domingo, 26 de janeiro de 2025

Dor de dente: quanta injustiça

    Esta crônica eu preferia não ter que escrever, por causa do grau de sofrimento humano que a gerou. Mas não foi possível ficar calado. Ela nasceu de uma brutal dor de dente, e de escritos de Olavo Bilac e Mikhail Bulgákov. Trata-se da mesma personagem de crônica anterior, intitulada “A Pista”, publicada no livro “Reflexões e crônicas sobre a Clínica Ampliada”. (BEDRIKOW, 2022) Só que quinze anos depois, tempo suficiente para que ela sofresse, continuadamente, violência de gênero. Os socos na face contribuíram, sem sombra de dúvidas, para arruinar, definitivamente, os dentes já desgastados pelos anos de tabagismo. Muitos foram sendo extraídos ao longo da última década. Parou de sorrir, por vergonha. Mas amiúde não havia motivo para sorrisos, dada as provas que a vida impôs à jovem. Quando finalmente conseguiu libertar-se do marido bárbaro, seus dentes impediram que esquecesse do traste. Volta e meia, insistiam em causar dor. Infelizmente, o acesso a dentista sempre lhe foi dificultoso. Cinco senhas eram distribuídas aos que primeiro chegassem ao centro de saúde. Uma disputa cruel para a mãe de quatro filhos que precisavam apresentar-se à escola logo cedo, diariamente. Se quisesse chegar à unidade de saúde entre quatro e meia e cinco horas da manhã,  na esperança de ser contemplada com uma das senhas, precisava sair de casa ainda na escuridão da noite, e deixar os filhos sozinhos. No pronto socorro, ofereciam-lhe apenas injeção intramuscular e medicação no soro, de consumo rápido e efeito quase que fugaz. As receitas pouco variavam. O corpo já esperava pela amoxicilina ou cefalexina. Há cerca de três meses, a situação piorou muito. Desistiu do postinho do seu bairro, pois aguarda, sem êxito, há meses ser chamada para consulta. Com ajuda de amigos, vem pagando dentista particular. Foram várias intervenções com drenagem de pus e limpeza. Os pontos insistem em reabrir e tudo volta à estaca zero. A dor, como ela costuma dizer, não a deseja nem a um cachorro. Quantas vezes passou a noite andando para cima e para baixo na viela! Teve que diminuir bastante a ingesta de alimentos e, agora, tem vergonha também da magreza. Mostra os ossos salientes, das clavículas, dos ombros. A última cirurgia na boca foi atroz. O anestésico não agiu como esperado. Ficou pálida. Transpirou. Preferia a dor de parto. Saiu da sala com treze pontos na boca. A prima precisou ampará-la, tanto na ida como na volta. E pensar que a anestesia moderna desenvolveu-se, em grande medida, para o tratamento dentário, primeiro com o uso de éter e óxido nítrico, e mais tarde o clorofórmio, a partir da década de 1840. (Porter, 1996, p. 228-229) 

O triste episódio resumido acima me impeliu a reler um trecho do livro “Anotações de um jovem médico e outras narrativas”, de Mikhail Afanasievitch Bulgákov, nascido em Kiev, na Ucrânia, em 1891, e que exerceu a medicina antes de se tornar escritor. Vale a pena conhecer (Bulgákov, 2020, p. 96-98):


Pois bem… Recordo-me perfeitamente daquela fisionomia corada, mas em intenso sofrimento, no banquinho à minha frente. Era um soldado retornando, junto com outros, do front que se desmanchava após a revolução. Lembro muito bem também do dente cariado, forte e colossal, solidamente cravado no maxilar. Apertando os olhos com uma expressão sábia e soltando grasnidos de preocupação, coloquei as pinças no dente, momento em que, todavia, lembrei-me nitidamente do conhecido conto de Tchekhov sobre como arrancaram o dente de um sacristão. E então, pela primeira vez, esse conto não me pareceu nem um pouquinho engraçado.

Ouviu-se um estalo na boca e o soldado uivou brevemente: “Auuu!”.

Depois disso, cessou a resistência sob a minha mão e as pinças saltaram da boca ainda apertando um objeto branco e ensanguentado. Aí o meu coração paralisou de medo, porque o objeto ultrapassava em volume qualquer dente, mesmo o molar de um soldado. De início não entendi nada, mas depois por pouco não me pus a soluçar: nas pinças, é verdade, sobressaía um dente com raízes bem longas, mas do dente pendia um enorme pedaço de osso, irregular, vividamente branco.

“Quebrei o maxilar dele”, pensei, e as minhas pernas fraquejaram. Bendizendo a sorte por nem o enfermeiro, nem as parteiras estarem por perto, com um movimento sorrateiro eu embrulhei o fruto do meu trabalho malfeito em gaze e o escondi no bolso. O soldado se balançava no banquinho, segurando-se com uma mão ao pé da cadeira obstétrica e, com a outra, ao pé do banquinho, e me olhava com olhos esbugalhados e completamente atônitos. Desnorteado, enfiei-lhe na cara um copo com uma solução de permanganato de potássio e ordenei: “Bocheche”.


A descrição feita por Bulgákov deixa transparecer a dor do paciente. O doutor autor, diante do padecimento de seu paciente, recuperou na memória o conto de Tchekhov. Eu, também médico escritor, fiz o mesmo, espontaneamente. Frente ao quase insuportável martírio de minha personagem, trouxe à tona o trecho da obra de Bulgákov. Não bastaram as pinças, bisturis e estetoscópios. Tivemos que lançar mão de livros, da literatura, para compreender e aliviar o sofrimento. 

Outro escritor médico - quase, pois não concluiu o curso de medicina - pediu passagem. Não tive como recusar a presença de Olavo Bilac nestas linhas, em razão de uma crônica sua publicada na Gazeta de Notícias de 1894 (BILAC, 1894, p. 64-67):

Não sei a que propósito me vem agora esta recordação. A alma tem às vezes destes fenômenos singulares. Começa-se a meditar sobre um fato, e, de repente, é outro, inteiramente outro, o que se impõe à meditação. A que vem agora esta crônica livre, lembrando seis horas tristes que passei há dez anos?

Foi, creio, em 1883. Estudava eu medicina, praticando, como interno supra-numerário, nas enfermarias da Misericórdia. Faltou um dia ao serviço o interno efetivo de uma das enfermarias de cirurgia. Fui designado para substituí-lo. E, justamente, o professor, que dirigia a clínica nessa enfermaria, teve de praticar em um enfermo uma operação de certa gravidade. Tratava-se, bem me recordo, da ablação de um largo trecho do maxilar inferior, roído pela cárie. O doente era um caboclo reforçado, um belo exemplar de homem, face bronzeada, cabelos corridos e negros, ohos pequenos, cujo brilho singular e fixo perturbava. Tinha uma lesão cardíaca. Essa lesão, e, mais, o fato de carecer a operação de ser feita em uma posição incômoda, devendo o sangue encher a boca do paciente, tapando-lhe a garganta, impediam que se procedesse à cloroformização prévia.

De modo que a horrível operação, cujos pormenores e incidentes me estão ainda hoje dolorosamente gravados na memória, teve de ser suportada pelo desgraçado, em perfeita e consciente vigília, com todos os nervos em sensibilidade completa… Foi medonho! Durante hora e meia, assisti ao espetáculo da mais bela, da mais admirável, da mais incrível coragem que um homem pode mostrar! Estendido a fio comprido sobre uma mesa, com as pernas e os braços contidos pelos ajudantes, o doente tina apenas, por todo o corpo, um tremor contínuo, ininterrompido, uma agitação de toda a pele. Os seus olhos, pequenos e faiscantes como dous carbúnculos, não se fecharam nunca: durante hora e meia, fixos, terrivelmente fixos, brilharam secos, sem uma lágrima…

Primeiro foi o bisturi que rasgou a pele, os músculos, pondo a descoberto o osso que a cárie comia. Depois, as pinças homeostáticas que apertaram as extremidades toradas de artérias. Depois o serrote que começou a ranger no osso, com um barulho que nos dava a todos arrepios de terror. Depois o curativo. E do começo até o fim, os olhos do caboclo rutilavam, sinistramente abertos, e todo o seu corpo tremia de leve sob as nossas mãos, sacudido pela dor que aquela carne padecia e pelo esforço sobre-humano que continha aquele espírito…

*         *          *

Quando transportado para o leito, na enfermaria, fecharam-se-lhe os olhos. Adormeceu.

Passava de meio-dia. Só tornei a vê-lo, à meia-noite, quando, chegada a hora do meu quarto, me vieram acordar para que eu fosse substituir o primeiro interno.

Oh! A sinistra, a indescritível viagem, à meia-noite, por vinte corredores sem fim, de chão lustroso e escorregadio, - só, estremunhado ainda de sono, passando por portas negras de enfermarias, frouxamente alumiadas por lâmpadas oscilantes, - só, dentro daquela imensidade escura, como dentro de um túnel de sonho, povoado de gemidos, de soluços, de estertores de febre, de sons incoerentes e vagos, de barulhos de tosse, e cheio de um cheiro indefinível, misto, de ácido fênico, de podridão, de suor de agonia!…

Depois, a vigília. Na enfermaria quase sem luz, numa penumbra em que os vultos das camas regularmente alinhadas mal se distinguem, uma mesa pequena posta junto da cama do operado. Sobre a mesa, fios, pinças, pulverizadores de Lisner, frascos pequenos com ácido fênico e perclourureto de ferro. Uma vela, uma garrafa de vinho do Porto, garrafas de remédios, poções calmantes; e à mão, entre todos esses apetrechos, o termômetro.

Aproximei-me da cama, inclinei-me para o doente.

Dormia. Uma respiração irregular, entrecortada, lhe levantava e abaixava intermitentemente o peito. Ardia-lhe a pele, queimada de febre. Tomei-lhe a temperatura, registrei-a na papeleta, e acendendo a vela, sentei-me em frente à mesa, e tentei ler um livro que levava comigo.

Começou então a escoar-se o tempo mais longo por que tenho passado na minha vida. A chama da vela, agitando-se levemente, abria em torno da mesa um círculo de claridade: fora dele a escuridão da enfermaria aumentava pelo contraste. Naquela enorme sala, altíssima, comunicando, adiante e atrás de mim, com outras salas, o menor barulho tomava proporções estranhas, exagerando-se, alucinando-me. E os meus olhos, afundando-se na extensão das salas que se sucediam, avistaram um sem número de lâmpadas mortiças, tremendo, tremendo, continuando-se a perder de vista. Daí a pouco, aquele meio apavorante me havia dominado. Passeavam pela escuridão claridades vagas, como de sudários brancos voando. Os rumores confusos de tosse, de gemidos de respirações difíceis, tomavam corpo, avultavam, entravam-me pelo ouvido, martelando-me o cérebro. A morte estava ali perto de mim. E eu sentia o seu hálito gelado bafejar-me a nuca: e tinha a certeza absoluta, precisa, iniludível, de que me bastava voltar a cabeça para vê-la…

Nesse momento senti que o operado se agitava no leito. Tive um suspiro de alívio, abençoando aquele movimento, que me arrancava das mãos do terror que me empolgavam. Levantei-me e aproximei-me da cama, com a vela acesa em punho. O desgraçado acordara. E a primeira cousa que vi foram os seus olhos, os seus mesmos olhos de durante a operação, abertos, horrivelmente abertos, fixos em mim.

E só então, compreendi o que esses olhos me diziam de manhã, quando os bisturis rangiam sobre a carne ensanguentada, e o que me estava dizendo naquele momento. Havia nesses olhos, que se enchiam de um clarão sinistro, um tal desprezo pela dor, um tal nojo pela vida, uma tão absoluta serenidade diante da morte, que eu admirei esse homem extraordinário, como nunca mais hei de admirar ninguém…

Tomei-lhe a temperatura. A febre baixara. Mas a respiração era difícil. E alguma cousa, não sei o quê, me incutiu no espírito a convicção de que ele ia morrer. E os seus olhos me fitavam. Dei-lhe uma colher da poção, cheguei a minha face até perto da sua, falei-lhe carinhosamente, com a voz quase soluçando, como se fala a um irmão que vai morrer… Ele olhava-me sempre, como quem quer falar e não pode, como quem precisa dizer uma cousa que está enchendo a alma e não pode passar da garganta. Ao cabo de algum tempo, cerrou as pálpebras… Adormeceu, ou pareceu adormecer de novo.

Voltei para minha mesa.

         *          *         *

Então, mais calmo, fortificado pelo nobre espetáculo daquela nobre coragem, começava eu a ler, quando um rumor diferente dos outros que haviam até então povoado a enfermaria, me chamou a atenção. Era um como arrastar de sandálias, acompanhado de um cicio brando… E, olhando para a frente, vi que longe, muito longe, na escuridão da última sala, balançava-se uma luz, quase ao nível do chão. De quando em quando sumia-se a luz e cessava o rumor. Depois aparecia ela mais próxima e ouvia-se mais distintamente o arrastar de sandálias e o cicio da prece. Compreendi. Era uma irmã de caridade que, com a sua lanterna, fazia a ronda noturna.

Quando ela entrou na minha enfermaria, parou junto de mim, informou-se do operado. Chegamo-nos a ele. Acordara outra vez. Agora a respiração era angustiada, estertorosa. E os seus olhos abertos, terrivelmente abertos, iam da minha face à face da irmã…

Boa irmã! Sem dizer-me uma palavra, sorriu tristemente, e, tirando do pescoço o seu pequeno crucifixo de ébano, meteu nas mãos do moribundo. Ele abriu ainda mais os olhos; teve um arranco supremo de todo o corpo na cama e ficou imóvel.

Estava morto.

*          *          *

De joelhos, a irmã rezava. E, antes que, terminada a prece, ela se levantasse para lhe cerrar as pálpebras, eu encostei os meus olhos nos olhos do morto, para neles de perto ler a sublime e inolvidável lição que me davam, o segredo do ânimo inalterável, da coragem soberana e terrível, com que esse homem sereno, - durante a operação, sofrendo dores inconcebíveis, e durante a agonia, sentindo dentro de si o despedaçamento de toda a alma, - olhava impassivelmente para a morte, desprezando as misérias e as torturas da vida.


Os adjetivos escolhidos por Bilac para qualificar a situação descrita, a cirurgia realizada e o enfermo, foram fortes, profundos: "horrível operação, suportada pelo desgraçado, foi medonho”. Nem poderia ser diferente, pois o médico cortou-lhe a pele e músculos e serrou o osso da mandíbula, sem anestesiar o paciente. Talvez faltem adjetivos para descrever apropriadamente a dor que sentiu aquele desgraçado caboclo reforçado, e que se submeteu ao procedimento proposto porque tinha fé na Medicina. Fé que a arte de Hipócrates devolvesse a dignidade de voltar a viver sem a dor diária que a cárie traiçoeira lhe havia imposto, lentamente, corroendo seu interior, até chegar ao osso e à alma. 

Seja no trecho do livro de Bulgákov seja na crônica de Bilac, no momento do intolerável tormento, a comunicação deixou de ser verbal, com frases, e foi substituída pelos olhares. Os olhos, fossem eles esbugalhados, atônitos, faiscantes, fixos, secos, sem lágrimas, abertos ou fechados, moviam-se, indecisos, entre a coragem, a fé e a morte.   

Mais de um século separa os casos descritos por Bulgákov e Bilac daquele que eu testemunho agora. Mas todos eles têm em comum pessoas em grande sofrimento por cáries avançadas, complicadas, necessitando de intervenções cirúrgicas, infelizmente realizadas sem anestesia. Em todos eles, os escritores estavam presentes, na condição de estudantes de medicina ou médicos, e conservaram na memória aqueles episódios violentos. Todos se mostraram sensíveis e abalados com o martírio que presenciaram. 

Os significativos avanços da ciência, tecnologia, medicina, odontologia e saúde pública, ocorridos nos últimos oitenta anos, desde a Segunda Guerra Mundial, deveriam ter impedido que a jovem mulher conhecesse tamanho sofrimento motivado por cáries e infecções orais, em pleno século XXI. No entanto, o que vivenciou nos últimos meses a assemelha aos personagens de Bulgákov e Bilac, como se estivesse no século XIX.

O que está, realmente, na raiz de seu sofrimento é a pobreza, a vergonhosa desigualdade social que aflige o país. O pus retirado da boca, aos poucos, graças às intermináveis cirurgias odontológicas, não consistia apenas numa colação de piócitos, pois estava carregado de injustiça social, muito mais agressiva e duradoura. 

Faltou acesso à educação, à prevenção, ao atendimento odontológico em momento oportuno e de qualidade, ao cuidado integral, ampliado, continuado. Não alcançou o vínculo com a equipe de referência da Saúde da Família. Não recebeu visita domiciliária de agente comunitário de saúde. Sua história de vida, seu familiograma, sua rede social significativa permanecem desconhecidos da equipe. Seu caso não foi objeto de um Projeto Terapêutico Singular. Sequer foi discutido numa reunião de equipe.

A principal diferença entre os contextos da atenção à Saúde no Império Russo, no Brasil de Olavo Bilac e nos dias de hoje, é que já podemos lançar mão da atenção primária como porta de entrada no sistema, como coordenadora do cuidado e oferecer seguimento longitudinal, buscando o cuidado integral da pessoa. É preciso analisar porque não funcionou a Estratégia de Saúde da Família. 

A taxa de brasileiros submetidos a várias extrações dentárias, impedidos de sorrir, seria importante indicador de saúde e da qualidade da atenção à saúde do país.

E não me venham com chorumela dizer que a culpa é da paciente!    



Referências

Bedrikow, Rubens. Reflexões e crônicas sobre a Clínica Ampliada. São Paulo: Hucitec, 2022. 123p. ISBN 978-85-8404-312-5.


Bilac, Olavo. Crônica livre. Gazeta de Notícias, 10 mar 1894. In: Dimas, Antonio. Bilac, o Jornalista: Crônicas: Volume 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Editora da Unicamp, 2006. p. 64-67.


Bulgákov, Mikhail Afanasievitch. Anotações de um jovem médico e outras narrativas. Tradução: Érika Batista. São Paulo: Editora 34, 2020 (1a Edição). 216 p. ISBN 978-65-5525-027-5.


Porter, Roy. Hospitals and surgery. In: Porter, Roy (editor). The Cambridge illustrated history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. ISBN 0-521-44211-7. p. 202-245.

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