quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Ama de Leite


Professores de medicina e pesquisadores têm se interessado cada vez mais pela relação entre a literatura e o ensino médico. Algumas faculdades inovaram e incluiram no currículo o ensino de determinado temas, habilidades ou atitudes através de obras literárias e/ou construção de narrativas.  
Aqui, pretendo discutir o aleitamento materno a partir de curta passagem do romance "Tant que la terre durera…”, publicado em 1947 pelo escritor Henri Troyat.  Característica singular e marcante do romancista francês é o cuidado com detalhes e com o momento histórico que cerca a trama. 
O trecho escolhido se passa em Moscou, em 1905, quando a aristocracia russa, a duras penas, agarrava-se ao poder. Tania está grávida e, na companhia da amiga Eugenia, cuida dos preparativos para a chegada do primeiro filho: 
  
Todas as possibilidades de compra tendo sido esgotadas desde o final de janeiro, Eugenia e Tania passaram a se ocupar da escolha da ama de leite para o herdeiro dos Danoff. Elas convocaram, a partir de recomendação, uma camponesa forte, com seios generosos, rosto arredondado e olhar tranquilo de novilha. A futura ama de leite se chamava Prascovie. Tinha tido um filho naquele mês, mas ela não sabia exatamente quem era o pai. Havia tantos homens na cidade! E tanto trabalho! Era talvez Agaphon ou Guérassime? Para que quebrar a cabeça? Prascovie migrara a Moscou a fim de se colocar como ama de leite numa casa honrada. Tania e Eugenia examinaram a camponesa com rigor. Elas lhe enxergaram um aspecto saudável, rosto amável, e seios  bem inchados.
- Vocês podem apalpar, disse Prascovie enquanto exibia o tórax com orgulho. Estão cheios. Na cidade, para divertir os meninos, eu fazia jorrar leite na cara deles. Comigo, o seu pequeno será alimentado de acordo com sua fome, eu garanto.
E ela ria com seus belos dentes brancos.
O médico de Tania, tendo auscultado Prascovie, examinado seu sangue, analisado seu leite, lhe reconheceu excelentes condições para a amamentação.1  

O trecho acima permite olhar para a questão da amamentação além do enfoque biológico que estabeleceu o aleitamento materno como prática inquestionável, a ser constantemente estimulada em razão dos benefícios tanto para a saúde da criança como da mãe, e lembrada enfaticamente durante a Semana Mundial da Amamentação, comemorada em 150 países, desde 1992. A redução da mortalidade infantil observada em vários países deve muito a essa campanha pelo aleitamento materno. No entanto, o texto de Troyat nos obriga a recuperar o significado cultural e social da amamentação.
Não apenas o fato de deixar a amamentação a cargo de outra mulher, mas também a posição de ambas na estrutura social moscovita e os trâmites e diálogos por ocasião da seleção da ama de leite, e o papel do médico despertam interesse. 
A ama de leite tem origem no campo, é pobre, desempregada, promíscua e mãe solteira. Tania, por sua vez, é mulher rica, esposa do senhor Danoff. Assim, o ato de amamentar cabe à mulher da classe social inferior que assume valor pelo fato de ter seios generosos e cheios de leite. Nesse sentido, há certa identificação da mulher pobre com a porção animal, mais primitiva do ser humano, enquanto que a mulher aristocrata seria menos corpo e mais evoluída do ponto de vista civilizatório. Não se pode fazer parte da aristocracia e ter seios generosos, cheios de leite, e muito menos usá-los para a amamentação. O corpo da mulher pobre, ao contrário, pode ser oferecido ao rico, apalpado e usado. Essa reflexão, possível de ser extraída do trecho de Troyat, teria perdido relevância mais de um século depois? Ou continua presente na raiz dos debates atuais sobre a amamentação em lugares públicos? 
E o médico, qual seu papel nessa trama? Ao que parece, cabia a ele chancelar esse modo de conceber a amamentação. A ciência a serviço da divisão social dos atos biológicos. O médico é que deveria dizer se a ama de leite era suficientemente saudável para alimentar o filho da mulher rica. Além de examinar o sangue e analisar o leite, houve cuidado especial com os pulmões, muito provavelmente devido a alta prevalência de tuberculose na era anterior ao desenvolvimento da farmacologia (o primeiro antibiótico efetivo no combate à tuberculose - estreptomicina - só foi usado a partir de 1944). De qualquer forma, o médico não se mostrava incomodado com a ausência da mãe rica no processo de amamentação. A ciência em consonância com o momento histórico, cultural e social. Não era de se esperar qualquer postura diferente haja vista que, em geral, os médicos, socialmente falando, costumam estar muito mais próximos das elites, estando, portanto, familiarizados com o modo hegemônico de ver o mundo. O que seria de se estranhar seria se Troyat tivesse feito o médico sugerir à mãe rica que amamentasse seu filho.
Concluindo, o curto trecho do romance "Tant que la terre durera…” permitiu reflexões sobre tema ainda muito atual que é a amamentação, corroborando a potência do uso da literatura no ensino médico.       

1- Troyat H. Tant que la terre durera…. Paris: Les Editions de La Table Ronde, 1961, p. 634.

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