terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A doença que ceifou a vida de Brás Cubas: reflexões médicas

 Brás Cubas, personagem que dá nome ao livro de Machado de Assis, nasceu em 1805, quando a expectativa de vida no Rio de Janeiro situava-se ao redor de 45 anos de idade. Portanto, quando faleceu, em 1869, já com 64 anos, era considerado idoso, talvez até muito idoso. (p. 1) Segundo o que escreveu em suas Memórias Póstumas, a causa de sua morte teria sido pneumonia, ou uma ideia grandiosa e útil, a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade - o “Emplasto Brás Cubas”. (p. 3) 

O trecho transcrito a seguir dá ideia do aspecto agudo e agressivo da doença, assim como de sua relação com a mencionada ideia de inventar um emplasto:


…recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade”. (P. 7)


Naquela época, as doenças infecciosas matavam mais que as doenças cardiovasculares ou as neoplasias, diferentemente do que ocorre atualmente. A pneumonia figurava entre as principais, ou era a principal causa de morte entre idosos. O tratamento não podia contar com antibióticos, desenvolvidos apenas no século XX. Utilizava-se, então, o repouso, sangria, eméticos (remédios para vomitar), laxantes, ventosas, chás.  

O golpe de ar corresponderia à ação do ar frio que tende a paralisar os cílios da árvore respiratória, cuja ação consiste na remoção de muco onde aderem partículas que podem facilitar o desenvolvimento de infecções respiratórias. Faz sentido a recomendação de mães e avós para evitar sair à noite, no frio.

Profundamente envolvido com a ideia de seu emplasto, descuidou-se dos primeiros sintomas da pneumonia, e não se tratou. Não é infrequente que o foco mental em um objetivo relevante para a pessoa, a faça negligenciar os primeiros avisos de uma doença. Rapidamente piorou. Esta informação reforça a hipótese diagnóstica de pneumonia, uma infecção respiratória aguda, diferente da tuberculose, a infecção mais prevalente e letal do século XIX e primeira metade do XX, porém mais arrastada. 

Durante a apreciação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, o leitor encontrará algumas passagens que descrevem personagens acometidos pela tísica e, nesse momento, poder-lhe-ia vir à mente a possibilidade de que não fosse pneumonia e sim tuberculose a causa da morte:


…capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher tísica em último grau. … A mulher ia quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito… Não estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra”. (p. 40) “Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim de semana. … Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte”. (p. 42)


Contudo, o autor não prossegue com nenhuma menção a quadro de tosse persistente, emagrecimento, fraqueza ou hemoptise, que pudessem sugerir haver Brás Cubas contraído e sucumbido à tuberculose.

Outro dado biográfico que indica tratar-se mesmo de infeção aguda, é a manifestação de delírio. Machado de Assis dedicou um dos capítulos mais longos do livro - Capítulo VII - à descrição do delírio, na sequência daqueles que apresentaram o processo de morte do protagonista. 


Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me paga o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampa; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que, senso as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. (p. 10-11) 


O delírio de origem infecciosa é mais frequente em idosos, comumente com infecção urinária ou pneumonia, e caracteriza-se por distúrbio de atenção, agitação, alteração de comportamento, alucinações, entre outros sintomas. No trecho acima é possível reconhecer alucinações visuais e auditivas. 

A presença de delírio costuma indicar gravidade da doença e pode estar relacionada a sepse.

Brás Cubas faleceu na Chácara Catumbi, de sua propriedade. (p. 1) Não se morria em hospital. Em geral, a passagem se dava em casa, cercado por familiares e amigos, como a irmã Sabina e a amiga e amante Virgília. O papel do hospital como local de morte das pessoas ganharia destaque durante o século XX, pari passu ao desenvolvimento tecnológico capaz de prolongar a vida, e, por vezes, retardar e maltratar o processo de morte. Mais recentemente, com o avanço dos cuidados paliativos, novamente incentiva-se a passagem em casa.

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