Visitar Brodowski e, em especial, o museu Casa de Portinari costuma ser prazeroso e enriquecedor culturalmente. Era minha quarta visita, todas elas como escala da viagem entre Campinas e Ituiutaba, onde reside minha sogra.
A primeira ida à casa da família do mais célebre pintor brasileiro foi estimulada pela visita que meus pais lá fizeram poucos anos antes. Uma réplica do quadro “Reisado”, de 1941, presente deles, segue na parede da sala de casa. Supus que meu pai, médico formado em 1947 e que dedicou mais de meio século à saúde do trabalhador, teria tido interesse particular pela história da intoxicação por chumbo presente nas tintas que abreviou a vida do artista brodowskiano. Foi esse também meu principal interesse e resultou num texto produzido - Saturno, o Deus de Portinari, em parceria com o historiador Ivan Luiz Martins Franco do Amaral, a partir do que lá encontrei e de pesquisas bibliográficas paralelas, e apresentado no IX Seminário Nacional do Centro de Memória da Unicamp.
Gosto de chegar na noite anterior, me hospedar no hotel localizado a poucos metros da praça Candido Portinari e iniciar a visita na primeira metade da manhã. Este ano, atravessei a praça por volta das oito horas, mas fui informado que a abertura seria somente uma hora mais tarde. Decidi então passear a pé pela cidade. Estava nublado. A fina garoa que ia e vinha não incomodou. Placas coloridas com poesias e prosas de Portinari deram charme adicional à caminhada -
“Num pé de café nasci.
Um trenzinho passava
Por entre a plantação”.
Cheguei à antiga estação ferroviária, fundada em 1894, ávido por saber mais sobre a cidade. Estava fechada. Mas atrás do prédio existe uma “Praça das Artes”, inaugurada em 1994, por ocasião das comemorações do centenário da cidade que leva o nome do engenheiro da Companhia Mogiana - Alexandre Brodowski -, responsável pelo surgimento daquela estação, ao redor da qual surgiria a cidade que me acolhia naquele dia. Um muro baixo foi ornado com imagens em relevo ilustrando trabalhadores de café. Lá, o artista Adélio Sarro escreveu “Tributo ao mestre Portinari - 08-10-1994”. Contudo, foram suas esculturas que homenageiam Portinari e a ferrovia que mais me chamaram a atenção. São dois grupos de esculturas em tamanho natural - um representando imigrantes e o outro trabalhadores do café.
A presença dos dois grupos na mesma praça, próximos um do outro, imigrantes e lavradores de café, nos impulsiona a pensar que as primeiras gerações de italianos que vieram trabalhar nas plantações do Brasil tiveram que lidar com o processo de adaptação de clima, idioma e costumes, e com a nostalgia. É provável que muitos apresentassem sofrimento psíquico.
O primeiro grupo é composto por cinco figuras humanas. Duas mulheres, uma delas aparentemente grávida, estão sentadas sobre um banco, muito provavelmente em alusão à espera do trem na estação ferroviária. As outras três figuras representam um casal de adultos e uma criança com os braços elevados, acenando em despedida ao que deixaram para trás. Os traços europeus das figuras dispostas na estação ferroviária destinada a escoar a produção de café daquela região indicam tratar-se de migração de famílias para essa lavoura - provavelmente italianos.
O outro grupo é composto por cinco adultos - três homens e duas mulheres - em pé, em círculo, de costas um para o outro e tendo ao centro uma saca escrito “O café”. Estão todos descalços. Portanto, sem proteção contra arranhões, cortes, picadas de animais - agravos que poderiam ser minimizados com o uso de botas. Talvez o contato direto com o solo, com a terra rossa, foi proposital, na tentativa de representar a relação visceral do lavrador com a terra. A ausência de calçados e a magreza dos trabalhadores também nos leva a admitir a hipótese de pobreza, falta de alimentos e excesso de trabalho dos primeiros italianos que aqui aportaram.
Um dos homens segura uma enxada, ferramenta indispensável para o preparo da terra. O peso da mesma e sua extremidade afiada permitem ao lavrador capinar e revolver a terra, mas, por outro lado, aumentam o risco de acidente de trabalho, principalmente quando se trabalha descalço.
O segundo lavrador eleva uma peneira com as duas mãos, representando o movimento repetitivo de abanar o café visando separar as folhas dos grãos. Exige esforço não apenas dos braços, mas também do tronco. Faz-se necessário repetir os movimentos diversas vezes até que os frutos predominem nitidamente na peneira e as folhas se acumulem no chão. A escultura leva o visitante a supor a possibilidade de dor devido a lesões por esforço repetitivo e esforço muscular exagerado.
Neste conjunto de esculturas de Sarro não foi destacada a musculatura dos trabalhadores, diferente do que se observa no “O lavrador de Café” (1934) de Portinari, mas chama a atenção o fato de todas a figuras serem magras.
Sacudir a peneira acima da altura da boca e nariz pode fazer com que poeira entre nas vias respiratórias e até nos olhos, o que, muito provavelmente, incomodava sobremaneira os lavradores de café. Seria uma queixa comum? O que os médicos do trabalho podem nos dizer a respeito?
Outro trabalhador encontra-se totalmente curvado para a frente, pegando um saco de café. Eu, que já tive o desprazer de interromper minhas atividades rotineiras em razão de lombociatalgia relacionada a traiçoeira hérnia de disco L5-S1, olhei para aquela obra de arte com empatia, imaginando sua musculatura lombar desafiada até o limite do tolerável. Nos dias de hoje, receberia o CID M54.5. Como faziam para evitar a dor lombar? Trata-se de agravo frequente entre trabalhadores rurais?