domingo, 22 de setembro de 2024

MARCHA CEIFANTE EM LUANDA

 O cenário eram as ruas de Luanda. Caminhávamos atentos às imagens, cores, cenas, paisagens, meios de transporte, construções e pessoas da fervilhante capital angolana.  O trânsito, aparentemente caótico, em razão de muitos carros, candongas - vans azuis e brancas que funcionam como lotações clandestinas, motos, caminhonetes, kupapatas - motos com reboque para passageiros, que interagem nas ruas e avenidas desprovidas de semáforos, flui ora lentamente, ora um pouco mais rápido. Mesmo quando se forma um verdadeiro novelo de veículos que quase se encostam e tudo parece fadado à uma total imobilidade, alguns hábeis condutores recuam cerca de trinta centímetros para que outros avancem o mesmo, e, de repente, volta-se a circular. 

As calçadas estão quase sempre ocupadas por uma multidão, num vai e vem pulsante. Destacam-se as zungueiras, ágeis e cuidadosas para não derrubarem os produtos que carregam sobre as cabeças. Há também as mulheres que se acomodam na calçada, ao lado de um fogãozinho, vendendo banana pão (banana da terra), mandioca ou amendoim, fontes de energia para os transeuntes. 

Sobre um saco e um pano brancos esticados sobre o chão da calçada, observamos peixes de rio, aguardando compradores. Enquanto estes não chegavam, eram as moscas que lhes rodeavam. Mais adiante, uma mulher cortava cebola. Tinha cinquenta anos e era hipertensa. Sua mãe também sofrera desse mal e falecera com derrame cerebral antes dos sessenta anos de idade. Ao lado dessa mulher, uma filha lavava louça numa pia ao ar livre e outra comia. Eram jovens. Ao lado delas, um balde com grandes peixes de mar que seriam servidos no almoço daquele dia para os clientes que preferem comer em casas de famílias do que em restaurantes.     

Os angolanos que vimos, em sua maioria, são bonitos, magros, com belos sorrisos. No dia a dia, demonstram preocupação. Têm motivos para se preocupar. A música lhes ajuda a seguir adiante. Sexta-feira é dia de crianças de muitas escolas irem vestidas com roupas “africanas”. Ficam ainda mais lindas e embelezam as calçadas da cidade.

Duas mulheres passaram perto de nós, conversando. Uma, mais alta, portava um turbante rosa e um vestido estampado em preto, branco, verde e amarelo, deixando o ombro esquerdo à vista. Portava uma correntinha fina dourada com um pingente em forma de cubo. A outra cobria a cabeça com um tipo de gorro com figuras geométricas em preto e bege. Seu vestido era azul e deixava o ombro e braço direitos à mostra. Nos chamou a atenção sua marcha ceifante, caracterizada "pela diminuição da flexão e extensão dos membros inferiores, diminuindo a sua oscilação para frente e para trás, resultando em uma abdução exagerada do membro parético durante a fase de balanço”. (IWABE, DIZ & BARUDY, 2008, p. 295) Melhor dizer que sua perna esquerda fazia um movimento no formato de uma foice. Ficamos com vontade de nos aproximar e perguntar se era mesmo um derrame, chamado pelos médicos de acidente vascular encefálico, a causa daquela forma de caminhar. Mas, enquanto as reflexões passavam de sinapse a sinapse, as jovens mulheres se foram. Pouco tempo depois, as avistamos novamente e, sem hesitar, caminhamos na direção delas. Nos receberam com simpatia e sorrisos. Havia alguma tristeza no semblante de ambas. Tinham ido comprar umas ervas para fazer chá para o filho de uma delas que apresentava cólica abdominal. Perguntamos à mais baixa se ela havia tido um derrame e ela respondeu afirmativamente. Tinha trinta e oito anos e era mãe de sete filhos. O infarto cerebral acontecera quatro anos antes. Sofria com hipertensão arterial, doença cuja prevalência e gravidade são maiores entre negros se comparadas a pessoas brancas. Tão jovem e já com sequela de acidente vascular encefálico! Qual a chance de ter outro? Perguntamos se era acompanhada por médico e se tomava remédios. Infelizmente não era esse o caso. Como grande parte da população, não tinha acesso a seguimento médico em centro de saúde e a medicamentos de graça.

Meses depois, já no Brasil, conversamos com um médico angolano sobre a atenção primária em saúde em Angola. Perguntamos como seria o atendimento de uma pessoa hipertensa, passo a passo. Em geral, seria recebida por um profissional da enfermagem, pois não contam com recepcionista. Em alguns lugares, o enfermeiro só começa a atender na unidade básica de saúde após trabalhar em sua “lavra”, nas primeiras horas do dia. Cabe a ele aferir a pressão arterial do paciente, se o esfigmomanômetro estiver disponível, o que nem sempre é o caso. Não é certeza a presença de médico no local e, por causa disso, os enfermeiros estão autorizados a fazer a receita dos medicamentos. Contudo, isso não garante que o tratamento farmacológico seja iniciado, pois raramente o paciente hipertenso encontrará os remédios de graça na rede pública e, comumente, não terá condições financeiras para comprá-los. Tal descrição deixava claro que o derrame da jovem mulher com quem conversamos em Luanda não era excepcional.

De acordo com diretores e médicos de hospitais do país, as unidades de emergência e de terapia intensiva desses serviços recebem muitos casos graves de acidente vascular encefálico, com elevada taxa de letalidade (acima de dez por cento), sendo a maioria do tipo hemorrágico.

A expectativa de vida em Angola tem diminuído nos últimos anos e parece estar ao redor de sessenta e um anos. (REIS, 2022) Durante a 2a Conferência Científica da Universidade Agostinho Neto, em maio deste ano, ouvimos falar em cinquenta e oito anos. As principais causas de morte são malária, diarreias agudas, pneumonia.

Angola tem uma população de cerca de 35 milhões de habitantes, não muito diferente do Estado de São Paulo, com 44 milhões. Grande diferença existe no número de médicos em atividade. O país africano conta com cerca 14.000, entre angolanos (8.000 a 9.000) e estrangeiros, e o estado brasileiro com pouco mais de 166.000. (SONHI, 2023; CREMESP, 2024; XINHUA, 2023) "Angola tem apenas 2,48 médicos por cada 10 mil habitantes, ficando abaixo da densidade recomendada pela Organização Mundial de Saúde, de dez médicos por 10 mil habitantes." (CM JORNAL, 2024)  O Ministério de Saúde pretende formar 38.000 profissionais de saúde até 2027. (XINHUA, 2023)   

Nos parece que aqueles responsáveis pela formação de profissionais de saúde em Angola devam priorizar a atenção primária, o cuidado a partir de unidades básicas de saúde, pois as principais doenças responsáveis por internações e óbitos podem ser prevenidas, diagnosticadas e tratadas nesse nível de atenção.




Referências bibliográficas

Cristina Iwabe, Maria Angélica da Rocha Diz, Daniela Pinho Barudy. Análise cinemática da marcha em indivíduos com Acidente Vascular Encefálico. Rev Neurocienc 2008;16/4:292-296.

Cremesp. Demografia médica 2024. 8 de abril de 2024. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=6460

Sonhi, A. País tem 14 mil médicos preparados para atender toda a população. Jornal de Angola. 26 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pais-tem-14-mil-medicos-preparados-para-atender-toda-a-populacao/

CM Jornal. Mundo. África. Angola tem 2,48 médicos por 10 mil habitantes. 7 de julho de 2024. Disponível em: https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/angola-tem-248-medicos-por-10-mil-habitantes.  

Xinhua. Xinhua português. Angola formará 38 mil profissionais de saúde até 2027. 27 de setembro de 2023. Disponível em: https://portuguese.news.cn/20230927/1ce261e052df4cc683464f3c4805e5e3/c.html#:~:text=.  

Reis, JJ. Angolanos estão mais pobres e vivem menos tempo do que há quatro anos.  Expansão. 23 de setembro de 2022. Disponível em: https://expansao.co.ao/angola/interior/angolanos-estao-mais-pobres-e-vivem-menos-tempo-do-que-ha-quatro-anos-110110.html.  

domingo, 15 de setembro de 2024

ZUNGUEIRAS

 Zungueira é o nome dado à mulher que caminha “o dia todo”, carregando sobre a cabeça uma bacia contendo produtos para serem vendidos aos moradores de Luanda. O vocábulo provém de zungar, que significa caminhar sem parar de um lado para outro, de acordo com o que ouvimos de luandenses com quem conversamos. A população está habituada a adquirir produtos das zungueiras, provavelmente mais em conta que nos mercados.

Em sua maioria, são longilíneas, magras, com pernas finas, vestem saia e blusa e calçam chinelos. Sobre suas cabeças, um pano enrolado em círculo, sobre o qual equilibram uma bacia colorida contendo os produtos. Por vezes, a bacia é substituída por grandes sacolas ou sacos de pano. Não raras vezes, além da bacia sobre a cabeça, carregam nos braços sacolas ou baldes. Algumas, ainda acomodam crianças nas costas.

Nas bacias, sobre suas cabeças, passeiam abacates, mandiocas, milhos, frangos, peixes, ovos cozidos, bananas, roupas, produtos de limpeza, materiais escolares, e qualquer outro produto que os habitantes da capital precisem para abastecer suas casas. Não é difícil imaginar o peso dessas bacias cheias.

Difícil é acreditar que andam, ou zungam, por cerca de vinte a trinta quilômetros diariamente, enfrentando o calor, dificuldade de acesso à água e banheiros, e o trânsito caótico, responsável por grande número de atropelamentos. Luanda, com aproximadamente dois milhões e meio de habitantes, não conta com semáforos e quase nenhuma passarela para cruzar a pé as avenidas. O dinheiro que conseguem é suficiente apenas para os gastos daquele dia, de forma que a cena se repete no amanhecer seguinte, sem a possibilidade de períodos mais longos de descanso. Quando retornam ao lar, emendam a atividade de zungueira com a de dona de casa, responsável por cozinhar, varrer, arrumar, lavar e guardar roupas e cuidar de muitos filhos, amiúde numerosos, conforme tradição cultural que encarrega familiares do casal de decidirem a quantidade de herdeiros que eles devem ter. A maioria das famílias teve ou tem uma ou mais zungueiras.

Um verdadeiro exército de mulheres, tal qual um agitado formigueiro, dando cor e vida à maior cidade de Angola. Impossível que os visitantes permaneçam indiferentes às zungueiras. Foi o nosso caso, recém chegados ali para atividades junto à Universidade Agostinho Neto, como membros de um programa internacional de extensão universitária. Estão retratadas em pinturas muito coloridas expostas no mercado de arte do Benfica, visitado por turistas. Ao que parece, não fomos os únicos sensibilizados pela presença delas nas ruas e calçadas de Luanda. Uma incômoda mistura de beleza artística e sofrimento feminino. 

Perguntamos, mais de uma vez e a diferentes angolanos, sobre a condição das zungueiras. Nos parecia que deveriam ter dor no pescoço, ombros, dorso, região lombar, pernas e pés. Quem sabe até dor na alma. Enquadrariam-se num capítulo importante da Saúde do Trabalhador, que se ocuparia dos efeitos de um trabalho informal extremamente extenuante sobre a saúde de mulheres, havendo, portanto, um relevante fator para uma análise mais fidedigna da condição observada - o gênero. Um tema de grande interesse para a Saúde Coletiva, notadamente graças à contribuição das Ciências Sociais para a compreensão das causas do sofrimento populacional.

As respostas que obtivemos não nos tranquilizaram. 

Alguns homens simplesmente nos disseram que as zungueiras estão acostumadas a esse tipo de trabalho. Outros comentaram que elas precisam zungar para sobreviver e que preferem isso à alternativa de não ter essa fonte de renda, pois o governo “ameaça" proibir o trabalho delas. 

As mulheres não “ousaram" se aprofundar no tema e não fizeram nenhum comentário sobre as prováveis dores do corpo e alma. O quase silêncio falou por si e nos entristeceu diante da sensação de que a questão seria mais profunda e grave do que supúnhamos.

Não se trata somente de proibir, mas de oferecer outras formas menos desgastantes de ganho de renda, e de considerar o papel das mulheres na sociedade, já sobrecarregadas pelos afazeres do lar, mormente pela responsabilidade atribuída a elas no cuidado de grandes famílias. 

A compreensão da questão das zungueiras passa pela aproximação e compreensão de uma série de outros fenômenos, culturais, sociais e econômicos.

Acreditamos que a extensão universitária, em razão de sua liberdade para interagir dialogicamente com outros setores da sociedade, possa contribuir significativamente para compreender e analisar, conjuntamente com pessoas da comunidade, o papel e sofrimento das zungueiras.

Outra estratégia que nos parece muito promissora é o investimento na Atenção Primária em Saúde, sob a égide de uma Clínica Ampliada e Compartilhada, que considera não apenas a doença, mas, e sobretudo, a pessoa singular, com sua história de vida, valores, crenças, desejos, saberes e experiências. Seria nessa perspectiva que essa mulheres deveriam ser acolhidas nos serviços de saúde.

Cabe às universidades e ao Ministério da Saúde contribuir para que tais propostas ganhem vida em Luanda.