A clínica contemporânea, exigida do médico nestas primeiras duas décadas do século XXI, é, em alguns aspectos, muito semelhante àquela que surgiu no século XVIII, e discutida por Michel Foucault no seu livro "O Nascimento da Clínica”, mas também muito diferente e mais complexa em razão da incorporação de teorias e saberes que emergiram desde então. À clínica dita tradicional, caracterizada pelo método clínico centrado na observação minuciosa, exame do corpo físico, pensamento classificatório, raciocínio patofisiológico e diagnóstico de uma doença, somaram-se elementos da medicina social, psicanálise, reabilitação psicossocial, medicina baseada em evidências, método clínico centrado na pessoa e clínica ampliada e compartilhada, que enfatiza o sujeito mais do que a doença. Assim, ao médico contemporâneo, quando diante do paciente, já não basta procurar a doença no corpo. Em outras palavras, os encontros clínicos, paulatinamente, foram ganhando em complexidade teórico-relacional em virtude de avanços no campo bio-tecnológico, mas, e sobretudo, na esfera da saúde coletiva e incorporação da singularidade dos sujeitos como objeto de interesse.
Pretende-se aqui, apresentar as características e trajetória dessa construção complexa e multiparadigmática da clínica, desafiadora para profissionais, professores e alunos de medicina.
Escolas gregas clássicas: racionalidade e observação empírica
A partir do século 5˚ AC, a medicina grega - com suas quatro principais escolas: Cnido, Cós, Crotona e Sicília - sofreu nítida transformação, substituindo o misticismo e a religião pela racionalidade. Trocou a especulação, os rituais, o hipnotismo e as curas milagrosas pela observação minuciosa e o raciocínio lógico. Saíram os sacerdotes e entraram os médicos. Em termos gerais, pode-se afirmar que a principal contribuição da medicina grega clássica foi a incorporação, em definitivo, da racionalidade na prática médica. (Durant, 1943)
A escola de Cnido, conhecida através das Sentenças Cnidianas, preconizava a classificação das doenças em função dos sintomas e do órgão acometido, e concebia a doença como entidade independente, separada e anterior ao doente. As doenças existiriam no plano das idéias como entidades prontas, completas, e que poderiam ser reconhecidas, acessadas a partir dos sintomas e alterações no corpo. Nesse sentido, a clínica tradicional, hegemônica até hoje, aproxima-se sobremaneira da escola de Cnido. (Lyons e Petrucelli, 1987)
A escola de Cós teve como principal expoente Hipócrates e defendia a observação empírica e a descrição detalhada e ampla das reações das pessoas adoecidas. Em outras palavras, diferentemente de Cnido, os hipocráticos interessavam-se fundamentalmente pelos doentes, mais alinhados, nesse sentido, com os grupos que atualmente enfatizam a experiência do adoecimento, como os médicos de família e comunidade- “especialistas em gente” e adeptos da “medicina centrada na pessoa”, aqueles que buscam exercer a Clínica Ampliada - que enfatiza o sujeito mais que a doença, e os que têm explorado as narrativas como forma de conhecer as experiências dos enfermos. O Corpus Hippocraticum, conjunto de textos escritos por vários autores, muitos dos quais, mas não todos, atribuídos a Hipócrates, também contribuiu para a disseminação das teorias produzidas pelas escolas gregas, como o método racional, ética médica e visão epidemiológica do problema saúde-doença.
Hipócrates reunia-se com seus discípulos à sombra de um Platano orientalis, na ilha grega de Cós, localizada no mar Egeu, hoje território turco. A árvore está lá até hoje, com alguns de seus ramos milenares apoiados em estruturas que os mantém “de pé”. O local transformou-se em ponto turístico e atrai médicos de vários países que procuram as raízes de sua arte-ciência. Em 1954, Ivolino de Vasconcelos, fundador e presidente do extinto Instituto Brasileiro de História da Medicina, plantou uma muda da árvore de Hipócrates no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Em 2008, por ocasião do bicentenário da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, uma muda foi plantada no seu jardim, na presença do prefeito de Cós. Uma árvore pode ser visitada em frente à Casa de Arnaldo, em São Paulo. O plantio dessas mudas da árvore de Hipócrates em nosso país, de alguma forma, retrata a forte ligação da medicina contemporânea às suas raízes gregas antigas, não obstante o progresso científico e tecnológico. (Rezende, 2009; Tuoto, 2011)
Pensamento classificatório
Um grande avanço no conhecimento da natureza (physis), e em particular do corpo humano, veio com o Renascimento. Através da observação e de métodos racionais e indutivos, principalmente com os trabalhos de Bacon e Descartes, no século XVII, o homem tornou-se capaz não somente de compreender as leis que regem a natureza, mas de também modificá-la, passando a ser, em muitos sentidos, mais poderoso que Deus. Nesse contexto, surgiu o método clínico tradicional - a partir da minuciosa observação do corpo humano, capta-se o essencial e despreza-se o supérfluo, o singular, a fim de agrupar semelhantes e separar diferentes. Esse pensamento classificatório, originado em Sydenham, Linné e Sauvages de Montpellier, é que tornou possível ordenar e nomear doenças. Isso porque, dentro do nome de uma doença cabem semelhantes que não são idênticos. Foi o desprezo pelo singular que tornou possível a classificação e o diagnóstico de doenças.
Assim como em Cnido, o exame (observação) do corpo tem por finalidade descobrir a doença. É como se existisse, a priori, uma “biblioteca” de doenças no plano das ideias e que, de acordo com os achados da observação clínica, buscar-se-ía a que melhor corresponde a esses achados, da mesma forma que se procura e se puxa o livro ad hoc da prateleira. A doença é, portanto, anterior ao doente, e sua manifestação é conhecida de antemão. Às vezes, o doente atrapalha pois não permite que a doença se manifeste como deveria.
Em suma, ao exercer, no cotidiano, a clínica, o médico contemporâneo coloca em prática o método classificatório que consiste em procurar uma doença na qual cabem os achados essenciais da observação clínica, valendo-se de raciocínio patofisiológico e desconsiderando o supérfluo e singular.
Medicina social
Até a segunda metade do século XVIII, o médico restringia seu interesse essencialmente ao paciente e sua família. É o que se pode desprender dos seguintes trechos do livro "L’exercice de la médecine et le charlatanisme”, escrito pelo professor e reitor da Universidade de Paris, Brouardel, em 1899:
“há vinte anos, o médico era verdadeiramente o médico da família; ele intervinha apenas quando um de seus membros ficava doente; se ele dava alguns conselhos gerais destinados a impedir o retorno dos acidentes no futuro, ele se inspirava quase que exclusivamente nos hábitos pessoais de seu cliente; raramente ele fazia alusão às condições higiênicas criadas pelo meio no qual vive seu doente.[…]o médico não deve mais limitar sua intervenção aos limites estreitos da família; ele deve considerar o meio, cidade ou vilarejo, no qual vive seu doente e conhecer suas condições de insalubridade[…]desvendar à autoridade sanitária todas as circunstâncias que põem em risco à saúde da coletividade, da família ou do indivíduo”. (Brouardel, 1899)
A partir desse momento, espera-se do médico mais do que simplesmente detectar e tratar doenças no corpo dos pacientes. Exige-se, agora, que se interesse pelas condições sócio-econômicas dos indivíduos e coletividades. Contribuições como as de Ramazzini - que nos ensinou a importância de perguntar sobre a ocupação da pessoa, Villermé - que mostrou a associação entre mortalidade e pobreza, e Virchow - que concluiu terem as doenças causas tanto sociais, econômicas e políticas quanto biológicas e físicas, ajudaram a ampliar o escopo da medicina e a colocar o ensino e prática médica sob controle do Estado. Se por um lado a incorporação da medicina social ampliou as possibilidades de explicações para o adoecimento, por outro lado aumentou a responsabilidade dos médicos e Estado pela proteção da saúde das pessoas através de medidas sociais, além de médicas propriamente ditas, modificando a relação dos médicos com seus pacientes. Seja ao interrogar a história ou ao propor o tratamento, a determinação social do processo saúde-doença precisou ser considerada, o que, claramente, contribuiu para o surgimento de uma clínica mais complexa e abrangente.
O inconsciente
A compreensão de que o processo saúde-doença pode ser influenciado, ao menos em parte, pelo fenômeno mental inconsciente, não dependendo apenas do consciente e da razão, e a recolocação do sujeito singular em cena, valorizando o discurso individual, são as principais contribuições da psicanálise para a clínica dos séculos XX e XXI. Não se trata de transformar todos os médicos em psicanalistas, mas de considerar o inconsciente como determinante das ações dos indivíduos ao se refletir sobre as causas de seu adoecimento e elaboração do projeto terapêutico. Algumas propostas de ampliação da clínica como aquela apresentada por Campos (2003), no início dos anos 2000, incorporaram elementos destacados pela psicanálise como a importância de se valorizar o discurso singular dos sujeitos.
Reabilitação psicossocial
Reabilitação psicossocial é a expressão usada para designar o movimento de retirada dos doentes mentais dos manicômios e hospitais psiquiátricos e sua reintegração à sociedade, devolvendo-lhes a possibilidade de expressar sua própria subjetividade. Esse movimento, iniciado por Franco Basaglia na Itália, na décadade 1970, e que inspirou a reforma psiquiátrica brasileira, pautou-se na defesa da democracia, direitos humanos e cidadania, e na crítica à objetivação da pessoa. O poder conferido ao doente mental enquanto sujeito e cidadão, e o acolhimento e valorização de suas falas nos encontros clínicos e na construção dos projetos terapêuticos contribuíram para fortalecer e estimular uma clínica contemporânea mais compartilhada com o doente e menos hierarquizada.
Medicina baseada em evidências
A medicina baseada em evidências consiste no uso consciente, explícito e judicioso das melhores evidências atuais disponíveis para a tomada de decisões acerca do cuidado com pacientes. As evidências surgem de investigações clínicas desenhadas e analisadas graças à epidemiologia clínica, bioestatística e informática médica. Sua influência na prática médica se dá, entre outros, mediante protocolos e diretrizes. É indiscutível o ganho para a qualificação da prática clínica, em parte pela maior homogeneização das ações médicas coerentes com evidências cientificamente comprovadas. Muito provavelmente, foi a clínica tradicional a que mais se beneficiou e se consolidou com a disseminação da medicina baseada em evidências. Por outro lado, sofreu críticas em razão de seu caráter normativo (prescritivo ou proscritivo), seu poder coercitivo, e sua lógica positivista. De qualquer forma, sua influência nas decisões clínicas e na adoção de protocolos e diretrizes como norteadores da prática médica é inegável e duradoura.
Medicina centrada na pessoa
A medicina centrada na pessoa, como seu nome diz, surgiu diante da constatação de que a clínica tradicional mostrava-se insuficiente para resolver problemas de saúde que não estavam limitados à doença, mas que diziam respeito, principalmente, à pessoa doente. Em outras palavras, trata-se de um método integrado e sistemático para juntar a pessoa e a doença. Preocupa-se com a experiência de adoecimento e com a pessoa de forma holística. Tendo em vista que as demandas refratárias ao método clínico tradicional são muito mais frequentes na atenção primária, foi a medicina de família e comunidade que mais se identificou com o método. A Organização Mundial da Saúde, em seu Relatório Mundial de 2008, dedicado à atenção primária em saúde, recomenda a medicina centrada na pessoa, reconhecendo seus benefícios para o paciente, mas também para os profissionais de saúde, mais satisfeitos e realizados profissionalmente.
Clínica ampliada e compartilhada
Os dois adjetivos apostos à palavra clínica referem-se à ampliação do objeto, meios e objetivos, e ao maior protagonismo do paciente nos encontros clínicos, respectivamente. O objeto de atenção da clínica tradicional é a doença. Na clínica ampliada, enfatiza-se o sujeito e o contexto, porém, sem descuidar da doença. Por isso, o adjetivo ampliada. A expressão foi cunhada por Gastão Wagner de Sousa Campos, professor titular de saúde coletiva da faculdade de ciências médicas da universidade estadual de Campinas (Unicamp) e diz respeito à clínica do sujeito a partir de influências de Basaglia, Sartre e Gramsci. Do primeiro, Campos aproveitou a valorização da fala do sujeito adoecido ou com risco de adoecer, a inclusão deste na elaboração de seu próprio projeto terapêutico, a recusa à objetivação e redução da pessoa doente à um caso de doença. De Sartre, emprestou o conceito do sujeito como responsável por suas decisões e pelo seu caminhar na vida, avesso à postura passiva de que o outro (profissional de saúde) é que decide, sozinho, a trajetória futura da pessoa doente. Nesse sentido, a clínica ampliada e compartilhada se distancia da clínica tradicional por não admitir a dominação consentida (conceito de Gramsci), isto é, a postura de concordância passiva do paciente em relação ao profissional da saúde detentor do saber e poder. Assim, a consulta transforma-se em espaço tanto da prática médica no seu sentido estrito, mas também de pactuação e negociação.
Neste tipo de clínica, há espaço para demandas singulares, para o imprevisível, para demandas que não podem ser simplesmente encaixadas em doenças. Isso exige ferramentas outras que a anamnese tradicional, o exame físico e o raciocínio patofisiológico. Há necessidade de se explorar a história de vida dos sujeitos, uma escuta menos seletiva, menos dirigida e mais aberta e tolerante com o inesperado e o imprevisível, da contribuição da clínica de outras categorias profissionais que não o médico, de outras teorias além da biomedicina, de reuniões de equipe, apoio matricial, construção de projetos terapêuticos singulares. Tem como objetivos não somente a prevenção, cuidado, tratamento e cura das doenças, a reabilitação, a promoção da saúde, mas também que a pessoa faça escolhas, siga caminhando na vida, e não se reduza à doença que porventura a acompanhe.
A complexidade da clínica contemporânea na atenção primária
O método clínico tradicional continua hegemônico, potente, com valor de uso, ainda mais confiável com os aportes da medicina baseada em evidências, porém não suficiente e adequado para responder à grande parte das demandas que afloram nos encontros clínicos da atenção primária, onde os discursos dos pacientes podem chegar ainda “crus”, desorganizados, sem a intervenção prévia da medicina, relacionados à esfera sócio-cultural, subjetividade e singularidade dos sujeitos. Ainda assim, espera-se que a equipe de saúde da família resolva de 85% à 90% de todas as demandas que recebe. Para tanto, não basta a clínica tradicional, e talvez nem a organização atual da rede de atenção à saúde, ainda fragmentada e com dificuldade de comunicação entre seus diferentes pontos.
Nos encontros clínicos, os profissionais da Saúde da Família precisam conversar sobre a história da doença, sintomas, itinerários terapêuticos, experiências de adoecimento, história de vida, crenças, relações familiares e profissionais, ocupações, situação sócio-econômica, interesses, desejos, sentimentos, medos, projetos para o futuro. Também precisam abrir espaço para falas não previstas. Essa maior abrangência de objetos de interesse possibilita compreender melhor a determinação do processo saúde-adoecimento dos diferentes e singulares indivíduos, famílias e coletividades e vislumbrar uma diversidade maior de estratégias de solução. As atividades cotidianas dos profissionais da atenção primária acompanharam tais mudanças no sentido de maior diversidade e complexidade. Se no passado eram suficientes as consultas individuais, hoje não. Somaram-se a elas as consultas conjuntas com outros profissionais, grupos educativos e/ou terapêuticos, visitas domiciliarias, reuniões de equipe, discussão de casos, construção de projetos terapêuticos singulares, projetos de intervenção coletivos, encontros e ações intersetoriais, trabalho multidisciplinar e interprofissional, ações de vigilância em saúde, educação em saúde, educação permanente, coordenação do cuidado, trabalho em rede, participação na gestão através de colegiados de unidades e participação social em conselhos locais e de outras esferas. Essa forma abrangente de conceber o campo da medicina parece trazer maior satisfação aos profissionais da área da saúde e seus pacientes desde que disponham de condições adequadas e satisfatórias. Caso contrário, pode gerar sofrimento.
O enorme avanço na compreensão ampliada e holística do processo saúde-doença necessita de correspondente transformação no modo de organizar a atenção à saúde, exigindo de gestores e formuladores de políticas públicas um olhar também ampliado no sentido de repensar processos de trabalho, contratualizações, papéis das diferentes categorias profissionais. Da mesma forma, o ensino das profissões da área da saúde deve avançar na mesma direção.
Em suma, o crescimento da atenção primária e a complexidade da sociedade contemporânea têm colocado o desafio de uma prática médica mais complexa e abrangente, diferente daquela que tradicionalmente é ensinada nas escolas médicas.
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