quinta-feira, 18 de abril de 2024

MAIS MENA

 Foram meses de convivência intensa entre Mena e eu. Nem um só dia longe um do outro desde que o corpo dela reivindicou nossa atenção integral em razão de um mal covarde que se manteve escondido enquanto minava, paulatinamente, forças e esperanças. Cerca de dois meses e meio antes de partir me perguntou se eu achava que ela ia morrer. Fui sincero e disse que não, pois, ainda que receoso que fosse câncer o mal que lhe impedia de desfrutar "menamente" das refeições, eu acreditava no diagnóstico em tempo oportuno e no tratamento eficaz. Nossa proximidade atingiu tal grau que descobri que não se pode medir apenas pelos anos vividos juntos - vinte -, mas, e sobretudo, pela intensidade da relação.

O privilégio concedido a mim - acompanhar Mena em momentos tão difíceis da vida dela - me fez admirá-la ainda mais e reconhecer minha ignorância sobre momentos singulares e únicos de uma partida ou passagem. Contudo, sua generosidade era tamanha que não abriu mão de ensinar àqueles que estiveram à sua volta.

À medida que amadureci na minha carreira e vida, dei-me conta que a medicina - incorporação do método científico à arte de ser médico - não responderia adequadamente às necessidades e demandas das pessoas em sofrimento se deixasse a pessoa em segundo plano e a doença no primeiro. Encontrei uma resposta na Clínica Ampliada e Compartilhada.

A inclusão dos adjetivos “ampliada" e "compartilhada" para qualificar a Clínica - encontro entre profissionais/equipes de saúde e pacientes/famílias - é muito mais do que a simples busca pela prática em saúde que não se limite à doença como objeto de interesse da medicina e a inclusão da pessoa singular, com seus valores, crenças, cultura, desejos, saberes e experiências prévias, dentro de determinado contexto.

Ampliar a Clínica, no caso de pacientes portadores de câncer, significa perceber e compreender as mudanças que ocorrem na forma e funcionamento do corpo e aquelas que se dão no cotidiano, nas relações sociais, valores, visões de mundo, significados das ações e vivências, projetos de vida, sentimentos.

 Compartilhar a Clínica significa interagir dialogicamente no sentido de trocar saberes, entendimentos, análises, propostas, responsabilidades. Um diálogo entre ciência e não ciência, o mais horizontal possível.

A ampliação e o compartilhamento da Clínica requerem mudança na prática em saúde no sentido de se liberar das amarras impostas pelo método clínico tradicional - observação clínica (anamnese, exame físico, exames complementares), raciocínio patofisiológico e vinculação de sinais e sintomas a uma doença - e aprender a escutar/ enxergar a pessoa para além de sua condição mórbida.

O que uma paciente acometida pelo câncer ou seus familiares e amigos próximos poderiam nos contar/ensinar? São saberes e experiências que devem ser acessados e abordados pelos profissionais de saúde, fomentando a prática da Clínica Ampliada e Compartilhada.

Não saí igual da convivência amorosa e solidária com Mena e decidi traduzir - mesmo sabendo que “traduttore, traditore” - em palavras, ou melhor, em frases, orações e parágrafos algumas reflexões que insistiram em emergir. Posso resumi-las na afirmação de que câncer não se resume ao crescimento desordenado de células. Talvez façam sentido para mais alguém. Gostaria que fizessem sentido para profissionais de saúde que venham a interagir com pessoas acometidas por câncer e que lhes incentivassem a ampliar seu objeto de interesse ao exercer sua arte.

NOVOS TERRITÓRIOS E NOVOS PERSONAGENS

Casarão do Café, edifício localizado na avenida Andrade Neves e que conserva a fachada original do imóvel projetado por Eduardo Bento Homem de Melo. Naquela esquina se encontram o moderno e o antigo, pessoas em sofrimento e a Ciência Médica. Salas de espera assépticas e silenciosas, ocupadas por seres concentrados nas informações veiculadas por seus aparelhos celulares. Raramente, um livro de bolso transporta alguém para longe dali. Secretárias atrás de balcões, computadores e telefones. Doutores de branco. Mesas bonitas separam esculápios de doentes e familiares. Diplomas pendurados nas paredes, atestando competência e saber. Aparelhos destinados a constatar irrefutavelmente a presença do mal e a determinar suas causas.

Antes mesmo de adentrar o Casarão, ainda na calçada, é possível observar o vai e vem de pessoas, a maioria idosas, em geral acompanhadas, portando grandes envelopes dentro dos quais imagens do interior de seus corpos passeiam pela cidade. Não raras vezes, nossos olhos cruzam rostos que não são estranhos, quiça já percebidos nas salas de espera, com histórias e nomes desconhecidos de nós.

Graças à doença, o Casarão do Café passou de simples bela fachada observada ao se trafegar pela avenida a território vivo de enfermos, seus familiares e profissionais saúde.

Outros imóveis, outras clínicas, outras paisagens urbanas paulatinamente ocupam, em graus diferentes, espaços na vida daqueles que saem de casa em busca de solução científica para seus sofrimentos.

Estar acometido de câncer também significa ampliar territórios e redes sociais. Novas paisagens, novos rostos, novos temas de conversas. Não se trata apenas de carregar consigo um tecido em acelerada e desordenada multiplicação, mas também de uma pessoa que rapidamente amplia seus territórios vividos e suas interações sociais.

QUE CORPO É ESSE?

A imagem refletida pelo espelho após o banho não a agradou. Não era a que fora moldada durante anos de disciplina no pilates, musculação, caminhadas e alongamentos. As ondas luminosas que chegaram à retina dispararam impulsos eletroquímicos capazes de desencadear conversas entre diferentes regiões do cérebro, inclusive aquelas responsáveis pela memória e sentimentos.

Os músculos murcharam, as saliências ósseas despontaram e a barriga inflou, dando um aspecto diferente, inédito e indesejado àquele corpo que não parecia ser o seu, com o que convivera por décadas. Como seria essa convivência daqui pra frente, uma vez que a dona não gostava mais dele ou não o reconhecia?

A nova imagem não veio sozinha. Acompanharam-na a tristeza, a raiva, a incerteza e o medo.

Quem sabe não seria o caso de cobrir o espelho a fim de evitar fantasmas! Foi essa a solução - fechar as abas laterais espelhadas da penteadeira, escondendo também o espelho central. Dessa forma, o antigo móvel de madeira disposto há tanto tempo em frente à cama, agora enceguecido, não mais refletiu imagem alguma.

Infelizmente, ainda que amordaçado, o corpo não se calou. Seja mediante a dor diária, seja pelo funcionamento prejudicado, que incomodava, judiava, maltratava, limitava. Como seguir amando esse companheiro de décadas que, de uma hora para outra, traiu a confiança e a atenção que recebeu ao longo da vida?

De aliado, passou a inimigo, e batalhas se multiplicaram, exigindo o emprego de armas cada vez mais poderosas e até mortais. Como qualquer guerra que se prolonga por muito tempo, os estragos foram profundos e indeléveis.

AI, COMO A VIDA É BOA

Não é incomum pacientes com câncer avançado apresentarem sede intensa. Trata-se de golpe baixo do tumor, que não respeita nenhuma convenção de guerra. O ataque é dirigido a uma das necessidades mais básicas do ser humano, cujo corpo é constituído por setenta por cento de água.

A proibição da ingesta alimentar pela boca e a instalação de uma sonda nasoenteral impediram-na de tomar água. Restou-lhe a possibilidade de bochechar e cuspir. A cada três ou cinco minutos Mena pedia água. Quanto mais gelada melhor. Insistia para que eu pegasse uma garrafinha de água para mim também, pois eu tinha que cuidar do meu rim e evitar o retorno nas pedras.

Era madrugada quando consegui uma garrafinha de água bem gelada. Enchi o copo pela metade e dei a ela. Colocou na boca, deixou a água passear ali, distendendo as bochechas e devolveu o líquido no outro copinho. Imediatamente após ela, “menamente”, disse: “Ai, como a vida é boa”. Essa frase, sincera e inocente, vinha, na verdade, carregada de muita sabedoria.

“Ai, como a vida é boa” deve ser lida como um recado ou conselho: a felicidade está no momento, no agora, no presente e não no futuro. O prazer que aquele bochecho com água gelada lhe proporcionou parecia semelhante àquele experimentado ao comer uma iguaria ou ao entrar numa cachoeira, num rio, ao admirar um por do Sol, ao escutar uma bela música, e assim por diante.

A preocupação com a almejada felicidade futura talvez impeça a pessoa de desfrutar a felicidade de cada momento presente. Um bochecho de água gelada foi, naquele momento, felicidade do presente, concreta, real, e não almejada para o futuro.

AGARRANDO-SE À FÉ

Somente a fé na ciência poderia explicar a disposição e a paciência para enfrentar o incômodo e a chateação dos itinerários percorridos e das rotinas ambulatoriais e hospitalares vividas durante as etapas de investigação diagnóstica e de tratamento de paciente com câncer. Nunca a palavra paciente fez tanto sentido como quando a fé se confundiu com conformismo, resignação e submissão.

Contudo, a fé precisava ser alimentada. A fé na ciência, e em especial na biomedicina, mingua com a demora, com o fracasso das intervenções, com a piora dos sintomas.

A fé espiritual, no divino, em Deus parece ser mais resistente, durável.

Durante praticamente todas as horas de todos os longos dias e arrastadas noites de permanência no hospital ela manteve uma medalha de Nossa Senhora Desatadora dos Nós na sua mão. Segurava-a com fé. Agarrava-a com força. Estava acompanhada.

Com ela - Nossa Senhora - recebeu notícias boas e ruins.

Com ela suportou as intervenções biomédicas necessárias e desnecessárias. 

Com ela recebeu familiares e amigos.

Com ela despediu-se dos familiares e amigos.

Com ela despediu-se deste mundo terreno.


Campinas, abril de 2024.