sexta-feira, 25 de abril de 2025

Febre amarela: a morte evitável

    Os principais veículos de comunicação noticiaram a morte por febre amarela de um homem de 39 anos de idade na cidade de Campinas, na primeira semana de fevereiro de 2025. Em praticamente todas as matérias, enfatizou-se o fato do homem morar na região rural do município, no distrito de Sousas, assim como a imediata ação de vacinação voltada aos moradores do entorno de sua residência. Essas duas atitudes serviram para educar as pessoas sobre a importância de procurar um centro de saúde para receber a vacina, caso não a tenham recebido nenhuma vez durante a vida, e para tranquilizar uma população residente tanto na área rural como na urbana, traumatizada com a doença que ceifou vidas ou provocou a fuga de cerca de dois terços dos habitantes durante a segunda metade do século XIX, ainda na memória coletiva da cidade.

O fato merece reflexão mais aprofundada, pois seu significado não se limita a simples episódio fortuito, isolado e sem gravidade.

A febre amarela é doença infecciosa potencialmente grave, transmitida por mosquitos e que pode cursar com febre e icterícia, isto é, conjuntivas e pele amareladas, justificando seu nome. Além desses sinais, os doentes podem apresentar cefaleia, fraqueza, dor no corpo, náuseas, vômitos, calafrios, hemorragia e choque, podendo levar à morte. Com exceção da icterícia, as demais manifestações são comuns também em casos de dengue e outras arboviroses, confundindo ou atrasando o diagnóstico da enfermidade, sobretudo em vigência de surto destas outras doenças na cidade. Daí a importância de uma boa história clínica, investigando o local de residência e trabalho do paciente, a presença de outras pessoas doentes na região, e se há notícia de macacos mortos - funcionam como sentinelas.

O mosquito transmissor da febre amarela urbana é o Aedes aegyptii,  o mesmo que veicula o vírus da dengue, chikungunia e zika. Provavelmente, foi introduzido no Brasil pelos navios negreiros, valendo-se da água conservada à bordo, em grandes barris, e transmitindo a doença a escravos e tripulantes. A palavra Aedes provem de aedos, artistas que tocavam lira enquanto recitavam seus poemas, na Grécia Antiga. O dorso do mosquito tem listas negras que lembram uma lira. Por sua vez aegyptii nos faz lembrar de sua origem africana. (Steffen, 2005, p. 52) 

A febre amarela silvestre, adquirida em florestas, tem como vetor insetos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que vivem nas copas de árvores e picam macacos.

Os primeiros casos ocorreram em 1685, trazidos por negros provenientes da Ilha de São Tomé. Voltaria a ocorrer apenas a partir de 1849, principiando na Bahia. (Santos Filho & Novaes, 1996, p. 17)

A primeira epidemia de febre amarela a atingir Campinas, em 1889, encontrou a cidade em declínio por causa do fim da escravatura, após um período de crescimento rápido que a havia transformado no principal centro econômico do sul do país. Acredita-se que uma mulher suíça - Rosa Beck -, de 24 anos de idade, recém-chegada ao Brasil, tenha contraído a doença no porto de desembarque e manifestado os sintomas já em Campinas, onde pretendia trabalhar como professora de francês. Faleceu a dez de fevereiro, no mesmo mês que o trabalhador falecido em 2025. (Santos Filho e Novaes, 1996, p. 39) Curioso que a gripe espanhola foi introduzida no Brasil por passageiros de um navio britânico proveniente da Lisboa, o Covid-19, por passageiros oriundos da Itália e a febre amarela trazida, provavelmente, de Santos a Campinas por uma suíça.

Essa primeira epidemia causou mortes e pânico, a mortalidade oscilou entre 20% e 25%, fazendo com que a população reduzisse em dois terços, os barões do café se retirassem definitivamente e a cidade praticamente parasse. (Corrêa, 1992, p. 147; Santos Filho & Novaes, 1996)

Podendo contar com poucos médicos residentes na cidade, chegaram outros de outras cidades, como Rio de Janeiro. Acudiram também estudantes de medicina do quinto e sexto anos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. (Santos Filho & Novaes, 1996, p. 55-56)

Adolfo Lutz se fez presente, dedicando-se a observar a doença e a forma de contágio. Ele residiu em Limeira, onde havia uma colônia suiço-alemã, entre 1882 e 1886, quando viajou à Hamburgo, Alemanha, para estagiar com o renomado dermatologista Unna, a fim de adquirir mais conhecimentos sobre a lepra. De volta à São Paulo, em 1888 foi indicado por Unna para colaborar com o Estado do Havaí que lutava contra um número grande de doentes com essa doença. Contudo, interrompeu as tratativas para sua viagem e acorreu a Campinas, onde trabalhou o tempo todo protegido por um mosquiteiro. Viajou ao arquipélago do Havaí apenas em novembro de 1889. (Corrêa, 1992, p. 144-146) Essa passagem de Lutz por Campinas, no momento da grande tragédia da cidade, deve ter pesado no momento dos alunos da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp escolherem o nome de seu Centro Acadêmico.  

Outras epidemias se sucederam em Campinas nos anos seguintes: 1890, 1892, 1896 e 1897.

A primeira epidemia se deu num contexto de disputas de teorias explicativas da forma como as pessoas adquiriam as doenças, num processo de deslegitimação dos miasmas como causadores e valorização do papel das bactérias. No que se refere à febre amarela, o médico cubano Carlos Finlay afirmou, em 1881, que a doença era transmitida por um mosquito. Por outro lado, o médico italiano Giuseppe Sanarelli defendia a teoria da existência de um bacilo icteroide, como responsável pela doença. Esta teoria teve grande aceitação na Europa entre 1897 e 1898. Apesar da resistência de grande parte dos clínicos paulistas, sobretudo das cidades do interior, o comportamento de Lutz, sempre protegido por mosquiteiro, demonstra que a teoria da transmissão por mosquito foi a que prevaleceu na cidade durante a epidemia.

Entre 1902 e 1903, Emílio Ribas coordenou pesquisas no Hospital de Isolamento de São Paulo a fim de comprovar a teoria de Finlay, pois recebia muitas críticas de médicos paulistas. Três voluntários brasileiros, um italiano, Emílio Ribas e Lutz se deixaram picar repetidas vezes, por mosquitos infectados. Os três voluntários desenvolveram sintomas da doença. Outros três voluntários, italianos recém-chegados ao Brasil, dormiram em camas com lençóis sujos com sangue e vômitos de doentes, num quarto fechado e quente, sem mosquitos. Nenhum destes adoeceu. (Almeida, 2009) 

Felizmente, a vacinação previne a doença.

Agora que sabemos que a febre amarela é transmitida por mosquito, que carrega o vírus, que a vacina previne a doença, que é potencialmente grave, podendo causar a morte, podemos analisar melhor o que aconteceu com o morador da zona rural do Distrito de Sousas, em Campinas. 

A primeira reflexão é que a doença na sua forma silvestre, transmitida na zona rural, tende a aumentar cada vez que a cidade avança para as matas ao seu redor, provocando desequilíbrio ecológico. Portanto, a forma como a cidade está se expandindo, com novos condomínios em direção às matas, determina cada vez mais a eclosão de novos surtos de doenças, velhas ou novas.

O fato de um morador de área rural, com maior risco de febre amarela, não estar vacinado também deve ser analisado. Uma ação de vigilância pelas equipes de saúde da família poderia detectar pessoas moradoras dos condomínios e chácaras da região não vacinados. Essa ação poderia ser uma atividade de extensão universitária de alunos de enfermagem e medicina, em colaboração com a secretaria de saúde. Assim como os estudantes colaboraram durante a epidemia de 1889, poderiam participar de ações de vigilância, educação em saúde e prevenção passados 136 anos.

Concluindo, podemos afirmar que a declaração de óbito reduz, e muito, a explicação da causa da morte, ao ser preenchida com febre amarela apenas. Na realidade a morte tem vários fatores determinantes, como a expansão da cidade desrespeitando o meio ambiente, e a não vacinação, com suas diferentes explicações. O que sabemos, é que a morte poderia ter sido evitada.   



Referências

Almeida, Marta de. Tempo de laboratórios, mosquitos e sete invisíveis: as experiências sobre a febre amarela em São Paulo. In: Chalhoub et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. p. 122-260. 432p. ISBN 85-268-0663-7.


Corrêa, Marcelo Oswaldo Alvares. A saga de Adolpho Lutz no arquipélago do Hawaii. In: Antunes, José Leopoldo Ferreira; Nascimento, Cláudia Barleta do;  Nassi, Lúcia Castilho & Pregnolatto, Neus Pascuet.  Instituto Adolfo Lutz - 100 anos do Laboratório de Saúde Pública. Instituto Adolfo Lutz - Editora Letras & Letras, 1992. p. 143-156. 280p. ISBN 85-85387-29-7.


Santos Filho, Licurgo de Castro & Novaes, José Nogueira. A febre amarela em Campinas 1889-1900. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1996. 302p. ISBN 85-85562-03-X.


Steffen, Edgard. O anjinho dos pés tortos e outras histórias. Itu: Ottoni Editora, 2005. 188p. ISBN 85-7464-149-9.  

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