domingo, 15 de setembro de 2024

ZUNGUEIRAS

 Zungueira é o nome dado à mulher que caminha “o dia todo”, carregando sobre a cabeça uma bacia contendo produtos para serem vendidos aos moradores de Luanda. O vocábulo provém de zungar, que significa caminhar sem parar de um lado para outro, de acordo com o que ouvimos de luandenses com quem conversamos. A população está habituada a adquirir produtos das zungueiras, provavelmente mais em conta que nos mercados.

Em sua maioria, são longilíneas, magras, com pernas finas, vestem saia e blusa e calçam chinelos. Sobre suas cabeças, um pano enrolado em círculo, sobre o qual equilibram uma bacia colorida contendo os produtos. Por vezes, a bacia é substituída por grandes sacolas ou sacos de pano. Não raras vezes, além da bacia sobre a cabeça, carregam nos braços sacolas ou baldes. Algumas, ainda acomodam crianças nas costas.

Nas bacias, sobre suas cabeças, passeiam abacates, mandiocas, milhos, frangos, peixes, ovos cozidos, bananas, roupas, produtos de limpeza, materiais escolares, e qualquer outro produto que os habitantes da capital precisem para abastecer suas casas. Não é difícil imaginar o peso dessas bacias cheias.

Difícil é acreditar que andam, ou zungam, por cerca de vinte a trinta quilômetros diariamente, enfrentando o calor, dificuldade de acesso à água e banheiros, e o trânsito caótico, responsável por grande número de atropelamentos. Luanda, com aproximadamente dois milhões e meio de habitantes, não conta com semáforos e quase nenhuma passarela para cruzar a pé as avenidas. O dinheiro que conseguem é suficiente apenas para os gastos daquele dia, de forma que a cena se repete no amanhecer seguinte, sem a possibilidade de períodos mais longos de descanso. Quando retornam ao lar, emendam a atividade de zungueira com a de dona de casa, responsável por cozinhar, varrer, arrumar, lavar e guardar roupas e cuidar de muitos filhos, amiúde numerosos, conforme tradição cultural que encarrega familiares do casal de decidirem a quantidade de herdeiros que eles devem ter. A maioria das famílias teve ou tem uma ou mais zungueiras.

Um verdadeiro exército de mulheres, tal qual um agitado formigueiro, dando cor e vida à maior cidade de Angola. Impossível que os visitantes permaneçam indiferentes às zungueiras. Foi o nosso caso, recém chegados ali para atividades junto à Universidade Agostinho Neto, como membros de um programa internacional de extensão universitária. Estão retratadas em pinturas muito coloridas expostas no mercado de arte do Benfica, visitado por turistas. Ao que parece, não fomos os únicos sensibilizados pela presença delas nas ruas e calçadas de Luanda. Uma incômoda mistura de beleza artística e sofrimento feminino. 

Perguntamos, mais de uma vez e a diferentes angolanos, sobre a condição das zungueiras. Nos parecia que deveriam ter dor no pescoço, ombros, dorso, região lombar, pernas e pés. Quem sabe até dor na alma. Enquadrariam-se num capítulo importante da Saúde do Trabalhador, que se ocuparia dos efeitos de um trabalho informal extremamente extenuante sobre a saúde de mulheres, havendo, portanto, um relevante fator para uma análise mais fidedigna da condição observada - o gênero. Um tema de grande interesse para a Saúde Coletiva, notadamente graças à contribuição das Ciências Sociais para a compreensão das causas do sofrimento populacional.

As respostas que obtivemos não nos tranquilizaram. 

Alguns homens simplesmente nos disseram que as zungueiras estão acostumadas a esse tipo de trabalho. Outros comentaram que elas precisam zungar para sobreviver e que preferem isso à alternativa de não ter essa fonte de renda, pois o governo “ameaça" proibir o trabalho delas. 

As mulheres não “ousaram" se aprofundar no tema e não fizeram nenhum comentário sobre as prováveis dores do corpo e alma. O quase silêncio falou por si e nos entristeceu diante da sensação de que a questão seria mais profunda e grave do que supúnhamos.

Não se trata somente de proibir, mas de oferecer outras formas menos desgastantes de ganho de renda, e de considerar o papel das mulheres na sociedade, já sobrecarregadas pelos afazeres do lar, mormente pela responsabilidade atribuída a elas no cuidado de grandes famílias. 

A compreensão da questão das zungueiras passa pela aproximação e compreensão de uma série de outros fenômenos, culturais, sociais e econômicos.

Acreditamos que a extensão universitária, em razão de sua liberdade para interagir dialogicamente com outros setores da sociedade, possa contribuir significativamente para compreender e analisar, conjuntamente com pessoas da comunidade, o papel e sofrimento das zungueiras.

Outra estratégia que nos parece muito promissora é o investimento na Atenção Primária em Saúde, sob a égide de uma Clínica Ampliada e Compartilhada, que considera não apenas a doença, mas, e sobretudo, a pessoa singular, com sua história de vida, valores, crenças, desejos, saberes e experiências. Seria nessa perspectiva que essa mulheres deveriam ser acolhidas nos serviços de saúde.

Cabe às universidades e ao Ministério da Saúde contribuir para que tais propostas ganhem vida em Luanda.










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