sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Vacinação obrigatória: vale a pena?

 



Dentre as várias polêmicas que a pandemia de Covid-19 gerou no Brasil, muitas dizem respeito à vacinação e abrangem questões como qual vacina o país deveria adotar, quais grupos seriam considerados prioritários para receber as primeiras doses e se a vacinação deveria ser obrigatória ou não. Neste último caso, a questão foi levada para apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) cujo Plenário decidiu


que o Estado pode determinar aos cidadãos que se submetam, compulsoriamente, à vacinação contra a Covid-19, prevista na Lei 13.979/2020. De acordo com a decisão, o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força. (STF, 2020) 


Imposição legal acompanhada de medidas restritivas ou punições, justificadas pela primazia do direito coletivo em detrimento de direitos individuais, não é novidade nem é recente na história da Saúde Pública brasileira, em particular no caso da vacinação. Exemplo largamente conhecido é o da obrigatoriedade da vacinação contra a varíola humana no início do século XX e que desencadeou resposta contundente da população no episódio que ficou conhecido como Revolta da Vacina, em 1904. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62) É coerente supor que ao se revisitar a história da relação entre autoridades e população em torno da vacinação antivariólica desde o final do século XVIII possamos analisar melhor a decisão do STF e avaliar as chances de sucesso da mesma. Interessa saber em que medida decisões como essa do STF contribuíram para a erradicação da varíola no planeta, em 1980, e poderiam fazer o mesmo com a Covid-19.  

A varíola, moléstia infecciosa aguda, determinada por um vírus específico, constituiu um dos maiores flagelos da humanidade antes da descoberta da vacina. (Gebara, 1957, p. 72) O período de incubação durava de 10 a 15 dias e suas manifestações clínicas eram 


febre alta, quebrantamento geral, cefaléia, lombalgia, inapetência, náuseas, vômitos e exantema inicial com duração de 1 a 2 dias. A partir do terceiro dia, surgem as máculas de côr vermelho-pálida, que se estendem pelo corpo todo. Essas máculas duram em média um dia e se transformam em pápulas. Estas, após dois dias, isto é, no 7˚ dia, evoluem para a fase de vesículas, cheias de um líquido claro, a “linfa”.  Apresentam uma depressão na sua parte central, que é a umbilicação da vesícula. Em tôrno da vesícula aparece um halo avermelhado. O líqüido do interior das vesículas vai se tornando cada vez mais turvo, assumindo um aspecto purulento, constituindo as pústulas. Na parte central da pústula a umbilicação se acentua rapidamente. A partir do 11˚ ou 12˚ dia, o pus do interior das pústulas começa a se reabsorver, estas tornam-se cada vez mais achatadas e inicia-se a fase de dessecação, aparecendo então as crôstas, que vão caindo lentamente. As lesões da varíola apresentam-se sempre no mesmo estádio evolutivo, isto é, são uniformes, principalmente se considerarmos determinado segmento do corpo. São centrífugas, atingindo de preferência a face e as extremidades, podendo aparecer também nas mãos. (Gebara, 1957, p. 72) 


Em razão de seu grande poder de contágio e elevada mortalidade foi responsável, isoladamente, por mais mortes do que todas as demais doenças reunidas durante os três primeiros séculos do Brasil colônia. A primeira epidemia ocorreu na Bahia em 1563 e avançou por todo o território colonizado. (Santos Filho, 1977, p. 157-158) As principais vítimas foram os índios cujas mortes chegaram a centenas de milhares, muitas delas provocadas intencionalmente pelos colonizadores com o intuito de exterminá-los de forma rápida e fácil. “Roupas e pertences de bexiguentos eram introduzidos nos aldeamentos ameríndios para obtenção do contágio." (Santos Filho, 1977, p. 156) Ao que parece, a varíola foi introduzida no Brasil pelos navios negreiros e, provavelmente, repetidos surtos foram decorrentes da entrada continuada de pessoas contaminadas, na colônia. (Sigaud  JFX, 2009, p. 150) Auguste de Saint-Hilaire, ao viajar à Província de São Paulo entre 1816 e 1822, observou que São Paulo recebia, "constantemente, reforços africanos”, numa alusão a esse fluxo migratório contínuo que caracterizou grande parte do século XIX. (Saint-Hilaire, 1940, p. 89). Em outras palavras, graças ao crescimento da produção e exportação cafeeira, a doença foi introduzida repetidas vezes no território brasileiro por negros escravos e europeus. 

Uma das primeiras medidas adotadas com o objetivo de impedir a entrada de viajantes contaminados foi a quarentena nos portos durante alguns dias. Contudo, tal medida não surtiu o efeito desejado, pois navios negreiros atracavam clandestinamente em pequenas enseadas não fiscalizadas pelas autoridades. (Santos Filho, 1977, p. 160) Outras providências foram sendo colocadas em prática em diferentes vilas e cidades a fim de conter os estragos da varíola: quarentena para todos os negros recém-chegados da África, isolamento de doentes em casas afastadas do centro, multa e prisão de quem abrigasse ou escondesse em sua casa pessoa enferma de varíola, principalmente negra, e determinação de que apenas pessoas que já tivessem tido a doença "poderiam cuidar e tratar dos bexiguentos”. (Santos Filho, 1977, p. 160, 270) Não obstante tamanho esforço, os surtos epidêmicos se sucediam, muitas vidas eram ceifadas e a economia sofria. Foi nesse contexto que a vacina de Edward Jenner chegou, no final do século XVIII, trazendo, enfim, esperança de controle do quadro sanitário variólico.  

É interessante mencionar experiência isolada e anterior ao trabalho de Jenner realizada por um frade carmelita, por volta de 1730, no Pará. O religioso havia observado que doentes recuperados da varíola dificilmente voltavam a contrair a doença e teria, então, decidido inocular intencionalmente o pus das pústulas em pessoas sãs com o objetivo de protegê-las da doença. Efetivamente, esses indivíduos não adoeceram ou apresentaram apenas uma forma branda da doença. Tal informação consta no livro Relation Abrégée d’un voyage fait dans l’intérieur de l’Amérique Méridionale depuis la Côte de la Mer du Sud, jusqu’aux Côtes du Brésil, de Charles Marie de La Condamine, publicado em Paris, em 1745. Portanto, o frade carmelita teria empregado o método de Jenner mais de 60 anos antes do cientista inglês. (Santos Filho, 1977, p. 33, 161, 270)

Jenner nasceu em 1749, em Berkeley, região de Gloucestershire, Inglaterra, onde era frequente o gado adoecer de cowpox, doença semelhante à varíola humana (smallpox), caracterizada por vesículas e pústulas no úbere. As pessoas que ordenhavam as vacas desenvolviam lesões semelhantes nas mãos, mas que desapareciam espontaneamente. A população local sabia que essas pessoas ficavam protegidas da varíola humana. Certa vez, enquanto estagiava com o reputado médico Ludlow, em Sodbury, Jenner ouviu uma paciente dizer que não poderia ter smallpox, pois já tivera cowpox. “Esta frase ficou retida em sua memória e foi o leitmotiv de todas as suas observações em anos posteriores.” (Rezende, 2009, p.228-229) Suas observações prosseguiram por cerca de 20 anos até que, em 1796, colheu a linfa de lesões da mão direita de Sara Neles e inoculou na pele do braço de Jacobo Phipps, um menino de 8 anos. Após 6 semanas, inoculou o pus da varíola humana no menino, que não adquiriu a doença. Foi assim que surgiu a vacina antivariólica.

No início, houve muita resistência e crítica ao método de Jenner que previa a inoculação no ser humano de germe responsável por doença animal. “Apesar disso, a vacinação jenneriana difundiu-se por todo o mundo. Muito contribuiu para a sua credibilidade a decisão de Napoleão Bonaparte, que mandou vacinar o exército francês e promulgou um decreto a favor do novo método.” (Rezende, 2009, p.230)

Após o anúncio internacional da vacinação de Jenner, vários países adotaram o procedimento, inclusive o governo português que recomendou providências aos governadores das capitanias brasileiras. A primeira vacinação antivariólica na colônia ocorreu em 1798 no Rio de Janeiro. 

Aqui também, o procedimento enfrentou grande resistência da população e as autoridades tiveram que adotar medidas legais que obrigassem as pessoas a se vacinar. Em 1805, governadores de algumas capitanias tornaram obrigatória a vacinação. O de São Paulo, Antônio José de Franca e Horta, ordenou aos capitães-mores das vilas que reunissem no edifício da Câmara, ou da Matriz, os chefes de família, com todos os parentes, agregados e escravos, para se deixarem vacinar. Os desobedientes seriam multados e presos à ordem do governador, obtendo a liberdade apenas após a inoculação, na cadeia. Havia pesadas multas para os responsáveis que não vacinassem as crianças. Em 1846, um decreto tornou obrigatória a vacinação em todo o império. Ele se acompanhou de um Regulamento que determinava que “todas as pessoas residentes no Império serão obrigadas a vacinar-se, qualquer que seja a sua idade, sexo, estado e condição. Excetuam-se somente os que mostrarem ter tido vacina regular ou bexigas verdadeiras”. Ainda assim, o povo tudo fez para escapar da vacinação.  (Rezende, 2009; Santos Filho, 1977) A eficácia de medidas impositivas e/ou punitivas foi baixa se considerarmos que o país não se livrou dos surtos epidêmicos. Tanto é assim que a doença permanecia como grande desafio a ser debelado, ao lado da febre amarela e peste, quando Oswaldo Cruz foi nomeado para a Diretoria Geral de Saúde Pública, em 23 de março de 1903. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 33; Fávero, 1981, p. 228)  

A maneira como a população, imprensa e políticos têm reagido às sucessivas providências dos governos federal e estaduais no sentido de debelar a pandemia de Covid-19 pode ser melhor entendida a partir da análise dos fatos que cercaram a atuação de Oswaldo Cruz no início do século XX. Nesse sentido, parece crucial resgatar elementos de sua biografia.

Oswaldo Cruz nasceu a 5 de agosto de 1872 em São Luiz do Paraitinga-SP, primogênito do médico Bento Gonçalves Cruz e de Amália Taborda Bulhões Cruz. Aos cinco anos de idade, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e aos quatorze ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Formou-se em 1892 após defender a tese de doutoramento intitulada “A veiculação microbiana pelas águas”. Durante mais de dois anos estagiou no Instituto Pasteur em Paris, onde especializou-se em microbiologia e soroterapia. De volta ao Brasil, em 1899, reassumiu suas atividades na Policlínica Geral do Rio de Janeiro e no ambulatório da Fábrica de Tecidos Corcovado, sendo, em seguida, convidado a participar do combate à peste bubônica em Santos. Disso resultou a criação do Instituto Soroterápico do Estado de São Paulo (mais tarde Instituto Butantan) e do Instituto Soroterápico Federal (de Manguinhos), do qual Oswaldo Cruz assumiu a diretoria técnica e, a partir de 1902, a diretoria geral. Em março de 1903,  passou a ocupar a direção do Serviço de Saúde Federal ou Diretoria Geral de Saúde Pública, com o importante respaldo do presidente Rodrigues Alves. Nesse cargo, coordenou as ações de limpeza urbana - destruição de focos de larvas, limpeza de calhas, telhados, ralos, tinas, caixas d’água, tanques e sarjetas, e retirada de lixo, necessárias para o controle da epidemia de febre amarela. Concomitantemente, desencadeou uma verdadeira caça aos ratos, hospedeiros de pulgas que transmitem a peste bubônica através de suas picadas, com a colaboração dos cidadãos, que recebiam recompensa em dinheiro cada vez que entregassem roedores. Essa ação, associada ao uso do soro antipestoso, foi coroada de rápido sucesso. Os resultados positivos alcançados na luta contra a febre amarela e a peste lhe trouxeram prestígio e segurança para impor medidas contra a varíola, impopulares e criticadas por grupos políticos e científicos, como o projeto de lei que tornou obrigatória a vacinação. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 9-11, 22, 24-25, 56; Fávero, 1981, p. 219, 228, 231-234; Lacaz, 1963, p. 30)

Houve forte reação contrária à obrigatoriedade, tanto por parte de políticos como de jornalistas, cartunistas, cientistas e população em geral. Entre os cientistas encontrava-se a Diretoria do Apostolado Positivista. (Fávero, 1981, p. 233) Se no início do século XX grupos contrários à vacinação falavam em produção de vacina a partir de ratos com peste, do risco de transmissão de sífilis ou tuberculose e até de morte, atualmente ouve-se falar de produção com fetos abortados, risco de mudança do código genético, surgimento de doenças como autismo, presença de chips implantados para controle populacional e possibilidade de centenas de milhares de mortes associadas à vacina. (Dias, 2020)

Poucos dias após a aprovação da obrigatoriedade pelo Congresso Nacional, foi criada uma Liga Contra a Vacina Obrigatória que, no entanto, não chegou a atuar. Adversários de Oswaldo Cruz chegaram a acusar os profissionais de saúde de desrespeitarem as mulheres ao vaciná-las em região muito alta da coxa. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 58; Fávero, 1981, p. 233) No livro "Oswaldo Cruz: o médico do Brasil”, publicado em 2003 como produto do Projeto Memória e fruto da parceria entre a Fundação Oswaldo Cruz, Fundação Odebrecht e Fundação Banco do Brasil, é possível encontrar vasta produção de charges, desenhos de humor, versos sarcáticos publicados em revistas e jornais de grande circulação na época. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003) Nessa mesma obra está reproduzido trecho do discurso de Rui Barbosa no Senado: 


Não tem nome na categoria dos crimes do poder, a temeridade, a violência, a tirania, a que ele se aventura, expondo-se, voluntariamente, obstinadamente, a me envenenar, com a introdução, no meu sangue, de um vírus, em cuja influência existem os mais fundados receios de que seja um condutor de moléstia, ou da morte. (Fundação Oswaldo Cruz, 2003)


A insatisfação popular adquiriu tamanha dimensão que a 10 de novembro de 1904 as ruas do centro da cidade foram tomadas por manifestantes que depredaram postes, arandelas, bondes, construíram barricadas e enfrentaram a polícia. A Revolta da Vacina durou cerca uma semana e, nesse período, houve tentativa de deposição do governo de Rodrigues Alves por aproximadamente 200 cadetes da Escola Militar que, “bem armados e municiados, sob as ordens de um general, se insurgiram e marcharam contra as forças legais”. Sugeriu-se a saída de Oswaldo Cruz como forma de encerrar a revolta. Ele chegou a apresentar sua demissão, mas foi recusada pelo presidente. Tropas de outros estados acorreram para conter o movimento que foi finalmente controlado. “A obrigatoriedade da vacina, contudo, foi revogada”. (Fávero, 1981, p. 233; Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62) 

Sem que se entre no mérito da pertinência da decisão legal a favor da obrigatoriedade da vacinação antivariólica, aprovada a 31 de outubro de 1904 e revogada pouco tempo depois, pode-se concluir pela sua ineficácia no sentido de alcançar vacinação em massa. Muito pelo contrário, o que se viu foi ampla resistência que resultou grave surto de varíola em 1908, com mais de 9.000 vítimas. (Fávero, 1981, p. 233; Fundação Oswaldo Cruz, 2003, p. 62)

Olavo Bilac, em crônica publicada no Correio Paulistano a 10 de abril de 1908, chama a atenção para a mudança de posicionamento da população carioca quatro anos depois da Revolta da Vacina:


Por causa da vacina de Jenner, já esta boa cidade de Mem de Sá ficou às escuras e ensangüentada, durante quase uma semana; houve uma tentativa de deposição do presidente da República; revoltou-se a Escola Militar; morreu um general; e a Companhia de Gás teve, em lampiões quebrados, um prejuízo superior a quatrocentos contos de réis…

Vede agora o outro lado do quadro. A vacinação é moda. Vacinam-se duzentas pessoas por dia. O Instituto Vacínico e os postos sanitários municipais esgotam quotidianamente provisões consideráveis de linfa.[…]

Ora, viva Deus!, nesta época em que há a epidemia de smartismo, não há o perigo de uma séria epidemia de varíola, uma vez que toda a gente considera smart a vacinação. É preciso render graças ao chic! O chic pôde fazer aquilo que em vão foi tentado pelo bom senso e pelos conselhos dos médicos. Também, para alguma cousa boa havia de servir esta desvairada preocupação de elegância  que avassalou o Rio de Janeiro![…]

Mas ninguém se pode opor a essas correntes de opinião, boas ou más, que se formam inconscientemente no seio do povo, e não se sabe como vai de minuto em minuto aumentando a sua força e avassalando cidades e países. Há menos de quatro anos, a vacina de Jenner era o pior dos venenos e a vacinação era o maior dos crimes; disse-se da linfa preventiva o que o Mafona nunca disse do toucinho: transmitia a tuberculose, a sífilis, a lepra; era preparada com sangue de ratos pestosos; era uma sânie infecta que apodrecia o organismo do inoculado; e quem se atrevia a contrariar essa opinião, arriscava-se a ser linchado em praça pública. Hoje, quem não se vacina, é imbecil e não é homem chic; e quem duvida da glória de Jenner é olhado como um pobre diabo, incapaz de compreender o que é a glória.

É assim o nosso povo, e são assim todos os povos. Qualquer povo vai para o bem, tão facilmente como para o mal. É preciso saber levá-lo. Mas quem há que se possa gabar de saber levá-lo? Esse ofício de "condutor dos povos" está ficando cada vez mais difícil. Quase sempre, os homens, que se vangloriam de conduzir multidões, são realmente conduzidos por elas!… (Olavo Bilac, 1908, p. 152-153)


Considerações finais 

A vacina contra a varíola humana foi a primeira a ser adotada sistematicamente e, desde sua introdução em 1798, desencadeou uma série de manifestações contrárias à sua utilização, tanto no Brasil como no exterior. Mesmo na Inglaterra, onde foi desenvolvida inicialmente, a vacina não foi aceita de imediato, nem mesmo pela comunidade científica. Trata-se de reação possível diante do novo, do desconhecido, e que deixa espaço para suposições ou conjeturas sem embasamento científico, algumas das quais atualmente alimentadas por fake news. É importante considerar que o comportamento das pessoas não é determinado somente por evidências científicas, mas também por  suas crenças, medos, cultura e experiências anteriores, principalmente quando se pretende realizar uma grande intervenção como a vacinação em massa.

No Brasil, desde os primeiros anos do século XVIII, as autoridades se valeram de ameaças de multas, prisões e leis com o intuito de obrigar a população a se deixar vacinar. Em 1846 e em 1904, um decreto imperial e uma lei da República, respectivamente, determinaram a obrigatoriedade da vacinação. Contudo, nenhuma das duas normas legais se mostrou eficaz para prevenir novos surtos epidêmicos de varíola. A adesão maciça da população ocorreu apenas em 1908, não por causa de determinação legal, mas porque passou a fazer sentido para as pessoas. Estas buscavam vacinar-se porque constavam que aqueles que haviam se vacinado nos anos anteriores não sucumbiam ao novo surto que atingia o Rio de Janeiro. Antes disso, apenas conselhos médicos e imposições legais acompanhadas de ameaças de perdas de direitos ou punições não resolveram a questão. Tal constatação deve ser levada em conta neste momento de planejamento para vacinação em massa contra uma doença nova.

De volta à decisão do STF, é possível que nem fosse necessária caso as autoridades decidissem vacinar primeiro os 75% da população que já manifestaram desejo de fazê-lo, pois há evidências históricas que os 25% restantes poderão ir mudando de opinião com o passar do tempo. (Dias, 2020) Mais eficaz seria, muito provavelmente, obrigar o Estado a manter a população constantemente bem informada sobre os resultados dos testes realizados com as vacinas e, posteriormente, de seus efeitos quando as campanhas de vacinação tiverem início. 



Referências

STF. Supremo Tribunal Federal [site]. Imprensa. Plenário decide que vacinação compulsória contra Covid-19 é constitucional. 17 dez 2020, 21h17. Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1 .  Acesso em: 24 dez 2020.


Fundação Oswaldo Cruz. Oswaldo Cruz: o médico do Brasil. São Paulo: Fundação Odebrecht; Brasília, DF: Fundação Banco do Brasil, 2003, 135 p. 


Gebara, A. J. Varíola. In: Prado, F. C., Ramos, J. A., Valle, J. R. Atualização Terapêutica. Rio de Janeiro - São Paulo - Belo Horizonte: Livraria Luso-Espanhola e Brasileira, Ltda, 1957, 997 p.


Santos Filho, L. C. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec, Ed. Da Universidade de São Paulo, v. 1, 1977, 436 p.


Sigaud J. F. X. Do clima e das doenças do Brasil ou estatística médica deste império. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009. 424 p.


Saint-Hilaire, A. F. C. P. Viagem à província de São Paulo e Resumo das viagens ao Brasil, Província Cisplatina e Missões do Paraguai. Tradução: Rubens Borba de Moraes. São Paulo: Livraria Martins, 1940. 375 p.


Rezende JM. À sombra do plátano - crônicas de história da medicina. São Paulo: Editora Unifesp, 2009. 408 p.


Fávero, F. Oswaldo Cruz. In: Homens de São Paulo: reimpressão parcial da 1. ed. (1954). São Paulo: Martins e Ed. Da Universidade de São Paulo, 1981, p. 217-246.


Lacaz, C. S. Vultos da Medicina Brasileira. São Paulo, 1963. 100 p.


Dias, L. C. Desmentindo as fake news sobre vacinas. Unicamp [site]. 13 out 2020. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2020/10/13/desmentindo-fake-news-sobre-vacinas. Acesso em: 25 dez 2020.


Olavo Bilac. Diário do Rio. Correio Paulistano, 10 de abril de 1908. In: Dimas A. Bilac, o Jornalista: Crônicas: Volume 2. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Editora da Unicamp, 2006. 576 p.