sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Conversas com Jacques le Fataliste e Brás Cubas

       Dois autores e duas obras que conversam muito bem: "Jacques le Fataliste et son maître", de Denis Diderot (Langres 1713 - Paris 1784), e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis (Rio de Janeiro 1839 - Rio de Janeiro 1908).

Diderot escreveu o romance "Jacques le Fataliste et son maître" entre 1765 e 1780.

Machado de Assis escreveu "Memórias póstumas de Brás Cubas" entre março e dezembro de 1880.


Vejamos trechos de cada obra:


     1. Jacques le Fataliste et son maître

Jacques commença l’histoire de ses amours. C’était l’après-dîner: il faisait un temps lourd; son maître s’endormit. La nuit les surprit au milieu des champs; les voilà fourvoyés. Voilà le maître dans une colère terrible et tombant à grands coups de fouet sur son valet, et le pauvre diable disant à chaque coup: “Celui-là était apparement encore écrit là-haut…” (p. 26)

Vous voyez, lecteur, que je suis en beau chemin, et quel ne tiendrait qu’à moi de vous faire attendre un an, deux ans, trois ans, le récit des amours de Jacques en le séparant de son maître et en leur faisant courir à chacun tous les hasards qu’il me plairait. Qu’est-ce qui m’empêcherait de marier le maître et de le faire cocu? d'embarquer Jacques pour les îles? d'y conduire son maître? de les ramener tous les deux en France sur le même vaisseau? Qu’il est facile de faire des contes! Mais ils en seront quittes l’un et l’autre por une mauvaise nuit, et vous pour ce délai. (p. 26-27)

Vous concevez, lecteur, jusqu’où je pourrai pousser cette conversation sur un sujet dont on a tant parlé, tant écrit depuis deux milles ans, sans être d’un pas plus avancé. Si vous me savez peu de gré de ce que je vous dis, sachez-m’en beaucoup de ce que je ne vous dis pas. (p. 31)

Lecteur, il me vient un scrupule, c’est d’avoir fait honneur à Jacques ou à son maître de quelques réflexions qui vous appartiennent de droit; si cela est, vous pouvez les reprendre sans qu’ils s’en formalisent. (p. 236)

Vous ne croirez pas cela, lecteur. (p. 263)

Lecteur, qui m’empêcherait de jeter ici le cocher, les chevaux, la voiture, les maîtres et les valets dans une fondrière? Si la fondrière vous fait peur, qui m’empêcherait de les amener sains et saufs dans la ville où j’accrocherais leur voiture à une autre, dans laquelle je renfermerais d’autres  jeunes gens ivres? Il y aurait des mots offensants de dits, une querelle, des épées tirées, une bagarre dans toutes les règles. Qui m’empêcherait, si vous n’aimez pas les bagarres, de substituer à ces jeunes gens Mlle Agathe, avec une de ses tantes? (p. 281)


       2. Memórias póstumas de Brás Cubas

Morri de uma pneumonia, mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (p. 3)

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. (p. 4)

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. (p. 10)

Já o leitor compreendeu que era a razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo: La maison est à moi, c'est à vou d’en sortir. (P. 17)


      Conversas

Os trechos acima revelam que os dois autores relatam os amores e eventos da vida de seus personagens principais, Jacques e Brás Cubas. Utilizam a mesma estratégia de conversar com o leitor, convidando-o, muitas vezes, a opinar ou decidir sobre o rumo da obra. 

De acordo com "Le Petit Larousse des Écrivains Français”, 

À travers la grande diversité de l’oeuvre de Diderot, on peut observer presque une constante: la forme dialoguée. […] Pourquoi cette quasi-omniprésence du dialogue? C’est la forme la plus appropriée pour échanger des idées et transcrire les tensions de la pensée. Diderot n’a jamais voulu disserter ni prêcher. Le dialogue lui permet de saisir sa pensée dans son jaillissement, dans sa dynamique et d’inciter le lecteur à prendre parti.  

Machado de Assis, que falava e conhecia muito bem o idioma francês, muito provavelmente leu "Jacques le Fatalista et son maître” e deve ter sido fortemente influenciado pelo escritor francês.  


Referências 

1. Denis Diderot. Jacques le fataliste. Paris: Garnier-Flammarion, 1970. 316p.

2. Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997. 208p.

3. Catherine Mory. Le Petit Larousse des Écrivains Français. Paris: Larousse, 2012, p. 108-111.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A doença que ceifou a vida de Brás Cubas: reflexões médicas

 Brás Cubas, personagem que dá nome ao livro de Machado de Assis, nasceu em 1805, quando a expectativa de vida no Rio de Janeiro situava-se ao redor de 45 anos de idade. Portanto, quando faleceu, em 1869, já com 64 anos, era considerado idoso, talvez até muito idoso. (p. 1) Segundo o que escreveu em suas Memórias Póstumas, a causa de sua morte teria sido pneumonia, ou uma ideia grandiosa e útil, a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade - o “Emplasto Brás Cubas”. (p. 3) 

O trecho transcrito a seguir dá ideia do aspecto agudo e agressivo da doença, assim como de sua relação com a mencionada ideia de inventar um emplasto:


…recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade”. (P. 7)


Naquela época, as doenças infecciosas matavam mais que as doenças cardiovasculares ou as neoplasias, diferentemente do que ocorre atualmente. A pneumonia figurava entre as principais, ou era a principal causa de morte entre idosos. O tratamento não podia contar com antibióticos, desenvolvidos apenas no século XX. Utilizava-se, então, o repouso, sangria, eméticos (remédios para vomitar), laxantes, ventosas, chás.  

O golpe de ar corresponderia à ação do ar frio que tende a paralisar os cílios da árvore respiratória, cuja ação consiste na remoção de muco onde aderem partículas que podem facilitar o desenvolvimento de infecções respiratórias. Faz sentido a recomendação de mães e avós para evitar sair à noite, no frio.

Profundamente envolvido com a ideia de seu emplasto, descuidou-se dos primeiros sintomas da pneumonia, e não se tratou. Não é infrequente que o foco mental em um objetivo relevante para a pessoa, a faça negligenciar os primeiros avisos de uma doença. Rapidamente piorou. Esta informação reforça a hipótese diagnóstica de pneumonia, uma infecção respiratória aguda, diferente da tuberculose, a infecção mais prevalente e letal do século XIX e primeira metade do XX, porém mais arrastada. 

Durante a apreciação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, o leitor encontrará algumas passagens que descrevem personagens acometidos pela tísica e, nesse momento, poder-lhe-ia vir à mente a possibilidade de que não fosse pneumonia e sim tuberculose a causa da morte:


…capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher tísica em último grau. … A mulher ia quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito… Não estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra”. (p. 40) “Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim de semana. … Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte”. (p. 42)


Contudo, o autor não prossegue com nenhuma menção a quadro de tosse persistente, emagrecimento, fraqueza ou hemoptise, que pudessem sugerir haver Brás Cubas contraído e sucumbido à tuberculose.

Outro dado biográfico que indica tratar-se mesmo de infeção aguda, é a manifestação de delírio. Machado de Assis dedicou um dos capítulos mais longos do livro - Capítulo VII - à descrição do delírio, na sequência daqueles que apresentaram o processo de morte do protagonista. 


Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me paga o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampa; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que, senso as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. (p. 10-11) 


O delírio de origem infecciosa é mais frequente em idosos, comumente com infecção urinária ou pneumonia, e caracteriza-se por distúrbio de atenção, agitação, alteração de comportamento, alucinações, entre outros sintomas. No trecho acima é possível reconhecer alucinações visuais e auditivas. 

A presença de delírio costuma indicar gravidade da doença e pode estar relacionada a sepse.

Brás Cubas faleceu na Chácara Catumbi, de sua propriedade. (p. 1) Não se morria em hospital. Em geral, a passagem se dava em casa, cercado por familiares e amigos, como a irmã Sabina e a amiga e amante Virgília. O papel do hospital como local de morte das pessoas ganharia destaque durante o século XX, pari passu ao desenvolvimento tecnológico capaz de prolongar a vida, e, por vezes, retardar e maltratar o processo de morte. Mais recentemente, com o avanço dos cuidados paliativos, novamente incentiva-se a passagem em casa.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Menina linda. Sociedade feia.


    Menina linda, nos seus oito anos de idade. Pele negra, olhos castanhos, cabelo afro e sorriso comunicativo. Quantas e quantas vezes escutou que era linda. Nem sabe mais como responder. Na maioria das vezes, devolve um obrigada.

Gosta de correr, brincar e, como seus três irmãos, é rápida no manuseio do celular. São inesgotáveis as ofertas de joguinhos e vídeos infantis. Nem mesmo o dedão direito na boca compromete sua agilidade digital.

Sua cor favorita é o rosa e não esconde a alegria de vestir bermuda e camiseta dessa cor. Combina com sua pele e seus olhos.

Faz questão de tomar banho com a irmã, que recentemente completou dezoito anos. Gosta de abraços, seja da irmã, seja da mãe, de quem herdou os lindos olhos. Esse grude com a irmã tem explicação.

Durante seus primeiros três anos de vida sofreu violência, quase sempre originada da relação entre o pai e a mãe e irmãos. Não apenas física, mas também psicológica, na forma de dor de estômago vazio, frio no sono na calçada, medo do escuro da noite, desespero da mãe buscando alimentos, ou ainda na necessidade de fazer suas necessidades num balde por causa da ausência de um vaso sanitário. 

Um dia, de repente, sua mãe conseguiu enxugar as lágrimas, criou coragem e deu um basta à violência de gênero. Já era tempo. Saiu de casa com seus quatro filhos e buscou amparo na casa de uma amiga por um curto período de tempo. Em seguida, foram morar num barraco de madeira, próximo à casa da avó. 

Um recomeço difícil. Ainda que tivessem conquistado a liberdade, não se livraram dos medos, principalmente relacionados à incerteza de futuro. Medo de não ter almoço. Medo de perder o lar. 

Um dia, de forma inesperada, seu pai apareceu e a levou, junto com seu irmão. Por que?

Ninguém lhe perguntou se queria ir embora sem sua mãe e seus outros irmãos. Foram cinco anos longe deles. Porque não vinham buscá-la? 

Há dois meses, prenderam seu pai e ela e seu irmão voltaram a morar com a mãe e os irmãos. Agora numa casa de alvenaria, em outro bairro. Não falta mais comida. Tem vaso sanitário. Ganhou roupas novas. A maioria cor de rosa. 

Que alegria dormir com a irmã, os irmãos ou a mãe. Muitos e muitos abraços. Tomar banho com a irmã pra não ficar nem um minuto longe. 

        Que medo de ser levada de novo!

Escola diferente. Ganhou uniforme novo. Vai e volta, acompanhada pela irmã querida. 

Um dia, chegou em casa chorando porque os colegas lhe chamaram de neguinha feia, do cabelo duro. Passou a achar que seu cabelo é feio mesmo.

Tão nova, com uma pesada bagagem de violência e medos. Tão poucos anos de vida e já enfrentando atitudes racistas e preconceituosas dentro da escola. 

Como será que a escola vai lidar com as atitudes dos colegas? Dá pra suspender algumas aulas de matemática, português, ciências ou outra para ensinar às crianças sobre racismo e violência de gênero? Ou não, já que o problema é somente dela?

A mãe a levou a um salão de beleza especializado em cabelos afros. Ficou sentada na cadeira por cerca de seis horas e desceu dali mais linda ainda. Mas talvez não o suficiente para que os colegas parem de importuná-la.

Se seu desempenho não for bom nos estudos é bem provável que sua mãe seja chamada à escola para tomar ciência do fato e fazer alguma coisa. Se não melhorar, terá que refazer o ano? Caberá a ela dar conta sozinha das marcas da violência - física, psicológica, social, racial, de gênero? 

E se seu comportamento piorar? E se chorar no canto? E se começar a se cortar? Alguém poderá encaminhá-la à psicóloga. Será que é fácil conseguir acompanhamento psicológico no postinho? Ou precisará de psiquiatra e remédios faixa preta?

Quando for adulta, os profissionais de saúde que a acolherão terão paciência e interesse para escutar sua história ou apenas receitarão calmantes para o nervosismo, antidepressivos para a tristeza, analgésicos para sua dor?

Na realidade, é a sociedade que está doente, estruturalmente falando. Qual os remédios?

A linda menina quer apenas abraços, colo e ouvido.