domingo, 15 de dezembro de 2024

Menina linda. Sociedade feia.


    Menina linda, nos seus oito anos de idade. Pele negra, olhos castanhos, cabelo afro e sorriso comunicativo. Quantas e quantas vezes escutou que era linda. Nem sabe mais como responder. Na maioria das vezes, devolve um obrigada.

Gosta de correr, brincar e, como seus três irmãos, é rápida no manuseio do celular. São inesgotáveis as ofertas de joguinhos e vídeos infantis. Nem mesmo o dedão direito na boca compromete sua agilidade digital.

Sua cor favorita é o rosa e não esconde a alegria de vestir bermuda e camiseta dessa cor. Combina com sua pele e seus olhos.

Faz questão de tomar banho com a irmã, que recentemente completou dezoito anos. Gosta de abraços, seja da irmã, seja da mãe, de quem herdou os lindos olhos. Esse grude com a irmã tem explicação.

Durante seus primeiros três anos de vida sofreu violência, quase sempre originada da relação entre o pai e a mãe e irmãos. Não apenas física, mas também psicológica, na forma de dor de estômago vazio, frio no sono na calçada, medo do escuro da noite, desespero da mãe buscando alimentos, ou ainda na necessidade de fazer suas necessidades num balde por causa da ausência de um vaso sanitário. 

Um dia, de repente, sua mãe conseguiu enxugar as lágrimas, criou coragem e deu um basta à violência de gênero. Já era tempo. Saiu de casa com seus quatro filhos e buscou amparo na casa de uma amiga por um curto período de tempo. Em seguida, foram morar num barraco de madeira, próximo à casa da avó. 

Um recomeço difícil. Ainda que tivessem conquistado a liberdade, não se livraram dos medos, principalmente relacionados à incerteza de futuro. Medo de não ter almoço. Medo de perder o lar. 

Um dia, de forma inesperada, seu pai apareceu e a levou, junto com seu irmão. Por que?

Ninguém lhe perguntou se queria ir embora sem sua mãe e seus outros irmãos. Foram cinco anos longe deles. Porque não vinham buscá-la? 

Há dois meses, prenderam seu pai e ela e seu irmão voltaram a morar com a mãe e os irmãos. Agora numa casa de alvenaria, em outro bairro. Não falta mais comida. Tem vaso sanitário. Ganhou roupas novas. A maioria cor de rosa. 

Que alegria dormir com a irmã, os irmãos ou a mãe. Muitos e muitos abraços. Tomar banho com a irmã pra não ficar nem um minuto longe. 

        Que medo de ser levada de novo!

Escola diferente. Ganhou uniforme novo. Vai e volta, acompanhada pela irmã querida. 

Um dia, chegou em casa chorando porque os colegas lhe chamaram de neguinha feia, do cabelo duro. Passou a achar que seu cabelo é feio mesmo.

Tão nova, com uma pesada bagagem de violência e medos. Tão poucos anos de vida e já enfrentando atitudes racistas e preconceituosas dentro da escola. 

Como será que a escola vai lidar com as atitudes dos colegas? Dá pra suspender algumas aulas de matemática, português, ciências ou outra para ensinar às crianças sobre racismo e violência de gênero? Ou não, já que o problema é somente dela?

A mãe a levou a um salão de beleza especializado em cabelos afros. Ficou sentada na cadeira por cerca de seis horas e desceu dali mais linda ainda. Mas talvez não o suficiente para que os colegas parem de importuná-la.

Se seu desempenho não for bom nos estudos é bem provável que sua mãe seja chamada à escola para tomar ciência do fato e fazer alguma coisa. Se não melhorar, terá que refazer o ano? Caberá a ela dar conta sozinha das marcas da violência - física, psicológica, social, racial, de gênero? 

E se seu comportamento piorar? E se chorar no canto? E se começar a se cortar? Alguém poderá encaminhá-la à psicóloga. Será que é fácil conseguir acompanhamento psicológico no postinho? Ou precisará de psiquiatra e remédios faixa preta?

Quando for adulta, os profissionais de saúde que a acolherão terão paciência e interesse para escutar sua história ou apenas receitarão calmantes para o nervosismo, antidepressivos para a tristeza, analgésicos para sua dor?

Na realidade, é a sociedade que está doente, estruturalmente falando. Qual os remédios?

A linda menina quer apenas abraços, colo e ouvido.

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