Querida Raquel,
Estivemos próximos, os 102 e eu, durante alguns meses. Tempo maior que o previsto, pois eu lhe prometera que não me demoraria. Peço desculpas. Mas, no fundo, não me sinto tão culpado como poderia. Isso porque desfrutei com satisfação da companhia deles.
Eram 102 os médicos que se formaram em 1946 pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Alguns nomes, de alunos e professores, me eram familiares. Personagens da medicina paulista que eu certamente ouvira da boca de meu pai, graduado em 1947, ou conhecera pela obra e legado dos homenageados no livro Éramos 102, organizado por Ricardo Veronesi.
Veronesi manifesta profunda gratidão a, entre outros, Carlos da Silva Lacaz - o Don Quixote de Guaratinguetá -, e a Liberato J. A. Di Dio. O primeiro, incumbido também do primoroso prefácio de Éramos 102, tive o prazer de conhecer durante curso de História da Medicina, no Museu Histórico que leva seu nome, em 1998. Homem apaixonado pela arte de Hipócrates e agraciado com memória invejável. O segundo, sendo homenageado ou ministrando aula, impressionou-me pela erudição e contribuição que deu à anatomia brasileira e internacional. Consta que afirmava que aula deve ser como uma mini saia, curta para ser interessante e ter o tamanho certo para cobrir o assunto. Deu continuidade, ele, aos sobrenomes italianos ligados ao ensino e pesquisa da anatomia em São Paulo, tal como Bovero e Locchi.
Como terá sido o curso durante o período da Segunda Guerra Mundial? Dividiam as atenções entre os livros de anatomia, fisiologia, clínica, cirurgia e o rádio que transmitia as últimas do conflito belicoso. Caminharam bastante pelos corredores da Santa Casa de São Paulo, com seus arcos e tijolos aparentes. Eram estudantes quando o Hospital das Clínicas foi inaugurado, quando a penicilina foi finalmente disponibilizada para uso em infecções bacterianas como a sífilis ou a estreptomicina para a tuberculose. Passados mais de 70 anos, a novidade permanece atual. Ambas as doenças teimam em nos desafiar e os mesmos antibióticos seguem sendo prescritos para essas mesmas doenças. O ensino se dava em ambiente altamente hierárquico e os alunos-escravos é que se ocupavam de esvaziar as comadres. Arnaldo Teixeira Lima, seu pai, estava ali. Provavelmente, empolgado, ele também, com a possibilidade de salvar mais vidas do que nunca antes se pudera. Será que explicou algum tema ou ensinou algo a meu pai Bernardo, da turma de 1947, na 2a Clínica Médica? Teriam frequentado algum laboratório, alguma competição esportiva no Centro Acadêmico Oswaldo Cruz ou alguma festa juntos? Ou ainda, gritaram lado a lado durante as Mac-Med no Pacaembú?
Arnaldo teve como colega Pedro Jabur, mais tarde professor de nefrologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, e de quem fui aluno. Um dos poucos que ainda palpava artérias para averiguar se a hipertensão era crônica.
Assim como Arnaldo e Jabur, fui eu também aluno de Walter Edgard Mafei, cerca de 45 anos depois. Ao que parece, as histórias e teorias sobreviveram esse tempo todo.
Éramos 102 está recheado de preciosos casos e causos. O raro caso de "Síndrome de Billie e Pack”, diagnosticado por Delmonte Bittencourt. O nome, já fora do Pronto Socorro do Hospital das Clínicas, sofreu corruptela e transformou-se em “pilipaque”. Acho que essa informação não seria encontrada em nenhum outro livro.
“Nestes últimos 50 anos a medicina experimentou um enorme progresso. Tornou-se extremamente científica, mas, por outro lado, perdeu um pouco o seu aspecto humano”, escreveu José de Souza Meirelles Filho, em 1996. Continua muito atual.
Raquel, quero agradecer-lhe a enorme gentileza sua ao me emprestar o livro autografado por Veronesi em II.XII.96. Caberá a nós prosseguir a prosa.
Abraço do amigo
Rubens
Campinas, junho de 2019.
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