os olhos e avistou um fruto que até ali desconhecera. Grande, arredondado, com corcovas tal como um dromedário, verde. Retirou o celular do bolso e o fotografou.
Muito tempo depois, durante aula sobre plantas exóticas, como parte do curso de fitoterapia, voltou a ver o fruto. Descobriu, então, que se tratava da Dillenia indica ou maçã-de-elefante ou árvore-do-dinheiro ou árvore-da-pataca ou fruta-cofre ou bolsa-de-pastor ou flor-de-abril ou testículo-de-Adão. Lembrou de onde poderia encontrá-lo e retornou, agora com o grupo de caminhada, ao mesmo local que visitara por ocasião da ação de combate à dengue. O senhor Manoel  convidou o grupo a conhecer sua horta, o pomar, as jabuticabeiras plantadas pelo pai há mais de quarenta anos. 
Manoel, hoje com 81 anos, está casado com Dona Esmeralda há cinquenta e sete,  e faz questão de dizer, com um belo sorriso no rosto, que casaria de novo. Não escapou de meus olhos quando aproximou a esposa de si próprio, num gesto de carinho sincero e cotidiano. Fala de um jeito calmo, pacífico. Impossível resistir à sua generosidade e simpatia. O tom de voz e o sorriso permanente denunciavam a felicidade do anfitrião. Nasceu no interior do estado de São Paulo, à sessenta quilômetros de São José do Rio Preto e trabalhou na roça. Café, arroz, milho. Desde o final da década de sessenta, está em Campinas. Mora com a esposa numa propriedade que lhe permite conservar a paixão pela natureza e pela agricultura. Em pé, esbelto, elegante com o chapéu e a bengala. De joelhos, colhendo alface e azedinha para presentear os visitantes.
Cada um dos membros do nosso grupo de caminhada pisou na horta ou caminhou por entre as árvores do pomar carregando consigo vivências anteriores e sentimentos relacionados às plantas e terra, em geral tão antigos como as próprias infâncias. Se deliciaram provando as jabuticabas e as amoras que mancharam as palmas das mãos e os dedos. Conversaram sobre o gosto das frutas, o cheiro do cravo, da canela, os tons de verde das verduras, a hospitalidade do casal. O neto chegou mais tarde, igualmente atenciosos e sorridente, e também se pôs de joelhos para cortar mais alguns pés de verduras a serem ofertadas a nós.
Uma de nossas convidadas era uma jovem que chegara a Campinas há cerca de um mês e que procurara atendimento em razão de sofrimento mental doloroso e profundo que quase lhe custara a vida. Magra, olhar triste, sem vínculos afetivos outros que a irmã e o cunhado, não poderia seguir em frente apenas com os comprimidos destinados a estabilizar seu humor, dominar seus pensamentos negativos e as vozes incômodas.  Chegou na hora combinada, por volta das oito da manhã, disposta a caminhar conosco. Os primeiros passos acompanharam-se de discurso triste. Falava dos acontecimentos recentes. Da separação. Da internação. Dos filhos que ficaram para trás. Mas, a medida que avançava e interagia com os demais e com as plantas, sob o céu bem azul daquela manhã, seu olhar sossegou. Pelo menos durante aquela hora. O que levou dali, além das verduras, e por quanto tempo, não sei ao certo. Combinou de reencontrar o grupo na segunda, dessa vez para experimentar o movimento vital expressivo. No caminho de volta, recuperou o discurso negativo, sem que enxergasse o senhor ao lado carregando o testículo-de-Adão, que, quando curtido em álcool, ajuda a curar machucaduras. Talvez não da alma. 

Mas caminhar em grupo, contemplar a natureza, colher plantas, comer jabuticabas e amoras, sujar as mãos, parece que ajuda.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Convite


Hoje pela manhã, como de costume, saímos Leny, alguns moradores da região e eu para caminhar. Leny é agente comunitária de saúde responsável pelo bairro onde nos embrenhamos, há cerca de quinze anos. Eu trabalho como médico da estratégia de saúde da família desse território há mais de sete anos.
O bairro Beira Rio margeia um estreito córrego que no passado chegou a ser usado pra lazer de crianças que, hoje, nos acompanham nas caminhadas enquanto seus filhos ocupam os bancos e pátios das escolas e creches da região. Antigamente, barracos ocupavam a margem do regato. Um dia, uma jovem acordou de noite e, ao olhar seu filho no berço, o encontrou enrolado por uma cobra. Ao que parece, o pavor foi tamanho que o grito materno acordou quase todos os vizinhos. Não sei ao certo se foram os bombeiros ou os policiais que levaram a serpente. O nenê deve ter estranhado a companhia, mas nem sequer chorou. Atualmente, está com vinte e dois anos. 
Muitos moradores residem em casas simples ou chácaras onde é comum tropeçarmos com galinhas poedeiras que fornecem parte substancial dos nutrientes diários aos seus donos e ainda ovos que amiúde nos são levados como presente. 
O asfalto que recobre a curta rua principal do bairro foi pago pelos próprios moradores, num esforço de diminuir a poeira ou o barro, a depender se na estação de estiagem ou no verão. As ruas que decidimos percorrer, ao contrário, são de terra, tornando a caminhada mais silenciosa, lenta e prazerosa, conduzindo o grupo a áreas rurais, em geral ocupadas por hortas que dão trabalho a muitos moradores e abastecem feirantes e mercados locais. As diversas tonalidades de verde decorrentes da variada gama de vegetais, em estágios diferentes de desenvolvimento, reluziam sob a água que emanava sem trégua dos canos irrigatórios que não cessavam de girar, refletindo a luz do sol. O céu muito azul, comum no outono de Campinas, e os verdes eram extremamente agradáveis aos nossos olhos. 
Homens exerciam seu ofício com o tronco inclinado tal qual uma abóbada animada. Um trabalho silencioso, interrompido vez por outra por curtas frases. Decidimos nos achegar. Um homem consertava uma cerca. Outro levava nas costas um reservatório de plástico chamado pulverizador costal manual contendo um agrotóxico líquido que era lançado sobre a lavoura à medida que o trabalhador avançava. Os demais plantavam.
Nos ofereceram rúculas, alfaces, alecrins. Responderam nossas perguntas. A produção diária está em torno de cento e cinquenta caixas. Um pé de alface atinge o ponto de ser apanhado após quarenta dias. O terreno é dividido em setores e a semeadura é feita em semanas diferentes em cada um, a fim de que sempre haja o que colher.
Enquanto a conversa fluía, eu pensava nos potenciais riscos à saúde inerentes àquela atividade, desenvolvida há tantos anos na área de cobertura do meu centro de saúde. Será que o pulverizador costal manual é pesado, capaz de causar dor lombar ou dorsal? O produto no seu interior seria muito tóxico? Qual a sua composição? Deveria o trabalhador que pulverizava o agrotóxico usar alguma máscara? Conheceria ele a técnica correta de realizar seu trabalho? E os demais, que trabalhavam com as costas curvadas? Haveria uma maneira mais adequada, do ponto de vista ergonômico, de plantar e colher? As perguntas foram se sucedendo, umas após as outras, numa velocidade espantosa. 
Essas caminhadas das sextas-feiras pela manhã aconteciam há cerca de quatro anos. Eu já havia constatado, de há muito, que não serviam apenas para promover a saúde dos participantes, mas que me permitia olhar para esse território, conversar com moradores fora do consultório, acolher usuários que me acompanhavam ou que cruzavam nosso caminho e até fazer consultas caminhando. Dava lugar também a conversas com a agente de saúde Leny que conhece a região e os que ali vivem ainda mais que eu. Ao ar livre, fora do consultório, trocamos ideias, impressões, opiniões. Nascem projetos coletivos e individuais.
Decidimos retornar à horta em outro momento, observar mais detalhadamente  o processo de trabalho daqueles profissionais, fotografar e mostrar a eles, com o intuito de conversar com eles sobre o trabalho rural e, em especial, sobre educação postural. Leny sugeriu que levássemos nosso grupo de Lian gong para uma sessão na horta.
Distraído, pensando na relevância de ações coletivas dentro da Saúde da Família - para que essa área da medicina não se restrinja à clínica individual ou familiar, como amiúde acontece - só fui mudar de pensamento ao passar por um adulto jovem, sentado num banco, próximo a uma esquina, à sombra. Chamou-me a atenção um ferimento na região supra-orbital, com pontos de sutura, e hematoma ao redor. Fui logo indagando se teria levado um soco, mas não foi essa a causa da lesão e sim uma queda ocorrida há uma semana, estando ele bêbado. Pareceu-me já ser possível distinguir estigmas de doença hepática. Orientei que fosse ao centro de saúde para retirada dos pontos e uma consulta no fim da manhã. Seu pai o acompanharia pois também andava bebendo muito. A vizinha, sentada ao seu lado, escutou a conversa e também se convidou para consultar, desejosa de também se afastar do álcool. Acolhimento, em todo lugar, todo o tempo. Dei-me conta, mais uma vez, da importância de andar pelo território. Descobrir pessoas que tanto precisam de cuidado, mas que, por diversas razões permanecem “escondidas”. 
A prosa foi ainda mais animada no retorno, animados com o que vivenciamos, aprendemos e sonhamos. Nem a cobra brilhante, que nos fez dar um salto para trás, tirou o entusiasmo do grupo. 
Além da assistência na Saúde da Família, tenho me dedicado à formação de médicos, em especial nas áreas de Saúde Coletiva e Saúde da Família. Portanto, quase que involuntariamente, me pus a refletir sobre como teria sido rico para alunos  e residentes participarem dessa caminhada. Determinação social do processo saúde-doença, saúde do trabalhador, saúde ambiental, promoção da saúde, acesso, acolhimento, estratégia de saúde da família, trabalho em equipe, projetos terapêuticos e clínica.
O melhor é saber que não se trata de acontecimento isolado, único. Toda semana tem. E convido quem se interessar a nos acompanhar.


Rubens Bedrikow
Campinas, 6 de maio de 2016.



rubedrikow@yahoo.com.br  
         
 

       

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

As Redes de Atenção à Saúde na Roda: o caso do câncer

Não foi possível coordenar o cuidado. Cheguei a essa conclusão - que a Atenção Primária não tem conseguido coordenar a atenção à saúde - enquanto conversava com meu paciente J. Com pouco mais de 70 anos, pele morena, cabelos curtos e brancos, olhos amarelos, roupas largas, cinto apertado para segurar as calças, rendia-se, a cada dia, à doença que o consumia. 
Cerca de dois meses e meio antes estivera internado em hospital universitário durante três dias. Foi quando os olhos começaram a amarelar, acompanhando a dor na barriga e fraqueza. Recebera alta com o diagnóstico de pancreatite e retorno agendado para dali a três meses. Portador de hipertensão e diabetes, era bem conhecido da equipe do centro de saúde. Uma ou duas vezes por semana nos visitava a fim de checar a pressão e a glicemia. Mais do que isso, vinha prosear. Conversas sempre agradáveis. Era assim que driblava a solidão própria da viuvez. Sua filha e netos residiam perto, mas mantinham o dia ocupado com o trabalho. 
Logo após a alta, nos procurou. A tomografia que trazia consigo revelava imagem hipodensa na topografia da cabeça do pâncreas. Suspeitamos de câncer. A icterícia, dor abdominal, perda de peso e fraqueza combinavam bem com essa grave doença, sendo, em geral, esses, os achados iniciais mais comuns, ainda que associados a um tumor já avançado no momento do diagnóstico. (TEMPERO e BRAND, 2005, p. 1413) Pelo fato de estar situado profundamente na região epigástrica, ser mole e de consistência menor que uma alça duodenal ou da grande curvatura gástrica, o pâncreas não é explorável pelos métodos habituais da propedêutica física. (RAMOS JR, 1986, p. 565) Em alguns casos, a interrupção do fluxo de bile (colestase) pela papila duodenal maior acarreta dilatação do colédoco, do ducto hepático comum e do ducto cístico, ocasionando, além do aumento do fígado e icterícia, dilatação da vesícula, palpável como uma tumefação oval, lisa, regular e indolor sob o rebordo hepático, constituindo o sinal de Courvoisier e Terrier. (SOBOTTA, 1977, p. 119; VALLERY-RADOT et al, 1948, p.571) Da mesma forma, a estenose e obliteração do Wirsung (ducto pancreático) facilitam o desenvolvimento de pancreatite a montante, o que parece haver efetivamente ocorrido, dado o diagnóstico presente no relatório de alta em posse do paciente. (CABANNE e BONENFANT, 1982, p. 886)  Dado importante para se suspeitar de doença pancreática é a dor epigástrica com irradiação para os dois hipocôndrios. O exame de imagem de eleição é a tomografia computadorizada helicoidal com cortes finos no pâncreas. (TEMPERO e BRAND, 2005, p.1413) O adenocarcinoma de pâncreas pode se desenvolver em qualquer porção do órgão, mas em 60 % à 80 % dos casos o comprometimento é cefálico, provocando icterícia generalizada por retenção e dilatação da via biliar principal e da vesícula, associados à hepatomegalia. (CABANNE e BONENFANT, 1982, p. 885-886)  As icterícias por retenção de origem neoplásica têm por característica comum o desenvolvimento insidioso, indolor e apirético, e evolução progressiva, sem remissão. A causa mais comum é o câncer de cabeça de pâncreas; mais raramente, um câncer de vias biliares, da ampola de Vater ou secundário do fígado. (VALLERY-RADOT et al, 1948, p.571) 
Nosso paciente sequer imaginava o que se passava dentro dele.  
Depois da internação, passou a nos visitar mais amiúde, por causa da icterícia, cada dia pior, do prurido e da glicemia que teimava em não baixar. O prurido parece ser causado por endorfinas e/ou sais biliares retidos e causa grande incômodo.  (SILBERNAGL e LANG, 2006, p. 168) A piora do diabetes decorre da invasão do tecido pancreático pelo tumor, acarretando queda da produção de insulina. Por isso, suas visitas diárias passaram a contar com administração de doses altas desse hormônio. 
Os encontros foram se cercando de novos significados. J acreditava numa hepatite; afinal de contas estava muito amarelo. Eu, ao fitar seus olhos, cada dia mais amarelos, “enxergava” o tumor crescendo no seu interior, obstruindo a papila duodenal maior e a ampola hepatopancreática. Enxergava também uma rede com pontos de atenção que pouco ou nada conversam. Nós, da Atenção Primária, tomamos ciência da curta internação no hospital universitário pelo paciente e não acompanhamos a proposta da equipe do hospital para o seguimento da investigação diagnóstica e do tratamento. Mais do que a obstrução da via biliar, o amarelo de seus olhos refletiam uma Rede de Atenção à Saúde (RAS) ainda desarticulada, comprometendo a integralidade do cuidado. 
As RAS são organizações poliárquicas de conjuntos de serviços de saúde, vinculados entre si por uma missão única, por objetivos comuns e por uma ação cooperativa e interdependente, que permitem ofertar uma atenção contínua e integral a determinada população, coordenada pela APS. (BRASIL, 2015, p. 24)
A linha de cuidado do câncer está dentro da Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas Não Transmissíveis, assim como aquelas referentes às doenças do aparelho circulatório, diabetes e doenças respiratórias crônicas. O objetivo maior dessa rede é a atenção integral à saúde, por meio da realização de ações e serviços de promoção e proteção, prevenção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos e manutenção da saúde. (BRASIL, 2015, p. 96) No caso específico do câncer, objetivos importantes são a detecção precoce e o tratamento oportuno, entre outros. Em 2012, foi publicada a Lei n. 12.732 que determinou um prazo de 60 dias, contados a partir do diagnóstico em laudo patológico, para o início do tratamento.  No entanto, a demora do diagnóstico anátomo-patológico faz com que pacientes, no momento do diagnóstico, já se apresentem com a doença avançada, comprometendo ou impossibilitando o tratamento curativo. (BRASIL, 2015, p. 111)
Fazem parte da RAS responsável pela linha de cuidado, prevenção e controle do câncer: Atenção Primária à Saúde (APS), Atenção Domiciliar, Atenção Especializada - ambulatorial e hospitalar, Sistemas de Apoio, Regulação, Sistemas Logísticos e Governança (BRASIL, 2015, p. 114). 
Para que a RAS seja efetiva, é condição sine qua non que a APS esteja organizada, coordenando o cuidado, responsável pelo fluxo do usuário nessa rede. (BRASIL, 2015, p. 20)
A Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) atribui à APS a responsabilidade de 
Coordenar o cuidado: elaborar, acompanhar e gerir projetos terapêuticos singulares, bem como acompanhar e organizar o fluxo dos usuários entre os pontos de atenção das RAS[…] e Ordenar as redes: reconhecer as necessidades de saúde da população sob sua responsabilidade, organizando-as em relação aos outros pontos de atenção. (BRASIL, 2012, p. 26)
Em outras palavras, espera-se que a APS coordene e integre a atenção fornecida em algum outro lugar, que organize e racionalize o uso de recursos, tanto básicos como especializados. (ANDRADE et al., 2006, p.787)
A falta de comunicação entre a equipe do hospital universitário e da unidade básica de saúde (UBS) durante a internação do paciente J e a alta não pactuada, sem transferência do cuidado, denota uma RAS fragmentada e desarticulada, justamente quando havia tanto a se conversar. Por exemplo, sobre a ausência do câncer de cabeça de pâncreas - a doença mais provável - como possibilidade diagnóstica no relatório de alta. Sobre a alta antes de concluída a investigação diagnóstica e iniciado o tratamento. Sobre o retorno em somente três meses, aparentemente inadmissível diante da possibilidade de doença tão grave e de rápida evolução - a maioria dos indivíduos acometidos de câncer de pâncreas vêm a falecer entre 6 e 18 meses. Sobre o que, como e quando informar o paciente e seus familiares. 
A ausência de oportunidades de encontro e trocas entre os diferentes pontos de atenção compromete a possibilidade de coordenação da atenção e construção conjunta de projetos terapêuticos singulares. 
De acordo com Starfield (2002, p. 365-6), “A essência da coordenação é a disponibilidade de informações a respeito de problemas e serviços anteriores”. Portanto, a APS não é capaz de cumprir sua missão de coordenar o cuidado e ordenar as redes se permanecer distante dos demais pontos de atenção, se não tiver acesso à informações produzidas em outros pontos das RAS, se não existirem espaços de trocas, mais eficazes que o tradicional sistema de referência e contra-referência.
Por que atribuir à APS a tarefa de coordenar o cuidado e ordenar as RAS? Para responder a essa pergunta, é preciso recuperar o seu papel no sistema de saúde como um todo. 
A APS constitui-se na principal porta de entrada de vários sistemas de saúde do mundo. Trata-se do primeiro nível de contato dos indivíduos com esses sistemas que se valem de unidades de saúde localizadas o mais próximo possível do local onde as pessoas residem e trabalham, garantindo o seguimento longitudinal, continuado, dos indivíduos e famílias. Em geral, o acesso às UBS é mais rápido e fácil do que aos ambulatórios e hospitais. Portanto, as equipes das UBS encontram os pacientes com maior frequência do que aquelas dos outros pontos da RAS, fazendo com que, usualmente, suas equipes conheçam melhor os pacientes, onde e como vivem, seus familiares, medos, angústias, desejos, histórias de vida, o que contribui para um grau de responsabilização elevado em relação ao cuidado.
Outro aspecto relevante é a esperada postura ético-político-clínica em favor do cidadão, em sintonia com a origem de sistemas de atenção organizados a partir da APS. Um dos marcos do movimento de reorganização dos modelos de atenção à saúde foi a conferência organizada pela Organização Mundial da Saúde na cidade de Alma-Ata, no Casaquistão, em 1978. Nesse momento, o desafio era superar o modelo centrado na assistência hospitalar, no médico e no consumo de medicamentos e equipamentos, e, sobretudo, incapaz de melhorar os níveis de saúde ou possibilitar o acesso da maior parte da população aos serviços e tecnologias. A expansão do número de UBS que ocorreu a partir dos anos 1970 no Brasil demonstra a opção do país por um modelo centrado na APS. Isso se deu no bojo de um movimento social pela re-democratização, com grande participação popular, em especial na luta por uma Reforma Sanitária, principalmente nas áreas periféricas de grandes centros urbanos do país, fazendo com que a saúde passasse a ser um direito de cidadania e um dever do Estado, incorporando a participação da comunidade como uma das diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme consta no artigo 198 da Constituição. Essa nova política pública deveria, em teoria, valorizar as opiniões e desejos dos cidadãos e pacientes nos encontros clínicos e gerenciais, visto ser uma conquista popular da luta pela re-democratização. 
O modelo centrado na APS, com UBS próximas de onde moram e trabalham os indivíduos, não garante, por si só, o respeito à fala do paciente. A depender do tipo de clínica colocada em prática, corre-se o risco de apenas transportar a biomedicina para mais perto das pessoas, ignorando o protagonismo destas nas propostas e decisões clínicas, em nome de um saber científico quase sempre restrito aos profissionais de saúde. Tem-se a impressão de que, ao invés de avançar no sentido da inclusão da cidadania nas questões clínicas e gerenciais, caminhou-se, em grande medida, rumo à descentralização e fortalecimento da biomedicina, agora mais próxima das famílias. Nem mesmo o incentivo para o exercício de uma clínica centrada na pessoa, em particular na Estratégia de Saúde da Família (ESF), equilibrou adequadamente o jogo de forças entre a “Saúde” prioritariamente biomédica e o protagonismo consciente e real dos indivíduos e famílias. Não obstante a Organização Mundial da Saúde, no seu Relatório Mundial de Saúde de 2008 - “Atenção Primária à Saúde: agora mais do que nunca” - enfatizar a importância do cuidado centrado na pessoa - um método integrado e sistemático para juntar a pessoa e a doença - a participação do paciente na construção de seu projeto terapêutico ainda está aquém do compromisso inicial da APS. (WHO, 2008; McWhinney e FREEMAN, 2010) 
Aponto o Método da Roda ou Paidéia, proposto por Campos (2003), como um caminho interessante para nortear o trânsito dos pacientes entre os diferentes pontos de atenção da RAS. Isso porque aposta na co-gestão, na negociação, no direito dos sujeitos de fazer escolhas, conferindo-lhes certo grau de responsabilidade e retirando-os da condição de dominados por consentimento. (BEDRIKOW e CAMPOS, 2015, p. 72-8) Acredito que a APS terá melhores condições  de coordenar o cuidado e ordenar as RAS mediante sujeitos-pacientes mais responsáveis, mais empoderados e com maior protagonismo. Em outras palavras, esses sujeitos-pacientes seriam elementos estratégicos para vencer barreiras existentes entre os diferentes pontos de atenção, isto é, superar o que Morin chamou de instinto de propriedade territorial ou “enclausuramento disciplinar onde cada um é proprietário de um estreito território e compensa sua incapacidade para refletir sobre o território dos outros com a proibição rigorosa feita aos outros de penetrarem o seu território”. (MORIN, 1990)
O forte vínculo do Sr. J com a equipe da UBS não deixa dúvidas sobre a pertinência da participação da APS na coordenação do seu cuidado. Infelizmente, diferentes barreiras a mantêm demasiadamente afastada de outros pontos da RAS, sem que um projeto terapêutico singular seja co-construído. 
Por ocasião do nosso último encontro, o Sr. J se mostrou ainda mais emagrecido,  com olhos e bochechas encovados, expressando um grau de desnutrição avançado, uma vez que a face tende a ser a última parte do corpo a perder sua gordura, conhecida como corpo adiposo da boca ou boule graisseuse de Bichat. Passara a falar em câncer e morte, palavras ausentes de seu vocabulário há pouco mais de um mês. Fica a impressão de que, junto com a perda da gordura facial, murchou também a esperança de qualquer reviravolta na progressão rápida de sua doença. Para nós, profissionais de saúde, a sensação de derrota. Sua filha está ainda mais próxima do pai. Percebe o avanço da doença e o estrago que o tumor - livre de qualquer tratamento - fez no corpo dele. A equipe do centro de saúde a recebe e escuta. 
Que este relato sirva para provocar novas discussões no que tange a RAS responsável pela linha de cuidado, prevenção e controle do câncer, aproximando, de fato, a APS dos demais pontos de atenção.    


Referências bibliográficas

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Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. A Atenção Primária e as Redes de Atenção à Saúde. Brasília: CONASS, 2015. 
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Ramos Jr J. Semiotécnica da observação clínica. São Paulo: Sarvier, 1986.
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