sábado, 3 de agosto de 2019

Clínica (Para Gastão)

E como é que se consulta gente
Que chega em busca de um doutor
Porque se acha deveras doente
Ou porque sofre de alguma dor
Do corpo ou da alma ou da mente
Da vida, do trabalho, de amor?

Reconhecer primeiro a doença
A partir de sintoma ou sinal
O medicamento que se dispensa
Alívio para quase todo mal
Uma clara questão de fé, de crença 
No paradigma da Tradicional

Hipócrates e observação
Fim do místico e do sacrifício
Sydenham e a classificação
Sir William Osler e o benefício
Dos sentidos e da percepção
Seguiram-se Arnaldo e Alípio

É mister saber o que perguntar
Há um roteiro a obedecer 
A anamnese serve para guiar
O corpo enfermo a conhecer
Uma doença a se nomear
Eis da Clínica o maior saber

Há muito tempo Foucault nos dizia 
Luz que permite observação 
Olhar o corpo de anatomia
E terminar em classificação
Origem na patofisiologia
O pilar sólido da formação

Examinar o corpo do doente
Inclinando-se à beira do leito
Procurar o melhor nome na mente
Ontologia da doença conceito
Ser doença, sem aposto, na frente
Atrás, quase inexiste sujeito

Mas tem também queixa com rebeldia
Nome de doença não encontra
Incomoda e desafia dia-a-dia
A Clínica Tradicional afronta
Demanda rebelde com ousadia
De não se encaixar em doença pronta

Seria a Clínica tão limitada?
E que alívio quando descobri
Aquele texto sobre Ampliada
Era de Gastão Wagner o que li
E ademais era Compartilhada
Graças a Sartre, Basaglia, Gramsci

Proposta de um novo Klinikós
Um olhar além de patologia
Mais adiante da escola de Cós
Deixa de lado a hegemonia
Buscando a igualdade na voz
Olho no olho e na democracia

Uma Clínica sujeito centrada
O contexto também se considera
Idem a doença associada
Aqui o enfermo também pondera
Sobre aquela proposta planejada
Não é só a voz do doutor que impera

Cada singular história de vida
Diz do desejo, medo, sentimento
A trajetória única, sentida
Quicá origem daquele sofrimento
Da dor enfim a causa escondida
De outro modo sem reconhecimento

Aí não cabe a receita oficial
Porque não basta anti-inflamatório
Pra tendinopatia supraespinhal
Nem antidepressivo ilusório
Se a determinação é cultural
Assim, inacessível ao sensório

Equilibrar a doença e o sujeito
Uma Clínica contra-hegemônica
Sincera escuta, o maior preceito
Teoria em viva prática harmônica
Que não corrói da pessoa o direito

A se expressar, em poesia ou em crônica

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