sexta-feira, 6 de maio de 2016

Convite


Hoje pela manhã, como de costume, saímos Leny, alguns moradores da região e eu para caminhar. Leny é agente comunitária de saúde responsável pelo bairro onde nos embrenhamos, há cerca de quinze anos. Eu trabalho como médico da estratégia de saúde da família desse território há mais de sete anos.
O bairro Beira Rio margeia um estreito córrego que no passado chegou a ser usado pra lazer de crianças que, hoje, nos acompanham nas caminhadas enquanto seus filhos ocupam os bancos e pátios das escolas e creches da região. Antigamente, barracos ocupavam a margem do regato. Um dia, uma jovem acordou de noite e, ao olhar seu filho no berço, o encontrou enrolado por uma cobra. Ao que parece, o pavor foi tamanho que o grito materno acordou quase todos os vizinhos. Não sei ao certo se foram os bombeiros ou os policiais que levaram a serpente. O nenê deve ter estranhado a companhia, mas nem sequer chorou. Atualmente, está com vinte e dois anos. 
Muitos moradores residem em casas simples ou chácaras onde é comum tropeçarmos com galinhas poedeiras que fornecem parte substancial dos nutrientes diários aos seus donos e ainda ovos que amiúde nos são levados como presente. 
O asfalto que recobre a curta rua principal do bairro foi pago pelos próprios moradores, num esforço de diminuir a poeira ou o barro, a depender se na estação de estiagem ou no verão. As ruas que decidimos percorrer, ao contrário, são de terra, tornando a caminhada mais silenciosa, lenta e prazerosa, conduzindo o grupo a áreas rurais, em geral ocupadas por hortas que dão trabalho a muitos moradores e abastecem feirantes e mercados locais. As diversas tonalidades de verde decorrentes da variada gama de vegetais, em estágios diferentes de desenvolvimento, reluziam sob a água que emanava sem trégua dos canos irrigatórios que não cessavam de girar, refletindo a luz do sol. O céu muito azul, comum no outono de Campinas, e os verdes eram extremamente agradáveis aos nossos olhos. 
Homens exerciam seu ofício com o tronco inclinado tal qual uma abóbada animada. Um trabalho silencioso, interrompido vez por outra por curtas frases. Decidimos nos achegar. Um homem consertava uma cerca. Outro levava nas costas um reservatório de plástico chamado pulverizador costal manual contendo um agrotóxico líquido que era lançado sobre a lavoura à medida que o trabalhador avançava. Os demais plantavam.
Nos ofereceram rúculas, alfaces, alecrins. Responderam nossas perguntas. A produção diária está em torno de cento e cinquenta caixas. Um pé de alface atinge o ponto de ser apanhado após quarenta dias. O terreno é dividido em setores e a semeadura é feita em semanas diferentes em cada um, a fim de que sempre haja o que colher.
Enquanto a conversa fluía, eu pensava nos potenciais riscos à saúde inerentes àquela atividade, desenvolvida há tantos anos na área de cobertura do meu centro de saúde. Será que o pulverizador costal manual é pesado, capaz de causar dor lombar ou dorsal? O produto no seu interior seria muito tóxico? Qual a sua composição? Deveria o trabalhador que pulverizava o agrotóxico usar alguma máscara? Conheceria ele a técnica correta de realizar seu trabalho? E os demais, que trabalhavam com as costas curvadas? Haveria uma maneira mais adequada, do ponto de vista ergonômico, de plantar e colher? As perguntas foram se sucedendo, umas após as outras, numa velocidade espantosa. 
Essas caminhadas das sextas-feiras pela manhã aconteciam há cerca de quatro anos. Eu já havia constatado, de há muito, que não serviam apenas para promover a saúde dos participantes, mas que me permitia olhar para esse território, conversar com moradores fora do consultório, acolher usuários que me acompanhavam ou que cruzavam nosso caminho e até fazer consultas caminhando. Dava lugar também a conversas com a agente de saúde Leny que conhece a região e os que ali vivem ainda mais que eu. Ao ar livre, fora do consultório, trocamos ideias, impressões, opiniões. Nascem projetos coletivos e individuais.
Decidimos retornar à horta em outro momento, observar mais detalhadamente  o processo de trabalho daqueles profissionais, fotografar e mostrar a eles, com o intuito de conversar com eles sobre o trabalho rural e, em especial, sobre educação postural. Leny sugeriu que levássemos nosso grupo de Lian gong para uma sessão na horta.
Distraído, pensando na relevância de ações coletivas dentro da Saúde da Família - para que essa área da medicina não se restrinja à clínica individual ou familiar, como amiúde acontece - só fui mudar de pensamento ao passar por um adulto jovem, sentado num banco, próximo a uma esquina, à sombra. Chamou-me a atenção um ferimento na região supra-orbital, com pontos de sutura, e hematoma ao redor. Fui logo indagando se teria levado um soco, mas não foi essa a causa da lesão e sim uma queda ocorrida há uma semana, estando ele bêbado. Pareceu-me já ser possível distinguir estigmas de doença hepática. Orientei que fosse ao centro de saúde para retirada dos pontos e uma consulta no fim da manhã. Seu pai o acompanharia pois também andava bebendo muito. A vizinha, sentada ao seu lado, escutou a conversa e também se convidou para consultar, desejosa de também se afastar do álcool. Acolhimento, em todo lugar, todo o tempo. Dei-me conta, mais uma vez, da importância de andar pelo território. Descobrir pessoas que tanto precisam de cuidado, mas que, por diversas razões permanecem “escondidas”. 
A prosa foi ainda mais animada no retorno, animados com o que vivenciamos, aprendemos e sonhamos. Nem a cobra brilhante, que nos fez dar um salto para trás, tirou o entusiasmo do grupo. 
Além da assistência na Saúde da Família, tenho me dedicado à formação de médicos, em especial nas áreas de Saúde Coletiva e Saúde da Família. Portanto, quase que involuntariamente, me pus a refletir sobre como teria sido rico para alunos  e residentes participarem dessa caminhada. Determinação social do processo saúde-doença, saúde do trabalhador, saúde ambiental, promoção da saúde, acesso, acolhimento, estratégia de saúde da família, trabalho em equipe, projetos terapêuticos e clínica.
O melhor é saber que não se trata de acontecimento isolado, único. Toda semana tem. E convido quem se interessar a nos acompanhar.


Rubens Bedrikow
Campinas, 6 de maio de 2016.



rubedrikow@yahoo.com.br