domingo, 4 de setembro de 2016

Testículo de Adão

Este episódio começou com uma ação de combate à dengue, realizada por agentes comunitários de saúde. Prosseguiu com um curso de fitoterapia. Terminou numa  atividade de promoção da saúde.
Leny é o nome da agente comunitária de saúde. Dedica-se a visitar pessoas vinculadas ao nosso centro de saúde, procurar e eliminar potenciais criadouros do Aedes aegypti, oferecer seus ouvidos aos mais variados sofrimentos e pedidos, levar as demandas dos pacientes às reuniões da equipe de saúde da família e está à frente do Liang gong e do grupo de caminhada. Há mais de uma década.
Recentemente, mostrava-se um pouco triste, por causa da viagem da mãe que, depois de quase meio século em São Paulo, retornara ao Ceará. O abraço super apertado na irmã, registrado na fotografia tirada em Nova Olinda, transmitiu à filha, que por aqui ficara, a força dos antigos laços familiares, o valor das raízes nordestinas. Sua “jururuzisse” provinha, com certeza, do distanciamento da mãe. Buscava driblar o nostálgico sentimento valendo-se da razão. Sua mãe estava feliz e isso é o que importava. 
O retorno ao nordeste começara muito tempo antes; há cerca de um ano. Juntamente com o médico, Leny tocava o grupo de caminhada das sextas feiras. Durante pouco mais de uma hora, o grupo descobre as ruas dos bairros que circundam a unidade de saúde. Cada semana uma experiência diferente. Foi assim que provaram o guaraná - a fruta mais doce que já botaram na boca. Que viram o mandacaru. A cobra. Os coelhos. Os patos. As galinhas. A leitura de poesias, contos, fábulas, crônicas, piadas. Durante o segundo semestre do ano passado, foram os cordéis. Alguns trazidos por moradores que passavam as férias com suas famílias. Paulatinamente, a cultura nordestina foi reaparecendo em alguns e se imiscuindo nos demais. No caso de Leny, os versos de Patativa adentraram também sua casa e a de sua mãe, em especial nas conversas dominicais. Consequência disso foi a viagem que fizeram ao Cariri Cearense no começo deste ano, depois de quase cinquenta anos. Acredito que foi esse reencontro com seu passado rural, menos complicado, menos tecnológico, menos apressado que, meses depois, levou Dona Maria a desembarcar definitivamente em Nova Olinda e abraçar sua irmã Antonia. Leny ficou aqui, ao lado dos filhos e netos, longe da mãe. Um dia, chorou. Acho que foi quando leu no para-choque de um caminhão que quando a saudade não cabe no peito, ela transborda pelos olhos. 
Ao mosquito transmissor da dengue basta qualquer pequeno reservatório de água. Uma folha, um copinho, uma tampinha, uma bola murcha. O olho treinado da agente de saúde enxerga o criadouro onde por vezes não vemos. De casa em casa, procurando, vasculhando, conversando, orientando. Um dia, enquanto aguardava que o morador da chácara a ser vistoriada abrisse o portão, levantou os olhos e avistou um fruto que até ali desconhecera. Grande, arredondado, com corcovas tal como um dromedário, verde. Retirou o celular do bolso e o fotografou.
Muito tempo depois, durante aula sobre plantas exóticas, como parte do curso de fitoterapia, voltou a ver o fruto. Descobriu, então, que se tratava da Dillenia indica ou maçã-de-elefante ou árvore-do-dinheiro ou árvore-da-pataca ou fruta-cofre ou bolsa-de-pastor ou flor-de-abril ou testículo-de-Adão. Lembrou de onde poderia encontrá-lo e retornou, agora com o grupo de caminhada, ao mesmo local que visitara por ocasião da ação de combate à dengue. O senhor Manoel  convidou o grupo a conhecer sua horta, o pomar, as jabuticabeiras plantadas pelo pai há mais de quarenta anos. 
Manoel, hoje com 81 anos, está casado com Dona Esmeralda há cinquenta e sete,  e faz questão de dizer, com um belo sorriso no rosto, que casaria de novo. Não escapou de meus olhos quando aproximou a esposa de si próprio, num gesto de carinho sincero e cotidiano. Fala de um jeito calmo, pacífico. Impossível resistir à sua generosidade e simpatia. O tom de voz e o sorriso permanente denunciavam a felicidade do anfitrião. Nasceu no interior do estado de São Paulo, à sessenta quilômetros de São José do Rio Preto e trabalhou na roça. Café, arroz, milho. Desde o final da década de sessenta, está em Campinas. Mora com a esposa numa propriedade que lhe permite conservar a paixão pela natureza e pela agricultura. Em pé, esbelto, elegante com o chapéu e a bengala. De joelhos, colhendo alface e azedinha para presentear os visitantes.
Cada um dos membros do nosso grupo de caminhada pisou na horta ou caminhou por entre as árvores do pomar carregando consigo vivências anteriores e sentimentos relacionados às plantas e terra, em geral tão antigos como as próprias infâncias. Se deliciaram provando as jabuticabas e as amoras que mancharam as palmas das mãos e os dedos. Conversaram sobre o gosto das frutas, o cheiro do cravo, da canela, os tons de verde das verduras, a hospitalidade do casal. O neto chegou mais tarde, igualmente atenciosos e sorridente, e também se pôs de joelhos para cortar mais alguns pés de verduras a serem ofertadas a nós.
Uma de nossas convidadas era uma jovem que chegara a Campinas há cerca de um mês e que procurara atendimento em razão de sofrimento mental doloroso e profundo que quase lhe custara a vida. Magra, olhar triste, sem vínculos afetivos outros que a irmã e o cunhado, não poderia seguir em frente apenas com os comprimidos destinados a estabilizar seu humor, dominar seus pensamentos negativos e as vozes incômodas.  Chegou na hora combinada, por volta das oito da manhã, disposta a caminhar conosco. Os primeiros passos acompanharam-se de discurso triste. Falava dos acontecimentos recentes. Da separação. Da internação. Dos filhos que ficaram para trás. Mas, a medida que avançava e interagia com os demais e com as plantas, sob o céu bem azul daquela manhã, seu olhar sossegou. Pelo menos durante aquela hora. O que levou dali, além das verduras, e por quanto tempo, não sei ao certo. Combinou de reencontrar o grupo na segunda, dessa vez para experimentar o movimento vital expressivo. No caminho de volta, recuperou o discurso negativo, sem que enxergasse o senhor ao lado carregando o testículo-de-Adão, que, quando curtido em álcool, ajuda a curar machucaduras. Talvez não da alma. 

Mas caminhar em grupo, contemplar a natureza, colher plantas, comer jabuticabas e amoras, sujar as mãos, parece que ajuda.