Doenças dos judeus é o título de um dos capítulos do livro Doença dos trabalhadores, escrito por Bernardino Ramazzini - o pai da medicina do trabalho, no ano de 1700. Não obstante tratar-se de obra amplamente conhecida pelos profissionais ligados à medicina do trabalho, muito em decorrência de traduções para vários idiomas, sendo a brasileira de Raimundo Estrêla, ainda há espaço para novos mergulhos e aprendizados.
Chama a atenção o fato de haver um capítulo dedicado aos judeus uma vez que o livro foi organizado por ocupações: doenças dos mineiros, coveiros, massagistas, químicos, oleiros, pintores, ferreiros, e assim por diante.
Ramazzini foi médico, professor de medicina, poeta e músico. É considerado um dos precursores da medicina social. Interessou-se, entre outros, pelos judeus que viviam "mal, apertados em estreitas ruelas” e atribuiu os males dos judeus do século XVII à miséria, fome, condições de moradia e atividades ocupacionais, e não à raça, genética ou endemia. (Ramazzini, 2016, p. 177-178)
As principais doenças ou situações associadas aos judeus eram problemas respiratórios (rouquidão, tosse violenta, dispnéia, tísica), oculares (vista fraca, miopia, remelas), cutâneos (sarna), emocionais (melancolia e mal-humor), otológicos (surdez e dores de ouvido), sedentarismo, caquexia, distúrbios estomacais, cefaléia e dor de dente. (Ramazzini, 2016, p. 177-180)
As atividades responsáveis pelos males seriam a costura em ambientes pequenos, escuros e pouco ventilados, limpeza e amolecimento de colchões velhos e fabricação de papel a partir de roupas velhas. (Ramazzini, 2016, p. 177-180) A descrição feita por Ramazzini sobre o processo de trabalho denota apurado senso de observação, indispensável a quem se interessa pela relação entre o trabalho e a doença, mas também útil para se ter um panorama de como era a vida cotidiana dos judeus de então:
Dedicavam-se a remendar sapatos e roupas velhas, viviam de costurar, sobretudo as mulheres casadas; não fiam, nem cardam, nem tecem, sendo a costura a única arte de Minerva que conhecem. Nesta arte são destacados e excelentes, arranjando roupas de lã, seda ou de qualquer outro material, sem que fique vestígio algum da costura; em Roma chamam a isto rinacchiare. Enganam o povo incauto vendendo-lhe objetos usados, porém com defeitos habilmente consertados, e ganham seu sustento retocando objetos.[…] as mulheres hebreias, atarefadas o dia inteiro e parte da noite ao lado de uma fraca luz de candeia, parca iluminação, como de lâmpadas funerárias[…] sentam-se junto a janelas abertas em qualquer época do ano para receber um pouco de claridade[…] Os homens sentados durante todo o dia, em suas tabernas, repassando roupas, ou parados, esperando a quem vender os vestuários vetustos[…] Além da profissão de remendar, têm, pelo menos na Itália, a de arranjar os colchões de lã, a qual se endurece, amassada pelo contínuo deitar durante anos; estendem os colchões sobre grades de vime, sacodem-nos e os batem com varas, e assim amolecem e se tornam mais agradáveis para o descanso. Ganham bastante com esse trabalho, percorrendo as casas das cidades; ao cardarem e baterem a lã velha, suja e urinada muitas vezes, aspiram sujeiras pulverulentas provocadoras de graves danos[…] Na minha opinião não é tão perniciosa a poeira por porvir de lã velha, e sim por causa das impurezas que se misturam com a lã. Temos o hábito, quando morre alguma pessoa da família, e fazem-se as exéquias, de entregar às lavadeiras os lençóis, as camisas e demais indumentárias usadas pelo doente a fim de lavá-las e limpá-las; a um judeu entregam-se os colchões de lã para batê-los ao sol, asseando-os. Eles, assim como os empregados nos serviços fúnebres, não podem deixar de receber elementos mortíferos e contrair nesse tempo alguma perturbação nos pulmões.[…] Com as roupas velhas de linho e de cânhamo arruinadas pelo uso prolongado, amolecidas depois em água, poídas e machucadas, fabricam papel para escrever, como sabemos, por meio de um engenhoso e admirável artifício que os antigos não conheciam.[…] Esta gente, ansiosa por lucro, sabe juntar objetos de todo o mundo (já disse Juvenal que isso faziam em sua época), gritando pregões de rua em rua para conseguir recolher e comprar rebotalhos a preço vil para revendê-los oportunamente, em grande quantidade, aos fabricantes de papel. Voltam os judeus a suas casas carregados com embrulhos de mercadoria e ali separam cuidadosamente, do montão de resíduos, trapos de lã e seda que não se utilizam na fabricação do papel (embora se exiba no Museu Septalino um papel chinês de seda), acumulando depois nas suas tabernas os sórdidos despojos. Surpreendente e incrível exalação desprende-se todas as vezes que movem esse lixo e, com essa mercadoria sórdida, enchem enormes sacos para levá-los às manufaturas de papel. (Ramazzini, 2016, p. 177-179)
Além da grande contribuição para a medicina do trabalho no que se refere à relação entre atividade ocupacional e doença, há outra, menos explícita, mas igualmente relevante, da relação entre religião, lugar dos judeus na estrutura social, atividade ocupacional e doença. É o que será discutido a seguir.
Edgar Morin chama a atenção para o fato de que, enquanto existiu um reino de Judá, tendo como capital Jerusalém, a noção de judeu esteve ligada ao mesmo tempo à religião, ao pertencimento ao povo hebreu e à nação cuja capital era Jerusalém. No entanto, após a destruição da nação, quando o país passou a província da Sírio-Palestina e colônia romana proibida aos judeus, no século II, o que os definia era apenas a religião, e, mesmo espalhados, foram capazes de conservar certa unidade. (Morin, 2012, p. 21)
A partir do momento em que o cristianismo se estabeleceu como religião oficial do império romano, todo e qualquer proselitismo judeu era ameaçador e, portanto, não aceito. O anti-judaísmo ultrapassaria inclusive a dimensão teológica e se tornaria popular, de forma que males que assolavam a Europa medieval, como epidemias de peste ou de cólera, eram frequentemente atribuídos aos judeus, justificando massacres e perseguições, como durante a Inquisição. Em razão desse sentimento anti-judaico, foram obrigados a viver em guetos e proibidos de exercer várias ocupações, ficando restritos a poucas atividades como o comércio de roupas usadas e o empréstimo de dinheiro (que era proibido aos cristãos). (Morin, 2012, p, 23-26) Dessa forma, é possível compreender porque Ramazzini dedicou um capítulo às doenças de um povo (os judeus) em seu livro que, de regra, está organizado de acordo com as ocupações. Em outras palavras, a costura passou a ser uma ocupação típica de judeus. E não por escolha.
Em suma, as doenças descritas por Ramazzini estão relacionadas a pessoas pobres, que se dedicavam à costura de roupas velhas com muita sujeira e poeira, em ambientes mal ventilados e iluminados: doenças pulmonares, oculares e cutâneas, predominantemente. Nesse caso, a fé religiosa foi determinante na morbidade desse povo.
O tratamento proposto por Ramazzini consistia em ginástica corporal, afastar as mãos e olhos da mesa de trabalho durante algumas horas, purgações e cobrir o rosto e o nariz para que as partículas aéreas não chegassem tão facilmente ao interior do corpo.
Morin E. Le monde moderne et la condition juive. Lonrai (Orne-France): Éditions Points, 2012.
Ramazzini, Bernardino. As doenças dos trabalhadores [texto] / Bernardino Ramazzini ; tradução de Raimundo Estrêla. – 4. ed. – São Paulo : Fundacentro, 2016. 321p.:il.color.;24cm.
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