A leitura do livro “Vitalina Cherubim - Neta de escravos em conversas com café quente” ocorreu em dezembro de 2019, mês de seu centenário. O lançamento do livro na Livraria Leitura, em Campinas, aconteceu um pouco antes, em 23 de novembro. Peguei o livro na prateleira e me dirigi ao caixa. Uma vez adquirido meu exemplar, entrei na fila de dedicatórias. Tanto Vitalina, como a jornalista e escritora Maria Alice da Cruz, atraíram uma multidão de leitores que esperaram pacientemente na fila por cerca de uma hora. Conversas animadas entre pessoas que se conheciam na fila e se perguntavam se eram conhecidos de Vitalina ou Maria Alice dividiam o tempo com o folhear dos exemplares. Meu olhar se deteve, num primeiro momento, na capa. Associei o fundo, com diferentes tons de marrom claro, indo ao rosa ou vermelho, à cor da terra das plantações de café no interior paulista. Em destaque, uma sorridente senhora de cabelos branquinhos e finos, usando brinco e vestido branco com bolinhas azuis. Segura uma bonita xícara de porcelana branca enfeitada com desenhos dourados. Uma aliança no quarto dedo da mão esquerda. O terceiro dedo da mão direita aparenta aumento de volume da articulação interfalangeana proximal (nódulo de Bouchard ?) e está montado a cavalo no quarto dedo, e ambos encontram-se levemente desviados no sentido ulnar, apoiando a asa da xícara, o que me fez suspeitar de artrose ou artrite reumatóide. Aos poucos, a fila avançou, até que fui recebido por escritora e homenageada, ambas aparentemente felizes, mesmo depois de algumas horas sentadas e ocupadas em criar dedicatórias singulares. Uma foto com cada futuro leitor da obra.
sábado, 31 de outubro de 2020
Notas sobre Neta de escravos com café quente
Um texto agradável, que percorri com gosto. Convivi Intensamente com Vitalina e sua família durante três dias.
Vitalina me mostrou que a crueldade da escravidão está muito próxima. Ouvia seus avós contarem histórias com sotaque estrangeiro, com erros de português, comuns àqueles que trocam seus países de nascimento pelas terras distantes. No caso, a troca não havia sido voluntária, mas imposta e extremamente sofrida. Viajaram, sem assim o desejar, em navio negreiro. Fome, frio, medo, revolta durante o longo trajeto. O casamento dos avós foi fruto dessa violência contra os negros. A sinhá precisava de uma ama de leite para amamentar seu filho, e escolheu uma jovem negra para cumprir essa tarefa. Fê-la, então, casar-se com um jovem negro. Os filhos que nasciam tinham que se contentar com o anguzinho de fubá, pois o leite materno ia todo para o ventre do filho da sinhá. Essa história triste, Vitalina ouviu da própria avó, com seu jeito engraçado de falar o português, já que sua língua natal deveria ser esquecida. A neta desse casal que cruzou o Atlântico num navio negreiro estava ali, diante de mim, colocando seu nome nos exemplares que se sucediam sobre a mesa na tarde de autógrafos.
Seu pai Benedito Alexandre veio ao mundo em 1871, na vigência da Lei do Ventre Livre. O cinismo da pretensa liberdade está presente no relato de Maria Alice, neta de Vitalina: “Nas fazendas tinha os imigrantes, que também sofreram, mas pegavam caminhos mais fáceis e os negros libertos ficavam com pedaços inférteis e não produziam alimento. Isso mostra por que demoramos mais em nossas conquistas”. As terras de pior qualidade para a agricultura exigiram muito mais esforço, perseverança e resiliência. Benedito e sua esposa Maria Luiza trocaram de fazenda algumas vezes, visando o sustento dos dez filhos. As caminhadas duravam muitas horas, entre uma propriedade e outra. Passaram necessidade. Muitas vezes. Uma realidade tão próxima, pois está a apenas uma geração da senhora que distribuía autógrafos na Livraria Leitura do Shopping Dom Pedro, em Campinas, mas também tão distante da realidade da multidão que aguardava na fila enquanto escutava um talentoso homem negro tocar violão e cantar MPB, e de todos aqueles que transitavam pelo imenso centro comercial.
As pessoas que guardam na memória a infância no campo, a jornada que começava às 4:30, o almoço das 8:00 e o café gelado das 12:00, ficam divididas entre sentimentos de nostalgia e de sofrimento, entre lembranças de momentos alegres em família e sofrimento por causa da fome. A mãe de Vitalina era capaz de se satisfazer com apenas uma pedra de sal para doar tudo aos filhos famintos. Tão distante das praças de alimentação dos shoppings, quase sempre abarrotadas de pessoas gulosas e nem um pouco famintas, que desperdiçam excessos de comida industrializada.
A irmã Antônia foi vítima do árduo trabalho no campo. Foi vítima também da Psiquiatria da década de 1930. Carpindo no arrozal, dia após dia, de repente, pôs-se a chorar e esbravejar. Era, com certeza, demais para ela. O pai, desesperado, sem saber como lidar com os sintomas do sofrimento da filha, buscou ajuda em vários lugares. Os médicos, achando que sabiam lidar com o sofrimento da filha dele, a internaram durante mais de 40 anos. Proibiram-a de gritar e chorar. Silenciaram seu sofrimento. A reforma psiquiátrica não chegaria a tempo de resgatá-la.
A irmã Francisca também sumiu, mas em razão da fé. Nunca mais se soube de seu paradeiro.
Vitalina e sua irmã Alice, já na década de 1950, ousaram deixar o campo e enfrentar a cidade. Campinas crescia rapidamente e havia emprego para jovens negras. Quase sempre como domésticas. Foi assim que conseguiram seguir adiante, criar seus próprios filhos, construir suas casas e montar seus lares.
Grande companheira de Vitalina, sobre uma mesa, durante várias horas por dia. Não um computador, mas uma máquina de costura de 20 "merréis". Dela, nasceram roupas para familiares próximos. Calças boca de sino davam mais trabalho.
Tanta história nas conversas com café quente. O mesmo café paulista chamado de ouro verde. O mesmo que enriqueceu a elite paulista graças à escravos negros como seus avós. Mas que agora significa boa prosa, com amigos.
Como terá sido para Maria Alice da Cruz resgatar essa história que pode ser muito parecida com a de sua avó? Que pensamentos emergiram? Que sentimentos? A história da família de Vitalina deve ser um pouco a da família de Maria Alice. E é um pouco a história do nosso país. A verdadeira. Não aquela dos livros de história.
Terminada a leitura, restou a vontade de saber mais. De saber o que Vitalina pensa das cotas raciais, das falas do ex-presidente da Fundação Palmares, das atividades do 20 de novembro. E tantas outras perguntas que pedem uma boa prosa.
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