A observação participante é um bom método de obtenção de informações, partindo do olhar do observador, inserido no meio onde o fato ou fenômeno a ser estudado se dá. Uma vez imiscuído entre os atores do processo, sua presença praticamente deixa de chamar a atenção, permitindo-lhe se locomover quase que imperceptivelmente.
Minha condição de observador participante decorre do fato de atuar como médico em unidades básicas de saúde (UBS) e em serviços de urgência no município de Campinas desde 2001. Nessa condição, observei, “de dentro”, as principais epidemias de dengue que assolaram essa cidade.
Em 2014, Campinas enfrentou a maior epidemia de dengue até aquele ano. Foram mais de 42.000 notificações. Em 2015, o número de casos foi maior em cada um dos três primeiros meses, segundo dados fornecidos pelo Departamento de Vigilância em Saúde (DEVISA). Essa informação, por si só, nos faz supor que os números de 2014 poderão ser ultrapassados. Por outro lado, alguns gestores apostam na antecipação do declínio da epidemia que, no ano passado, invadiu o mês de junho. Ainda que os números finais fiquem aquém daqueles de 2014, posso afirmar ser esta epidemia, de 2015, a maior da história da cidade. Exponho, a seguir, os argumentos dessa minha afirmação:
- Os casos atendidos mostraram-se clinicamente muito mais graves. Os pacientes apresentam-se muito mais desidratados. Basta olhar a língua dos doentes: extremamente seca e rugosa, muito além do que costumávamos encontrar. Repercussão mais intensa na pressão arterial, isto é, hipotensão mais acentuada. A grande maioria dos “dengosos” relatam fraqueza intensa, adinamia, falta total de apetite e dificuldade até mesmo de ingerir líquidos, acompanhando as dores moderadas a intensas. Diferentemente de anos anteriores, são muito mais frequentes os eventos hemorrágicos como epistaxe, gengivorragia, sangramento vaginal, entre outros. Os desenlaces fatais, infelizmente, já fazem parte do noticiário também este ano. Alguns doentes (poucos), uma ou duas semanas de recuperados, retornam com sintomas sugestivos de dengue, o que deixa a impressão de que, neste ano, mais de um sorotipo de vírus circula na cidade, suspeita que precisa ser investigada.
- A duração dos episódios mais longa. Os pacientes demoram, de regra, mais tempo a se recuperarem, sendo comum a necessidade de afastamento de suas atividades cotidianas, incluídas aí as ocupacionais, por cerca de 10 dias. Os últimos dias do quadro tendem a cursar com exantema e prurido exuberantes, causando desconforto de outra ordem aos enfermos, já aliviados das dores mais incômodas nessa fase da doença.
- As alterações do hemograma têm sido mais acentuadas. Valores muito baixos de plaquetas, inferiores a 50.000/mm3 deixaram de ser excepcionais e menores que 10.000/mm3 já não surpreendem. Também encontramos com relativa frequência número de leucócitos ao redor de 1.000/mm3.
- Os pronto atendimentos (PAs) superlotados, com pacientes aguardando inclusive do lado de fora do estabelecimento. Amiúde, pessoas com febre aguardam, por tempo demais, na sala de espera, para receber hidratação e anti-térmicos. Isso porque as salas no interior das unidades são insuficientes para acomodar o volume de doentes que necessitam desse tipo de terapia. O que mais se observa são doentes recebendo soro fisiológico pelas veias do braço. Um ao lado do outro, em cadeiras e poltronas dispostas lado a lado, cada um com uma bolsa de soro sobre suas cabeças. Os “motoboys” encarregados de levar o sangue colhido ao laboratório deixam os PAs “carregados”, levando nas caixas térmicas quase que exclusivamente tubos com tampa roxa (de hemograma), numa proporção impensada até há poucos meses. Um funcionário é destacado exclusivamente para realizar as notificações. Diante de sua mesa, em alguns momentos do dia, os pacientes fazem fila para a prova do laço e o preenchimento da ficha de notificação. O vai-e-vem frenético da equipe de saúde durante todo o dia e grande parte da noite não deixa dúvida de que estamos diante de uma grande epidemia. A imensa maioria dos pacientes são orientados a retornar no dia seguinte, seja no PA ou na UBS, para reavaliação clínica e laboratorial.
- As UBS tiveram que mudar sua rotina. Antes mesmo de abrirem as portas, já há fila do lado de fora. A imensa maioria dos que buscam atendimento queixam-se de febre, dor nos olhos, cefaléia, fraqueza intensa e inapetência. Aumentou, e muito, o número de doentes que recebem hidratação por via intravenosa nas UBS. Cadeiras comuns, odontológicas e poltronas ficam quase que ininterruptamente ocupadas pelos desidratados enfermos. Amostras de sangue são colhidas e enviadas para exame diariamente. Da mesma forma, os resultados são procurados e impressos diariamente, a fim de nortear as decisões clínicas.
O quadro descrito acima é muito diferente do que observei nas epidemias anteriores, quando o número de doentes era alto, mas a gravidade menor. Diante dessa nova situação, os profissionais de saúde têm se desdobrado para dar conta do desafio que lhes apareceu. Chega a ser emocionante observar o trabalho intenso desses profissionais, diagnosticando, examinando, pegando veias, colhendo sangue, administrando soro, conversando com os doentes. Muito diferente da imagem que a mídia tenta passar desse Sistema de Saúde universal. Infelizmente, um dos pronto atendimentos mais importantes, localizado do distrito mais populoso da cidade, permaneceu fechado, para reforma, durante a maior parte da duração da epidemia. Moradores dessa região têm sido obrigados a deslocamentos mais longos e enfrentam o incômodo de esperar mais tempo por atendimento sentindo dor, apresentando febre, desidratando-se nas salas de espera dos serviços de urgência. Assim como em 2014, os serviços municipais de urgência funcionam com número insuficiente de profissionais, sejam médicos ou de enfermagem. Por isso, o tempo de espera inaceitável em vários períodos.
As razões de tão grande epidemia são várias e não somente única. Não me parece que a população mudou tanto assim o modo de armazenar água nos últimos anos. Houve sim uma mudança por conta da crise hídrica, mas não a ponto de explicar a eclosão dessas duas últimas epidemias - 2014 e 2015 - e em várias regiões do país. Atribuo tais epidemias, causadas por insetos-vetores, mormente ao aquecimento global, principalmente se admitirmos que temperaturas mínimas elevadas cursam com epidemias de dengue mais devastadoras, assim como ocorreu com a febre amarela urbana no passado.
Enfim, esta parece ser realmente a pior epidemia da história de Campinas, excetuando-se, talvez, a epidemia de febre amarela que assolou a cidade no início dos anos 1890.
Devemos aprender com esta epidemia para planejar o futuro. Preocupa a provável chegada da Chikungunya no Sudeste, onde praticamente ninguém tem proteção imunológica e quase todos correrão o risco de “tornarem-se dobrados”. Investimento na Atenção Básica e na Urgência, além de ações ambientais podem e devem ser prioridade. Sugiro, neste momento, mais do que nunca, ouvir (de verdade) os usuários, respeitar os conselhos locais, distritais e municipal, mas também em todos os encontros, clínicos ou outros.