A chuva contínua do começo de novembro pintara de verde a paisagem da zona rural de Americana e embarrerara o chão do assentamento Milton Santos. Mas aquela manhã surgiu sem chuva, propícia para as atividades de extensão universitária, nas casas dos moradores. Três grupos de extensionistas formaram-se, com alunos de Medicina e Educação Física, residentes de Medicina de Família e Comunidade e Ginecologia, e pós-graduandos de Saúde Coletiva - psicólogo e midiáloga.
Fomos recepcionados com bolachas, bolo de fubá, chá e café. Fátima nos esperava com o banquete montado por ela. Pura gentileza. Não faltaram os abraços e sorrisos. Mais tarde, chegou Eunice, com mandioca cozida e um cheiro para cada um de nós.
Além dos atendimentos em saúde, brincadeiras com as crianças preencheram o período.
Eu permaneci na sede, uma construção feita em mutirão, destinada a servir como escola para educação de adultos, mas que abriga outras atividades, como nossos encontros com moradores-pacientes.
Logo chegou Liormando, um simpático pernambucano, filho de Pedro José e Doralice, natural de Vitória de Santo Antão, de 58 anos de idade, proprietário de um lote do lado de Cosmópolis. Cultiva abacaxi, jiló, beringela, feijão vagem, abobrinha, mamão, tomatinho, cheiro verde e mandioca, entre outros vegetais. Falou com paixão da cultura de abacaxi e da casa de farinha que organizou em seu lote.
Contou, com orgulho, que produziu 100 quilos de farinha de mandioca na última semana. Fez questão de buscar dois saquinhos para exibir. Fiquei encantado com a pureza e beleza da farinha bem fina, agradável ao olfato.
A casa de farinha fez parte de sua infância. Conhece bem os segredos de cada etapa da produção de farinha de mandioca, desde seu cultivo até a torragem. Quando criança, seu irmão mais velho lhe pedira ajuda para colocar o caçoar cheio de casca de mandioca no lombo da égua. Caberia a ele sustentar nas costas de um lado enquanto seu irmão rodeava o animal para ajustar o caçoar do lado oposto. No entanto, assim que o irmão soltou o peso do cesto, Liormando sentiu uma dor intensa e aguda nas costas e precisou sair para chorar. Desconfia que a dor que vem e vai na coluna tenha se originado nesse episódio.
Com 7 anos de idade, acompanhava o pai na roça, mas não trabalhava, apenas observava e brincava. Sem querer, chutou um pedaço de terra que atingiu a costela do pai. Foi o suficiente para que passasse a ser considerado apto para o trabalho. Foi, então, apresentado à enxada. Conta que “nunca levou uma pisa” do pai. O castigo era outro: capinar um terreno. Não se conforma com os castigos de hoje, ficando as crianças na cama ou no sofá, às vezes até assistindo programa na televisão ou brincando com o celular.
Sua refeição na roça era camarão salgado e farinha, carregados num bornal feito de lata de leite em pó. Quando ficava em pé e não enxergava mais sua sombra, era hora de almoçar. Outra lembrança dos tempos de roça era a técnica usada para impedir que os porcos fuçassem o solo, mas permitindo que comessem - colocavam um arame torcido no focinho.
Tanto seu chapéu nordestino como suas sandálias são de couro e presentes de seu cunhado alagoano. Liormando explicou que o chapéu está um pouco achatado porque costumava carregar coisas sobre a cabeça. Segurou uma das sandálias na mão e explicou que se orgulha de dizer aos seus interlocutores que eles podem até ter mais terras e mais plantações que ele, mas ninguém tem um par de sandálias como aquela. Quando jovem, trabalhava descalço. Nas canelas, são visíveis as marcas das formigas lava-pés, cicatrizes do trabalho no campo.
Aos 23 anos, deixou a Zona da Mata pernambucana e se instalou em Limeira. Passou a trabalhar na fundição. Algum tempo depois, mudou de ramo e experimentou a construção civil, muito pior, segundo ele, para a coluna.
Reside no assentamento Milton Santos há 19 anos, desde seu início, e colaborou com a construção da casa que servirá de escola, onde nossa conversa transcorria.
Pai de Leonardo - 37 anos de idade e residente em Recife - e de Edinaldo - 36 anos e residente em Limeira -, casou-se com Rosangela, mãe de cinco filhos - Aline, Ramon, Juan, Vitor e Douglas -, e companheira quando se trata de preparar as mudas para o plantio.
Não era esta a primeira vez que conversávamos. Há alguns meses, trouxera exames para serem avaliados e saiu da consulta com o estímulo para fazer caminhadas. Levou muito a sério a recomendação e, atualmente, sai às cinco e quinze da manhã, acompanhado de Rosangela, para uma caminhada de 30 a 40 minutos de duração. Mais de uma vez, durante nossa conversa, ouvi os dois dizerem que a vida melhorou muito depois que começaram a caminhar.
As veias saltadas na perna de Liormando murcharam e o fôlego aumentou.
Esse homem, ciente do seu papel como verdadeiro fornecedor de alimentos para a população, frisou que “se o campo não planta a cidade não janta”.
Eu, encantado com tamanha sabedoria e pensando no significado de tudo aquilo que ouvira, lamentei não estarem meus alunos ali também. Ana Carolina, nossa residente de Medicina de Família e Comunidade acompanhou o final da conversa.
Combinamos de visitar seu lote e compartilharmos seus saberes e experiências com os extensionistas daqui a duas semanas. Quem sabe ainda restarão alguns saquinhos com farinha!