domingo, 23 de dezembro de 2018

Saturno, o Deus de Portinari

Partimos de Campinas ao cair da tarde. Céu ainda azul, muito calor. Temperaturas próximas a trinta e cinco graus na cidade de Carlos Gomes e do ouro verde do século XIX. Uma xícara de café, ou melhor, cappuccino, logo antes de entrar no carro. Duas horas e meia depois, avistamos Brodowski. A estação de trem está lá, preservada, de tijolo aparente e elementos decorativos sóbrios nas janelas e cobertura, como quando foi inaugurada em 1894, antes mesmo da construção da capela, e por onde passava parte da produção de café paulista rumo a Santos, mas também imigrantes italianos atraídos pela pujança da cafeicultura da época. A cidade que cresceu ao redor da estação férrea foi moradia do mais renomado pintor brasileiro - Cândido Portinari, filho dos italianos da região do Vêneto Giovan Battista Portinari e Domenica Torquato. Cândido nasceu em dezembro de 1903, na fazenda Santa Rosa, próxima a Brodowski, cidade para onde se mudou a família em 1906.
Nosso destino era o Museu Casa de Portinari. A arquitetura é simples. Duas casas unidas. Cada uma com o formato de um retângulo tendo um triângulo acima, de cor clara. Duas janelas azuis cada uma, abertas para a praça. Também azul o contorno do telhado. Um muro extenso, da mesma cor da casa, com cerca de um metro de altura, tendo colunas paralelas por entre as quais as crianças enxergam o jardim. Outras casas menores ocupam o terreno que pertenceu a Baptista Portinari, pois a família foi crescendo e ali chegaram a residir dezesseis pessoas. Gente animada aquela que vivia na cozinha, de olho no fogão à lenha, de onde emanava o cheiro gostoso das comidas que depois atrairiam o restante dos familiares à sala de jantar. As crianças corriam animadas.
Nós, que provínhamos de Campinas, gostamos de saber que o primeiro desenho feito pelo pintor famoso foi o Retrato de Carlos Gomes, em 1914. Por que Cândido, ainda criança, teria desenhado o músico campineiro, falecido em 1896? Suponho que ele tinha à mão a capa de um disco de Carlos Gomes. Que seus pais conservaram, no Brasil, o gosto e costume de ouvir óperas. No Retrato de Carlos Gomes, a carvão e grafite em papel, constam as inscrições Lo Schiavo, Salvador Rosa, Maria Tudor, Fosca, Colombo, Condor e Guarany, que, muito provavelmente, o artista infantil copiou da capa do disco. Em outras palavras, pode-se imaginar que ouvir óperas era uma atividade importante, frequente e familiar na casa de Baptista e Domenica, e que Carlos Gomes era popular entre italianos radicados no Brasil.
O filho de imigrantes italianos que aportaram no Brasil para trabalhar na lavoura de café viria, mais de quatro décadas depois, sofrer de saturnismo, isto é, de efeitos da intoxicação por chumbo. No museu, a visão de vinte e dois tubos de tintas importadas, parcialmente usados, dispostos em duas fileiras horizontais com onze tubos cada, nos remetia à doença ocupacional que ceifaria a vida do pintor apaixonado pela sua arte. Das três tintas que continham chumbo - branco de prata, amarelos de Nápoles e vermelho de Saturno, foi esta última que mais curiosidade despertou, em função do nome do Deus da mitologia romana. Os alquimistas achavam que o chumbo era o mais velho dos metais e  o associavam ao planeta Saturno, de onde o nome da doença.
Saturno era um Deus da mitologia grega associado à agricultura e à justiça. Um dos titãs, filho de Urano (Céu) e Gaia (Terra). Expulsou o próprio pai de sua posição soberana entre os deuses, já que o mesmo estava dominado pela insanidade. Estaria Urano acometido ele também de saturnismo, com manifestações neuro-psiquiátricas? Saturno recebeu a profecia de que ele também seria deposto do trono por um de seus filhos. Assim, devorou todos eles, exceto o recém-nascido Júpiter (Zeus) - protegido pela mãe Réia. Ao ser finalmente expulso do céu por Júpiter, refugiou-se no Lácio, onde fez reinar a idade do ouro, com paz e abundância, e ensinou a agricultura aos homens. Os romanos atribuíam a Saturno a criação de Roma e construíram um templo em sua homenagem. Festas populares conhecidas como Saturnais eram celebradas anualmente por volta do solstício de inverno, visando ressuscitar por um certo tempo a época maravilhosa em que os homens tinham vivido sem contrariedades, sem distinções sociais, numa paz inviolada. Durante uma semana, todas as atividades profissionais e as campanhas militares eram suspensas, e banquetes eram realizados. Durante esse período, os cidadãos substituíam a toga pela túnica e serviam seus escravos que, desobrigados das suas funções habituais, falavam sem papas na língua. Através de suas pinturas sobre cafeicultura e as de cunho social - Café, O lavrador de café, Os retirantes, Criança morta, Enterro na rede -, Cândido Portinari, de certa forma, prestou homenagem aos trabalhadores rurais e fez coro com as Saturnais, dando voz aos pobres do nosso país. Saturno, o Deus da agricultura para os romanos, esteve presente tanto nos primeiros anos dos Portinaris no Brasil, como no intenso e fecundo percurso do pródigo pintor - através do vermelho de Saturno e de sua rica produção artística, e no lento apagar da sua chama, quando já se mostrava acometido pela intoxicação plúmbica.
O vermelho de Saturno é conhecido também como mínio ou zarcão, um pigmento tóxico a base de tetróxido de chumbo (Pb3O4). Teve importância na pintura mural, com destaque para obras do Renascimento e do século XX, em particular em Paris, com Picasso, Matisse, Léger, Miró e Chagall. Cândido Portinari deve ter sido influenciado a pintar afrescos pela trupe de pintores e escultores italianos que atuavam na restauração de igrejas no interior paulista, no início do século XX, e que, ao passar por Brodowski, recrutou Portinari, então com 14 anos, como ajudante, mas também pelos artistas que conheceu durante sua estadia em Paris. Quiça a exposição ao chumbo tenha sido tão precoce como essa participação na restauração das obras sacras por volta de 1917.
Deixamos a Casa de Portinari levando na memória as imagens dos sapatos, cachimbos, pincéis, tintas, camas, cadeiras, mala, flores, pinturas murais de Portinari. E pensamentos. O que mais teria produzido nosso grande pintor caso tivesse sido poupado dos efeitos do saturnismo? Eu professor de medicina, filho de um médico especialista em Medicina do Trabalho, senti a impotência da nossa arte diante da paixão de um artista pelas cores e  formas. Paixão que o impediu de interromper o uso das tintas contendo chumbo. Saturno, quando perseguia Júpiter pela Terra, deitou-se, transformado em cavalo, com a filha de Oceano, Filira (Philyra), que, por isso, deu à luz ao centauro Quíron, de quem se diz ter inventado a arte da medicina e a ensinado à Esculápio (Asclépio). Ensinou a arte de curar os homens, mas impotente quando estes encontram-se apaixonados.
Consagrei o sábado à ele.

domingo, 21 de outubro de 2018

Piscivoria

Biguatinga (Anhinga anhinga) macho deu um bote vigoroso e espetou um peixe no seu bico longo e aguçado. Em seguida, o jogará para cima a fim de engoli-lo.

sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Troyat et Hitchcock

L’écrivain Henri Troyat est né en novembre 1911 à Moscou. Son nom de baptême était Lev Tarassoff. La famille de son père était originaire d’Armavir. Son père avait été un riche merchant de drap à Armavir et Moscou. Lors de la révolution bolchevique, il a été obligé de laisser Moscou vers Kharkov. Après une longue et risquée fuite, il s’est établi en France. Dans le roman Le sac et le cendrier, de 1950, le personnage Michel Danoff, né à Armavir, est le propriétaire des Comptoirs Danoff et s’enfuit, avec sa famille, vers Kharkov. Dans l’édition que j’ai sous les yeux, de 1962, en vélin crèvecoeur, j’ais suivi l’histoire des Danoff en sachant que Michel représentait le père de Troyat.
Curieux et intéressant c’est qu`a la page 512, le commandant bolchevique annonça, à haute voix, le sixième et dernier bourgeois que devrait être fusillé ce jour-là: - Tarassoff. Heureusement, il était à l’infirmerie, a cause d’une petite diarrhée et, à la fin, a été épargnée de la fusillade.
Au moyen de l’apparition inattendue et soudaine de Tarassoff dans le texte, l'auteur a laissé claire la distinction entre son père  et le personnage Michel Danoff, entre réalité et fiction. Seulement une apparition rapide de Tarassoff, comme faisais Alfred Hitchcock dans ses films, laissant son signature ou sa marque.

Troyat e Hitchcock

O escritor Henri Troyat nasceu em novembro de 1911, em Moscou. Seu nome de batismo era Lev Tarassoff. A família paterna era originária de Armavir. Seu pai foi um rico comerciante de tecidos e roupas de cama em Armavir e Moscou. Por ocasião da revolução bolchevique, se viu obrigado a deixar Moscou, em direção a Kharkov. Após longa e arriscada fuga, instalou-se na França. No romance Le sac et la cendre, de 1950, o personagem Michel Danoff, originário de Armavir, é proprietário dos Comptoirs Danoff e foge, com sua família, da revolução bolchevique rumo a Kharkov. Na edição que tenho em mãos, de 1962, em vélin crèvecoeur, acompanhei a história dos Danoff, sabendo que Michel representava o pai de Troyat.
Curioso e interessante foi que, à página 512, o comandante bolchevique anuncia, em voz alta, o décimo sexto e último burguês preso que seria fuzilado naquele dia: - Tarassoff. Felizmente, estava na enfermaria, em razão de diarreia e acabou sendo poupado do fuzilamento.
Mediante o inesperado e relâmpago aparecimento de Tarassoff no texto, o autor deixou clara a distinção entre seu pai e o personagem Michel Danoff, entre a realidade e a ficção. Apenas uma rápida aparição de Tarassof, tal como costumava fazer Alfred Hitchcock em seus filmes, deixando sua assinatura ou sua marca.

sábado, 2 de junho de 2018

RAM

No cérebro, vida armazenada
Eu, eles, você
De repente, não entra mais nada
Lento lento lento o PC

Qual o seu nome? Peraí
Quem é que é você?
Confesso que esqueci
Lento lento lento o PC

Onde está a chave, onde?
Qual era a senha, qual?
Aonde eu fui, aonde?
Lento lento lento o personal

Você é meu filho, é?
Qual o seu nome?
Acho que Cesar, né?
É a memória que some

RAM morosa morosa
Devagar devagar piano piano
Uma perda lenta e dolorosa
Piano piano non se va lontano

Mais uma vez a mesma história
De novo a mesma, mais uma vez
Aquela que grudou na memória
Inútil diante da pior surdez

Será você meu irmão, filho ou neto
Que acaba de passar pela porta?
Contanto que traga afeto

Pouco pouco pouco importa