domingo, 20 de julho de 2025

Reflexões médicas em Joseph Kessel

 "La Rose de Java" é um romance escrito, em 1937, pelo escritor Joseph Kessel (1898-1979). Seu primeiro parágrafo encadeia a trama futura com o final do romance “Les temps sauvages" (1975):

"Ayant traversé la mer intérieure du Japon, Le Kita-Maru, qui venait de Vladivostok, jeta l’ancre dans le port de Kobé.” (Kessel, 1979, p. 9)

As duas obras são quase autobiográficas, uma vez que Joseph Kessel, filho de judeus russos, nascido na Argentina - durante estadia de seu pai médico numa colônia agrícola judia naquele país -, alistou-se na aviação francesa ao completar dezoito anos de idade, e, voluntariamente, seguiu com o corpo expedicionário francês para uma missão na Sibéria ao final da Primeira Grande Guerra. Em “Les temps sauvages”, Kessel narra, em primeira pessoa, sua passagem por Vladivostok. 

Nesses dois romances, o personagem principal se apaixona por mulheres locais - Lena e Florence. Em ambas as tramas, uma doença sexualmente transmissível - provavelmente sífilis - obstaculiza a aproximação íntima. No caso de Lena, foi suficiente para que o protagonista a abandonasse, poucos dias antes de embarcar para Kobe:

- Qu’à cela me tienne, mon chéri, mon angelot. Je vais te combler. La maladie, je ne suis pas de qui je l’ai reçue. Un de ces gras, lourds, ignobles vieux marchands à longue barbe et à millions de roubles qui prennent leur vrai plaisir à faire de toi une plaie? Ou encore un petit officier de l’étranger? Quelques-uns ont bien voulu se satisfaire de mes os, à défaut des autres grosses vaches. Qu’est-ce que ça peut me faire, dis? Et de repasser le mal au premier venus, dis?  (Kessel, 1980, p. 171)   

Sua atitude responsável e ética de comunicar ao amante sobre sua doença, indica seus sentimentos verdadeiros em relação a ele.

No caso de Florence, tratava-se de mentira apregoada pelo pai a fim de “proteger" sua filha. 

A sífilis é uma doença que desafiou a medicina por cerca de cinco séculos, entre o final do século XV e meados do século XX, quando finalmente um tratamento comprovadamente eficaz foi colocado à disposição da população. Foi durante a década de 1940 que a penicilina passou a ser usada com sucesso para essa doença. Antes disso, a sífilis era um grande desafio do ponto de vista médico e social. Fazia parte do cotidiano das cidades, e era frequente em regiões portuárias nas quais havia grande circulação de pessoas de diferentes países e prostituição. Atualmente, não obstante o grande avanço no tratamento dessa doença, ainda existem muitos casos, diagnosticados ou não, entre a população, alguns graves como quando a infecção é congênita.

A postura de Lena, contando ao homem que a cortejava sobre sua condição de saúde, é louvável e eticamente exemplar. O texto permite também discutir a relação entre pobreza e sífilis e o lugar destinado às mulheres nas sociedades nitidamente patriarcais, com menos possibilidades de sobrevivência, e necessidade, em alguns casos, de prostituir-se, decisão esta  hipocritamente naturalizada.  

Questões de cunho moral dificultaram o rastreamento, abordagem e cuidado de mulheres prostitutas infectadas. Políticas públicas destinadas ao controle de infecções sexualmente transmissíveis trouxeram algum alento nesse sentido, mas estamos longe de controlar a incidência dessa doença, mormente entre a parcela mais pobre e excluída da sociedade. Trata-se de tema que interessa a gestores da saúde pública, equipes de saúde da família, ginecologistas, pediatras, urologistas, neurologistas, geriatras, dermatologistas, médicos do trabalho, serviços de urgência e assistentes sociais, entre outros. 

Em “La Rose de Java”, Florence, ainda em Kobe, antes de embarcar no navio que dá nome ao livro, desloca-se em riquixá - charrete de duas rodas com um banco para passageiros, puxado por um condutor a pé. Tratava-se de um japonês idoso, portador de insuficiência cardíaca: 

J´apercevais alors un vieux visage fané, ride, sur lequel perlaient déjà de légères gouttes de sueur, et don’t les yeux cernés de poches étaient ceux d´un cardiaque.

[…]

Pendant un kilomètre, le vieil homme soutint facilement ce train. L´habitude, l´art de ménager son souffle, acquis au cours d'un demi-siècle de labeur, remplaçaient les forces que l´âge et le mal lui avaient dérobées.

Mais, passé le pont de la voie ferrée qui coupait la nouvelle ville de l´ancienne, cette maîtrise ne suffit plus.

O velho condutor japonês foi capaz de percorrer o primeiro quilometro graças à habilidade e experiência de meio século de trabalho como “kourouma”. Contudo, viu-se obrigado a parar diante de subida “pesada”, para tomar fôlego e avaliar se poderia continuar. Estava exausto e seu coração dava sinais de estar no limite de sua capacidade. 

Pendant un kilomètre, le vieil homme soutint facilement ce train. L'habitude, l´art de ménager son souffle, acquis au cours d´un demi-siècle de labeur, remplaçaient les forces que l´âge et le mal lui avaient dérobées.

Mais, passé le pont de la voie ferrée qui coupait la nouvelle ville de l´ancienne, cette maîtrise ne suffit plus.

La côte, qui, de là, menait au quartier des consulats était si dure que, instinctivement, je mis pied à terre.

A passageira mostrou-se inconformada com a interrupção da viagem e exigiu, rispidamente, que aquele amarelo, reduzido a animal de carga - "pauvre bête de somme" -, recomeçasse imediatamente e puxar a riquixá. Bem que ele tentou, mas percorreu, com grande esforço, apenas a primeira metade da subida. 

Le vieux Japonais soupira profondément, rapprocha les épaules, bomba les reins, attaqua la montée. Je le suivis, mon kourouma près de moi. Chaque pas coûtait au vieil homme une peine de ses mains crispées. Tout son corps était happé en arrière. Je contemplais avec une curiosité malsaine ce combat désespéré. Il dura jusqu´à la mi-côte.

Là, le kourouma à bout de souffle fit halte.

Esta segunda parada deixou Florence ainda mais irritada. Limitava-se a gritar para que ele continuasse. Permaneceu insensível e indiferente ao sofrimento daquele trabalhador japonês, mesmo quando ele lhe dirigiu um olhar de súplica.

- Marche!

Le vieil homme tourna la tête vers elle. Une angoisse indicible labourait son visage ruisselant, l’angoisse de ceux qui sentent une bête funeste attachée à leur coeur exténué.

- Marche! Cria la jeune femme d’une voix stridente.

O esforço final foi demasiado para aquele coração agredido tão violentamente.

Le kourouma se tassa sur lui-même, ainsi qu’un coureur qui prend son élan, puis il voulut d’un seul effort arriver au sommet de la côte. Les premières foulées furent courageuses. Soudain, il vacilla.

La métisse poussa un cri. La voiturette se renversait.

Um medo desesperador tomou conta da jovem mulher, pois a riquixá começava rolar ladeira abaixo. Coube ao velho japonês trocar sua vida pela dela, colocando sua mão entre os aros da roda, bloqueando assim o veículo. Quase que imediatamente, caiu, ele, inerte.  

Cependant, les genoux du kourouma pliaient. Un râle sifflant ravageait sa gorge. Ses doigts lâchaient…lâchaient… La voiturette penchait de plus en plus et, déjà, je la sentais  s’animer de cette force terrible que prennent les choses lorsqu’elles échappent au pouvoir des hommes. L’équilibre suprême allait se rompre dont la vie de la métisse dépendait.

[…]

Le vieux kourouma, brusquement, abandonna les brancards. J’ai encore dans les oreilles la clameur hystérique de la femme.

Mais, en même temps, le vieil homme, dans un mouvement désespéré, dans un sursaut d’agonisant, passa ses bras entre les rayons d’une roue. Puis sa grosse tête s’imprima, inerte, dans la poussière.

La voiturette, bloquée, versa simplement sur le côté.

Essa trágica passagem do romance é de interesse de, entre outras, pessoas interessadas na saúde do trabalhador. Vários sãos os aspectos merecedores de atenção minuciosa.

O trabalhador envolvido no episódio, e demandado por sua profissão a realizar extenuante esforço físico, era um homem idoso e aparentemente portador de insuficiência cardíaca. Portanto, é bem provável que um um médico atento e preparado para atuar no campo da saúde do trabalhador teria afastado aquele "kouroumaia" de sua atividade até que fosse, pelo menos, investigada e tratada sua cardiopatia, podendo inclusive ser contraindicado seu retorno ao trabalho de forma definitiva. Para isso, caberia ao médico estudar e conhecer os diferentes aspectos da profissão em questão, inclusive relacionados aos riscos à saúde. O cuidado do paciente trabalhador deveria ser interdisciplinar, com contribuição de outros especialistas, como cardiologista, por exemplo, e, de preferência dentro de uma rede de atenção com fluxo e comunicação entre seus diferentes pontos de atenção. Outro aspecto diz respeito ao reconhecimento da profissão para que o trabalhador tivesse direito a benefícios como auxílio doença ou aposentadoria por invalidez. Com certeza, não era esse o caso no Japão de 1919. Tratava-se, muito provavelmente, de trabalho informal, sem proteção social do Estado e à mercê da própria sorte. 

Passados mais de cem anos, nos acostumamos a ver, e naturalizar, pessoas puxando carroças ou carrinhos de mão e até de supermercado com objetos recolhidos pela cidade, para serem revendidos. Nem todos esses catadores de recicláveis estão vinculados a cooperativas e amiúde permanecessem na informalidade. Em que medida são conhecidos e acompanhados pelas equipes de saúde da família de forma a terem seus riscos e problemas de saúde avaliados e tratados? Quantos não lutam contra doenças cardíacas, pulmonares, ortopédicas enquanto puxam suas carroças?

Outros aspecto que o trecho em questão nos oferece diz respeito à forma como a cliente passageira se dirigiu ao “kouroumaia”, rebaixando-o à condição de mero animal de carga, sem compadecer-se de sua condição de idoso, extenuado, claramente sem condições de executar aquele trabalho. Uma das razões para tal comportamento, indicada no texto, era o fato de ele ser “amarelo” e pobre. Em outras palavras, preponderou preconceito de raça e classe social na relação entre os dois. Ela se mostrou totalmente indiferente e sem empatia pelo “kouroumaia”. Ele, por sua vez, revelou-se submisso e não foi capaz de agir sem se prejudicar, sendo coagido a continuar o insuportável esforço. É correto dizer que relações desse tipo podem, como no caso apresentado, causar adoecimento de trabalhadores.

Hoje, assim como no enredo de 1919, muitos trabalhadores são vítimas de processos de trabalho e comportamentos desrespeitosos, agressivos, tanto por parte de alguns cientes como de alguns chefes. Não à toa que o principal problema de saúde ocupacional deste século XXI está na esfera psíquica, com possíveis interações de dupla mão com o físico. 

Ainda que tenhamos avançado muito no que se refere a legislações que protegem trabalhadores, fica-se com a sensação que as profissões mudam, os personagens são outros, mas a essência dos problemas permanece a mesma.

 

Referências:

Kessel, Joseph. La Rose de Java. Paris: Gallimard, 1979. p. 23-28.

Kessel, Joseph. Les temps sauvages. Paris: Gallimard, 1980.

sábado, 5 de julho de 2025

Interações dialógicas transformadoras com João de Barro

No seu afã de interagir, conhecer, transformar e ser transformado, um grupo de extensionistas tem se reunido regularmente com João, aquele que construiu sua casa no alto do poste, bem onde está o apoio transversal de onde partem fios de telefonia e televisão a cabo. De sua residência, pode observar, lá em baixo, as pessoas na praça e o movimento das bikes, carros e motocicletas. Deu-se conta que estas últimas, quando pilotadas por jovens, produzem um barulho ensurdecedor, capaz de tirar-lhe o sono e a paciência, o que acontece, mormente ao anoitecer, quando João já se recolhe ao leito. Bem que seu primo do campo lhe prevenira disso, quando prosearam sobre sua mudança para a cidade. João gosta mesmo do amanhecer, quando o silêncio das ruas e a pureza do ar lhe fazem chegar aos ouvidos o som dos pios das outras aves que por ali vivem ou simplesmente anunciam sua passagem, sozinhas ou em grupos. Algumas chegam a esgoelar sua felicidade por mais um dia nascendo. Outras conversam sem cessar enquanto viajam, fazendo parecer que o bater de asas não exige qualquer esforço. Sua companheira de toda a vida fica ao seu lado, na entrada do ninho. Costumam saudar a alvorada, cantando juntos e batendo as asas, cheios de energia e dispostos a prosseguir na construção da casa própria.

João e sua companheira orgulham-se da habilidade desenvolvida. Os numerosos vôos para buscar e carregar os materiais de construção até a obra são um pouco cansativos, mas a satisfação da casa terminada os faz esquecer qualquer sacrifício anterior. O resultado é tão sublime que há tentativas de imitá-los por parte de pizzaiolos, padeiros e até gente da roça.  

Sua esposa colocou quatro lindos ovos há cerca de duas semanas e o casal está ansioso para receber os filhotes nos próximos dias. Será motivo de alegria e animação. Tão logo cresçam e ganhem o mundo, a casa começará a ficar obsoleta e será abandonada. No ano que vem escolherão outro lugar para uma nova construção, provavelmente mais sofisticada. A casa abandonada servirá de lar a outras aves ou será removida por um funcionário da companhia de energia elétrica da cidade e vendida por mais de cem reais.

Seu tio, conhecido como Sr. Hornero, vive na Argentina e se vangloria do status de celebridade que adquiriu por lá. Emprestou seu nome a uma renomada revista de ornitologia e sua imagem encontra-se estampada na nota de 1000 pesos. Não esconde a vaidade quando conta que costuma avistar pessoas o observando com binóculos e fazendo anotações em um livro onde sua fotografia pode ser vista. Como é fácil dar alegria a esses seres estranhos!

Os extensionistas mostraram-se interessados na história de vida de João e discutem o significado da monogamia furnariana, do trabalho colaborativo e sintonizado do casal, do repetido recomeço da construção do lar ano após ano, e do valor atribuído a uma construção simples, feita de barro, esterco e palha. 

Dizem que essas discussões os ajudarão a compreender melhor o mundo e viver com mais harmonia e justiça. 

sexta-feira, 25 de abril de 2025

Fracasso anunciado

     Tem histórias que são sofridas de contar porque as lembranças que evocam podem ser dolorosas. Por isso, hesitam em se acomodar numa folha de papel ou numa tela de computador. Às vezes, ficam em banho-maria, se movendo de um lado para outro dentro da nossa cabeça, evitando a porta de saída, por dias, semanas, meses e até anos. A que surgirá nas linhas abaixo me enrolou por cerca de um mês, correndo o risco de se esvaziar parcialmente das emoções mais agudas que a acompanharam por ocasião de seu último capítulo. Mas, de repente, pediu para sair, pois não mais cabia dentro da cabeça que a acolhera, como a lava que decide escorrer do vulcão que a continha.

Quiçá pudesse ser evitada, reprimida, refreada, pois viria carregada de tristeza, indignação, revolta. Mas precisou brotar, uma vez que seu objeto é a curta e intensa história da vida de uma criança, que não sossegará enquanto o relato permanecer apenas esboçado no plano das ideias.

A conheci na favela onde morava com sua avó, tios e irmão, durante as atividades de extensão universitária que desenvolvemos por cinco anos junto à comunidade daquele assentamento urbano, cujas moradias eram invariavelmente de madeiras finas, justapostas como num mosaico, no mesmo tom monótono e melancólico da terra batida das estreitas ruas que as ladeavam. 

Morena, cabelo grosso, olhos negros, dentes grandes, não passava desapercebida. Nas fotografias aparece quase sempre colada aos alunos, como que implorando, à sua maneira, por atenção e afeto. Líder, dominava as demais crianças com sua postura proativa, participativa e, não raras vezes, violenta. Inteligente e esperta, rapidamente aprendeu os nomes do todos os tios da universidade e os esperava nas datas agendadas.

Me contou que sua mãe estava presa desde os dezesseis anos de idade, mas que tão logo deixasse a prisão viria morar com a família. Não a conhecia ou não tinha lembranças dela. Sua mãe teve seis filhos, dos quais quatro foram entregues para adoção e dois - ela e seu irmão - ficaram com a avó. Ela era a caçula. Já se foram seis anos desde essa conversa e a mãe não apareceu. De repente, a menina parou de mencionar sua progenitora e passou a chamar sua avó de mãe, pois ela precisava de uma.

Sua avó era então uma mulher muito magra, que bebia e fumava todos os dias. Sob efeito da bebida, mormente à noite, acontecia de insultar a neta e perguntar se alguém queria criá-la no seu lugar. Nos momentos de sobriedade, representava o porto seguro onde a fedelha ancorava seus medos e inseguranças. As irmãs de sua mãe eram muito jovens, tinham filhos pequenos e compartilhavam a dependência de substâncias psicoativas com outros jovens da favela.  

Gostava muito da escola, um lugar de encontro de amigos, afetos e, sobretudo, alimentos. Sofreu muito com o fechamento da escola durante a pandemia, conforme o ronco da barriga e da alma sinalizava àqueles de ouvidos mais atentos.

Acompanhamos seu crescimento durante os anos que frequentamos a favela. 

Não era infrequente testemunharmos adultos vizinhos gritando com ela. Eles gritavam entre eles também ou se agrediam quando algo estava em disputa, apesar de que, em outros momentos, era a solidariedade que prevalecia. A elevada densidade de barracos e de pessoas naquele território parece ter sido fator determinante para o alto grau de tensão social na comunidade, além, é claro, da péssima infraestrutura sanitária e a elevada taxa de desemprego entre os moradores.

Em 2020, um incêndio destruiu vários barracos. Ao serem reconstruídos, diferentemente dos demais, ganharam caixas d’água. A menina lamentou que seu barraco fôra poupado e, consequentemente, não teria uma caixa d’água, esperança de um banho de chuveiro, pois a maioria dos moradores contava apenas com canecas. 

A maioria dos lares era chefiado por mulheres. Muitos homens não eram companheiros e não contribuíam com a criação dos filhos. Alguns estava presos, outros  mortos ou distantes.

As mães das crianças, em sua maioria, engravidaram pela primeira vez muito jovens, no início da adolescência, assim como ocorrera com as avós. Temíamos que o ciclo se perpetuasse.

Nossa personagem desenvolveu-se fisicamente muito rápido. Aos nove anos de idade, seu corpo já manifestava os primeiros sinais da puberdade. Fazia brincadeiras e piadas de cunho sexual, aprendidas com outras crianças, que, assim como ela, eram curiosas e muito observadoras, mas também com adultos. Essa sexualização precoce a transformara numa criança em risco de violência sexual, não bastasse as demais formas que, infelizmente, já experimentara. 

A transição entre ser criança e adolescente, e a educação sexual, foram temas de projetos de extensão universitária e de pesquisa, pois atraíram a atenção e preocupação dos alunos, cada vez mais envolvidos com aquelas meninas e aqueles meninos. 

Desde cedo aprendera a pedir dinheiro, bolachas, balas, enfim qualquer coisa que pudesse lhe ajudar a matar a fome ou o medo de senti-la. Em geral, dava-se bem. 

Aos dez anos, foi obrigada a deixar o território de sua infância, juntamente com sua família, em razão da necessidade de urbanização do bairro, que seria agora reservado apenas aos não miseráveis. Todos os barracos vieram abaixo, incluindo o seu. Não restou nenhum. Foi morar nos fundos de uma oficina mecânica e, em seguida, numa outra ocupação. A perdemos de vista e nos restou acompanhá-la de longe, graças a informações fornecidas por outros moradores que permaneceram próximos ao território da favela.

Volta e meia era vista, aos sábados, pedindo lanches ou almoços numa feira de Barão Geraldo, bairro rico de Campinas, em companhia de prima mais velha ou do irmão. Seu lindo sorriso era sedutor e quase sempre obtinha o que buscava. 

Pouco tempo atrás, soubemos que é vítima de exploração sexual e consome drogas, com apenas onze anos de idade. 

Um dedicado aluno de medicina, dentro da sala de aula, por ocasião de seminário sobre sistemas comparados de saúde, contribuiu com o debate dizendo que, segundo o que pesquisara com ajuda de seu tablet, a Bélgica, tema da apresentação de seus colegas, é um país com excelentes faculdades de medicina, de acordo com um ranking internacional de escolas médicas. Ficamos interessados em conhecer os autores do ranking e os critérios utilizados. Muito provavelmente, as instituições recebiam pontuação em função da qualidade de seus hospitais, laboratórios de pesquisa e simulação, de sua biblioteca, da produção científica de seus professores e pesquisadores, citações e impacto na indústria. Critérios apropriados, talvez, para escolas médicas de países ricos, com mínima desigualdade social e ausência de meninas que sofrem violência psíquica, física e sexual, que passam fome, que moram em condições precárias, que têm o acesso à saúde e educação de qualidade dificultado, que sofrem exploração sexual ainda crianças. Ao invés de simplesmente importar do hemisfério Norte qualquer metodologia de avaliação de faculdades de medicina, urge incorporarmos medidas que dêem conta das singularidades de sociedades tão desiguais como a nossa. Importa-nos saber se a instituição fomenta a interação dialógica com outros setores da sociedade, com diferentes comunidades, se incentiva seus estudantes a lutar contra a injustiça social, a compreender e reconhecer a determinação social do processo saúde-adoecimento-cuidado, a desenvolver habilidades e competências relacionais capazes de os preparar para acolher meninas como nossa personagem, a defender um sistema de saúde verdadeiramente universal, inclusivo, equânime, adequadamente financiado, e uma prática em saúde que coloque a pessoa acima de sua doença biológica. 

Nem mesmo a ampliação da atenção primária à saúde (APS), da estratégia de saúde da família (ESF), da medicina de família e comunidade, do Sistema Único da Assistência Social, do trabalho em equipe interdisciplinar, interprofissional e intersetorial, foi suficiente para que a menina fosse acolhida e protegida oportunamente. Desfilou sua miséria e seu sofrimento pela escola, centro de saúde, centro de referência da assistência social, vizinhança. Infelizmente, muitas vezes não foi reconhecida, e, quando o foi, as ações realizadas mostraram-se ineficazes.

O cuidado em saúde próximo ao local onde a pessoa reside, próprio da APS, o emprego do método clínico centrado na pessoa ou da clínica ampliada e compartilhada, as reuniões de equipe de saúde da família, o apoio matricial pelas equipes multidisciplinares, os projetos terapêuticos singulares e as visitas domiciliárias são apresentadas, ainda que nem sempre na sua melhor condição, aos estudantes da área da saúde, e não são estranhos aos profissionais da APS. Contudo, são de pouca ou nenhuma valia se a pessoa em sofrimento não estiver suficientemente vinculada à equipe de saúde, se seu caso não for tratado de forma singular, se não reconhecermos a gravidade de sua condição clínica e social. 

A menina nos convoca a reavaliar nossas estratégias de cuidado e de formação de profissionais, assim como nossas práticas em saúde.

É provável que a ESF, mesmo contando com a intersetorialidade, não dê conta mesmo de tamanha complexidade e desigualdade social, pois, lamentavelmente, a história dessa menina não é única. Os profissionais da APS trabalham muito e, amiúde, sob pressão de grande demanda, em geral de desafiadora complexidade. Como assegurar que conheçam e vinculem todas as pessoas em sofrimento esparsas em seu território de abrangência, principalmente das comunidades mais pobres que, não raramente, sofrem preconceito e discriminação? Mais do que nunca estas dependem da garantia da equidade.

Há pouco tempo, o Ministério da Saúde, convidou pró-reitores de extensão de universidades públicas brasileiras para discutir como as universidades podem ajudar o SUS. Interessante e estratégico o reconhecimento de que a extensão universitária poderia ocupar esse lugar complementar ao trabalho das equipes do SUS, criando vínculo com moradores de comunidades distanciadas das unidades de saúde, detectando e acolhendo crianças como a menina deste relato, interagindo com os profissionais das equipes de saúde.  

Cabe às escolas médicas olhar para seus currículos e abrir espaço para que seus estudantes não se limitem a atividades práticas em hospitais universitários ou unidades básicas de saúde, mas que tenham oportunidade de interagir dialogicamente com pessoas de diferentes comunidades, nos territórios onde residem, sem a preocupação de  que tais encontros sejam apenas momentos de exercício de uma prática em saúde tradicional, mas sim oportunidades de desenvolvimento de outras formas de relacionar-se com pessoas detentoras de saberes, experiências, valores e crenças singulares e relevantes. 

A integração da extensão universitária ao currículo - processo interdisciplinar, educativo, cultural, científico e político que promove a interação transformadora entre universidade e outros setores da sociedade - vai muito além da simples presença do estudante, professor ou profissional de saúde na unidade básica de saúde ou no território adscrito à equipe. Mais do que uma porcentagem de horas curriculares longe das salas de aula, laboratórios, ambulatórios e enfermarias, trata-se de uma postura efetivamente dialógica e interessada nos saberes, histórias e desejos do outro, externo à universidade.

O papel social da universidade depende em grande medida, sem sombra de dúvidas, da coragem para colocar a extensão universitária no centro do ensino e da pesquisa, conhecendo e respondendo às reais demandas da sociedade.

Febre amarela: a morte evitável

    Os principais veículos de comunicação noticiaram a morte por febre amarela de um homem de 39 anos de idade na cidade de Campinas, na primeira semana de fevereiro de 2025. Em praticamente todas as matérias, enfatizou-se o fato do homem morar na região rural do município, no distrito de Sousas, assim como a imediata ação de vacinação voltada aos moradores do entorno de sua residência. Essas duas atitudes serviram para educar as pessoas sobre a importância de procurar um centro de saúde para receber a vacina, caso não a tenham recebido nenhuma vez durante a vida, e para tranquilizar uma população residente tanto na área rural como na urbana, traumatizada com a doença que ceifou vidas ou provocou a fuga de cerca de dois terços dos habitantes durante a segunda metade do século XIX, ainda na memória coletiva da cidade.

O fato merece reflexão mais aprofundada, pois seu significado não se limita a simples episódio fortuito, isolado e sem gravidade.

A febre amarela é doença infecciosa potencialmente grave, transmitida por mosquitos e que pode cursar com febre e icterícia, isto é, conjuntivas e pele amareladas, justificando seu nome. Além desses sinais, os doentes podem apresentar cefaleia, fraqueza, dor no corpo, náuseas, vômitos, calafrios, hemorragia e choque, podendo levar à morte. Com exceção da icterícia, as demais manifestações são comuns também em casos de dengue e outras arboviroses, confundindo ou atrasando o diagnóstico da enfermidade, sobretudo em vigência de surto destas outras doenças na cidade. Daí a importância de uma boa história clínica, investigando o local de residência e trabalho do paciente, a presença de outras pessoas doentes na região, e se há notícia de macacos mortos - funcionam como sentinelas.

O mosquito transmissor da febre amarela urbana é o Aedes aegyptii,  o mesmo que veicula o vírus da dengue, chikungunia e zika. Provavelmente, foi introduzido no Brasil pelos navios negreiros, valendo-se da água conservada à bordo, em grandes barris, e transmitindo a doença a escravos e tripulantes. A palavra Aedes provem de aedos, artistas que tocavam lira enquanto recitavam seus poemas, na Grécia Antiga. O dorso do mosquito tem listas negras que lembram uma lira. Por sua vez aegyptii nos faz lembrar de sua origem africana. (Steffen, 2005, p. 52) 

A febre amarela silvestre, adquirida em florestas, tem como vetor insetos dos gêneros Haemagogus e Sabethes, que vivem nas copas de árvores e picam macacos.

Os primeiros casos ocorreram em 1685, trazidos por negros provenientes da Ilha de São Tomé. Voltaria a ocorrer apenas a partir de 1849, principiando na Bahia. (Santos Filho & Novaes, 1996, p. 17)

A primeira epidemia de febre amarela a atingir Campinas, em 1889, encontrou a cidade em declínio por causa do fim da escravatura, após um período de crescimento rápido que a havia transformado no principal centro econômico do sul do país. Acredita-se que uma mulher suíça - Rosa Beck -, de 24 anos de idade, recém-chegada ao Brasil, tenha contraído a doença no porto de desembarque e manifestado os sintomas já em Campinas, onde pretendia trabalhar como professora de francês. Faleceu a dez de fevereiro, no mesmo mês que o trabalhador falecido em 2025. (Santos Filho e Novaes, 1996, p. 39) Curioso que a gripe espanhola foi introduzida no Brasil por passageiros de um navio britânico proveniente da Lisboa, o Covid-19, por passageiros oriundos da Itália e a febre amarela trazida, provavelmente, de Santos a Campinas por uma suíça.

Essa primeira epidemia causou mortes e pânico, a mortalidade oscilou entre 20% e 25%, fazendo com que a população reduzisse em dois terços, os barões do café se retirassem definitivamente e a cidade praticamente parasse. (Corrêa, 1992, p. 147; Santos Filho & Novaes, 1996)

Podendo contar com poucos médicos residentes na cidade, chegaram outros de outras cidades, como Rio de Janeiro. Acudiram também estudantes de medicina do quinto e sexto anos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. (Santos Filho & Novaes, 1996, p. 55-56)

Adolfo Lutz se fez presente, dedicando-se a observar a doença e a forma de contágio. Ele residiu em Limeira, onde havia uma colônia suiço-alemã, entre 1882 e 1886, quando viajou à Hamburgo, Alemanha, para estagiar com o renomado dermatologista Unna, a fim de adquirir mais conhecimentos sobre a lepra. De volta à São Paulo, em 1888 foi indicado por Unna para colaborar com o Estado do Havaí que lutava contra um número grande de doentes com essa doença. Contudo, interrompeu as tratativas para sua viagem e acorreu a Campinas, onde trabalhou o tempo todo protegido por um mosquiteiro. Viajou ao arquipélago do Havaí apenas em novembro de 1889. (Corrêa, 1992, p. 144-146) Essa passagem de Lutz por Campinas, no momento da grande tragédia da cidade, deve ter pesado no momento dos alunos da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp escolherem o nome de seu Centro Acadêmico.  

Outras epidemias se sucederam em Campinas nos anos seguintes: 1890, 1892, 1896 e 1897.

A primeira epidemia se deu num contexto de disputas de teorias explicativas da forma como as pessoas adquiriam as doenças, num processo de deslegitimação dos miasmas como causadores e valorização do papel das bactérias. No que se refere à febre amarela, o médico cubano Carlos Finlay afirmou, em 1881, que a doença era transmitida por um mosquito. Por outro lado, o médico italiano Giuseppe Sanarelli defendia a teoria da existência de um bacilo icteroide, como responsável pela doença. Esta teoria teve grande aceitação na Europa entre 1897 e 1898. Apesar da resistência de grande parte dos clínicos paulistas, sobretudo das cidades do interior, o comportamento de Lutz, sempre protegido por mosquiteiro, demonstra que a teoria da transmissão por mosquito foi a que prevaleceu na cidade durante a epidemia.

Entre 1902 e 1903, Emílio Ribas coordenou pesquisas no Hospital de Isolamento de São Paulo a fim de comprovar a teoria de Finlay, pois recebia muitas críticas de médicos paulistas. Três voluntários brasileiros, um italiano, Emílio Ribas e Lutz se deixaram picar repetidas vezes, por mosquitos infectados. Os três voluntários desenvolveram sintomas da doença. Outros três voluntários, italianos recém-chegados ao Brasil, dormiram em camas com lençóis sujos com sangue e vômitos de doentes, num quarto fechado e quente, sem mosquitos. Nenhum destes adoeceu. (Almeida, 2009) 

Felizmente, a vacinação previne a doença.

Agora que sabemos que a febre amarela é transmitida por mosquito, que carrega o vírus, que a vacina previne a doença, que é potencialmente grave, podendo causar a morte, podemos analisar melhor o que aconteceu com o morador da zona rural do Distrito de Sousas, em Campinas. 

A primeira reflexão é que a doença na sua forma silvestre, transmitida na zona rural, tende a aumentar cada vez que a cidade avança para as matas ao seu redor, provocando desequilíbrio ecológico. Portanto, a forma como a cidade está se expandindo, com novos condomínios em direção às matas, determina cada vez mais a eclosão de novos surtos de doenças, velhas ou novas.

O fato de um morador de área rural, com maior risco de febre amarela, não estar vacinado também deve ser analisado. Uma ação de vigilância pelas equipes de saúde da família poderia detectar pessoas moradoras dos condomínios e chácaras da região não vacinados. Essa ação poderia ser uma atividade de extensão universitária de alunos de enfermagem e medicina, em colaboração com a secretaria de saúde. Assim como os estudantes colaboraram durante a epidemia de 1889, poderiam participar de ações de vigilância, educação em saúde e prevenção passados 136 anos.

Concluindo, podemos afirmar que a declaração de óbito reduz, e muito, a explicação da causa da morte, ao ser preenchida com febre amarela apenas. Na realidade a morte tem vários fatores determinantes, como a expansão da cidade desrespeitando o meio ambiente, e a não vacinação, com suas diferentes explicações. O que sabemos, é que a morte poderia ter sido evitada.   



Referências

Almeida, Marta de. Tempo de laboratórios, mosquitos e sete invisíveis: as experiências sobre a febre amarela em São Paulo. In: Chalhoub et al. (org.) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2009. p. 122-260. 432p. ISBN 85-268-0663-7.


Corrêa, Marcelo Oswaldo Alvares. A saga de Adolpho Lutz no arquipélago do Hawaii. In: Antunes, José Leopoldo Ferreira; Nascimento, Cláudia Barleta do;  Nassi, Lúcia Castilho & Pregnolatto, Neus Pascuet.  Instituto Adolfo Lutz - 100 anos do Laboratório de Saúde Pública. Instituto Adolfo Lutz - Editora Letras & Letras, 1992. p. 143-156. 280p. ISBN 85-85387-29-7.


Santos Filho, Licurgo de Castro & Novaes, José Nogueira. A febre amarela em Campinas 1889-1900. Campinas: Área de Publicações CMU/Unicamp, 1996. 302p. ISBN 85-85562-03-X.


Steffen, Edgard. O anjinho dos pés tortos e outras histórias. Itu: Ottoni Editora, 2005. 188p. ISBN 85-7464-149-9.  

segunda-feira, 3 de março de 2025

Sua Cidade Maravilhosa

 Mais um dia na cidade maravilhosa, onde você


  busca 

          outros

                      saberes, sorrisos, olhares, discursos e experiências,


  busca

          alimentar

                      seus sonhos e esperanças, 


  busca

          compreender

                      porque o calor é mais quente para uns do que para outros,

                      porque o inverno pode ser mais frio para uns do que para outros,

                      porque a fome é mais funda para uns do que para outros,

                      porque a praia e o mar são mais belos para uns do que para outros,

                      porque a cidade não é maravilhosa para todos,


  busca

          descobrir

                      como você se encaixa neste mundo,

                      como você poderá contribuir para que ele seja menos desigual,

                      como você ajudará Valentina a não deixar de sonhar,

                      como você não perderá a beleza de seus olhos.


               

domingo, 26 de janeiro de 2025

Dor de dente: quanta injustiça

    Esta crônica eu preferia não ter que escrever, por causa do grau de sofrimento humano que a gerou. Mas não foi possível ficar calado. Ela nasceu de uma brutal dor de dente, e de escritos de Olavo Bilac e Mikhail Bulgákov. Trata-se da mesma personagem de crônica anterior, intitulada “A Pista”, publicada no livro “Reflexões e crônicas sobre a Clínica Ampliada”. (BEDRIKOW, 2022) Só que quinze anos depois, tempo suficiente para que ela sofresse, continuadamente, violência de gênero. Os socos na face contribuíram, sem sombra de dúvidas, para arruinar, definitivamente, os dentes já desgastados pelos anos de tabagismo. Muitos foram sendo extraídos ao longo da última década. Parou de sorrir, por vergonha. Mas amiúde não havia motivo para sorrisos, dada as provas que a vida impôs à jovem. Quando finalmente conseguiu libertar-se do marido bárbaro, seus dentes impediram que esquecesse do traste. Volta e meia, insistiam em causar dor. Infelizmente, o acesso a dentista sempre lhe foi dificultoso. Cinco senhas eram distribuídas aos que primeiro chegassem ao centro de saúde. Uma disputa cruel para a mãe de quatro filhos que precisavam apresentar-se à escola logo cedo, diariamente. Se quisesse chegar à unidade de saúde entre quatro e meia e cinco horas da manhã,  na esperança de ser contemplada com uma das senhas, precisava sair de casa ainda na escuridão da noite, e deixar os filhos sozinhos. No pronto socorro, ofereciam-lhe apenas injeção intramuscular e medicação no soro, de consumo rápido e efeito quase que fugaz. As receitas pouco variavam. O corpo já esperava pela amoxicilina ou cefalexina. Há cerca de três meses, a situação piorou muito. Desistiu do postinho do seu bairro, pois aguarda, sem êxito, há meses ser chamada para consulta. Com ajuda de amigos, vem pagando dentista particular. Foram várias intervenções com drenagem de pus e limpeza. Os pontos insistem em reabrir e tudo volta à estaca zero. A dor, como ela costuma dizer, não a deseja nem a um cachorro. Quantas vezes passou a noite andando para cima e para baixo na viela! Teve que diminuir bastante a ingesta de alimentos e, agora, tem vergonha também da magreza. Mostra os ossos salientes, das clavículas, dos ombros. A última cirurgia na boca foi atroz. O anestésico não agiu como esperado. Ficou pálida. Transpirou. Preferia a dor de parto. Saiu da sala com treze pontos na boca. A prima precisou ampará-la, tanto na ida como na volta. E pensar que a anestesia moderna desenvolveu-se, em grande medida, para o tratamento dentário, primeiro com o uso de éter e óxido nítrico, e mais tarde o clorofórmio, a partir da década de 1840. (Porter, 1996, p. 228-229) 

O triste episódio resumido acima me impeliu a reler um trecho do livro “Anotações de um jovem médico e outras narrativas”, de Mikhail Afanasievitch Bulgákov, nascido em Kiev, na Ucrânia, em 1891, e que exerceu a medicina antes de se tornar escritor. Vale a pena conhecer (Bulgákov, 2020, p. 96-98):


Pois bem… Recordo-me perfeitamente daquela fisionomia corada, mas em intenso sofrimento, no banquinho à minha frente. Era um soldado retornando, junto com outros, do front que se desmanchava após a revolução. Lembro muito bem também do dente cariado, forte e colossal, solidamente cravado no maxilar. Apertando os olhos com uma expressão sábia e soltando grasnidos de preocupação, coloquei as pinças no dente, momento em que, todavia, lembrei-me nitidamente do conhecido conto de Tchekhov sobre como arrancaram o dente de um sacristão. E então, pela primeira vez, esse conto não me pareceu nem um pouquinho engraçado.

Ouviu-se um estalo na boca e o soldado uivou brevemente: “Auuu!”.

Depois disso, cessou a resistência sob a minha mão e as pinças saltaram da boca ainda apertando um objeto branco e ensanguentado. Aí o meu coração paralisou de medo, porque o objeto ultrapassava em volume qualquer dente, mesmo o molar de um soldado. De início não entendi nada, mas depois por pouco não me pus a soluçar: nas pinças, é verdade, sobressaía um dente com raízes bem longas, mas do dente pendia um enorme pedaço de osso, irregular, vividamente branco.

“Quebrei o maxilar dele”, pensei, e as minhas pernas fraquejaram. Bendizendo a sorte por nem o enfermeiro, nem as parteiras estarem por perto, com um movimento sorrateiro eu embrulhei o fruto do meu trabalho malfeito em gaze e o escondi no bolso. O soldado se balançava no banquinho, segurando-se com uma mão ao pé da cadeira obstétrica e, com a outra, ao pé do banquinho, e me olhava com olhos esbugalhados e completamente atônitos. Desnorteado, enfiei-lhe na cara um copo com uma solução de permanganato de potássio e ordenei: “Bocheche”.


A descrição feita por Bulgákov deixa transparecer a dor do paciente. O doutor autor, diante do padecimento de seu paciente, recuperou na memória o conto de Tchekhov. Eu, também médico escritor, fiz o mesmo, espontaneamente. Frente ao quase insuportável martírio de minha personagem, trouxe à tona o trecho da obra de Bulgákov. Não bastaram as pinças, bisturis e estetoscópios. Tivemos que lançar mão de livros, da literatura, para compreender e aliviar o sofrimento. 

Outro escritor médico - quase, pois não concluiu o curso de medicina - pediu passagem. Não tive como recusar a presença de Olavo Bilac nestas linhas, em razão de uma crônica sua publicada na Gazeta de Notícias de 1894 (BILAC, 1894, p. 64-67):

Não sei a que propósito me vem agora esta recordação. A alma tem às vezes destes fenômenos singulares. Começa-se a meditar sobre um fato, e, de repente, é outro, inteiramente outro, o que se impõe à meditação. A que vem agora esta crônica livre, lembrando seis horas tristes que passei há dez anos?

Foi, creio, em 1883. Estudava eu medicina, praticando, como interno supra-numerário, nas enfermarias da Misericórdia. Faltou um dia ao serviço o interno efetivo de uma das enfermarias de cirurgia. Fui designado para substituí-lo. E, justamente, o professor, que dirigia a clínica nessa enfermaria, teve de praticar em um enfermo uma operação de certa gravidade. Tratava-se, bem me recordo, da ablação de um largo trecho do maxilar inferior, roído pela cárie. O doente era um caboclo reforçado, um belo exemplar de homem, face bronzeada, cabelos corridos e negros, ohos pequenos, cujo brilho singular e fixo perturbava. Tinha uma lesão cardíaca. Essa lesão, e, mais, o fato de carecer a operação de ser feita em uma posição incômoda, devendo o sangue encher a boca do paciente, tapando-lhe a garganta, impediam que se procedesse à cloroformização prévia.

De modo que a horrível operação, cujos pormenores e incidentes me estão ainda hoje dolorosamente gravados na memória, teve de ser suportada pelo desgraçado, em perfeita e consciente vigília, com todos os nervos em sensibilidade completa… Foi medonho! Durante hora e meia, assisti ao espetáculo da mais bela, da mais admirável, da mais incrível coragem que um homem pode mostrar! Estendido a fio comprido sobre uma mesa, com as pernas e os braços contidos pelos ajudantes, o doente tina apenas, por todo o corpo, um tremor contínuo, ininterrompido, uma agitação de toda a pele. Os seus olhos, pequenos e faiscantes como dous carbúnculos, não se fecharam nunca: durante hora e meia, fixos, terrivelmente fixos, brilharam secos, sem uma lágrima…

Primeiro foi o bisturi que rasgou a pele, os músculos, pondo a descoberto o osso que a cárie comia. Depois, as pinças homeostáticas que apertaram as extremidades toradas de artérias. Depois o serrote que começou a ranger no osso, com um barulho que nos dava a todos arrepios de terror. Depois o curativo. E do começo até o fim, os olhos do caboclo rutilavam, sinistramente abertos, e todo o seu corpo tremia de leve sob as nossas mãos, sacudido pela dor que aquela carne padecia e pelo esforço sobre-humano que continha aquele espírito…

*         *          *

Quando transportado para o leito, na enfermaria, fecharam-se-lhe os olhos. Adormeceu.

Passava de meio-dia. Só tornei a vê-lo, à meia-noite, quando, chegada a hora do meu quarto, me vieram acordar para que eu fosse substituir o primeiro interno.

Oh! A sinistra, a indescritível viagem, à meia-noite, por vinte corredores sem fim, de chão lustroso e escorregadio, - só, estremunhado ainda de sono, passando por portas negras de enfermarias, frouxamente alumiadas por lâmpadas oscilantes, - só, dentro daquela imensidade escura, como dentro de um túnel de sonho, povoado de gemidos, de soluços, de estertores de febre, de sons incoerentes e vagos, de barulhos de tosse, e cheio de um cheiro indefinível, misto, de ácido fênico, de podridão, de suor de agonia!…

Depois, a vigília. Na enfermaria quase sem luz, numa penumbra em que os vultos das camas regularmente alinhadas mal se distinguem, uma mesa pequena posta junto da cama do operado. Sobre a mesa, fios, pinças, pulverizadores de Lisner, frascos pequenos com ácido fênico e perclourureto de ferro. Uma vela, uma garrafa de vinho do Porto, garrafas de remédios, poções calmantes; e à mão, entre todos esses apetrechos, o termômetro.

Aproximei-me da cama, inclinei-me para o doente.

Dormia. Uma respiração irregular, entrecortada, lhe levantava e abaixava intermitentemente o peito. Ardia-lhe a pele, queimada de febre. Tomei-lhe a temperatura, registrei-a na papeleta, e acendendo a vela, sentei-me em frente à mesa, e tentei ler um livro que levava comigo.

Começou então a escoar-se o tempo mais longo por que tenho passado na minha vida. A chama da vela, agitando-se levemente, abria em torno da mesa um círculo de claridade: fora dele a escuridão da enfermaria aumentava pelo contraste. Naquela enorme sala, altíssima, comunicando, adiante e atrás de mim, com outras salas, o menor barulho tomava proporções estranhas, exagerando-se, alucinando-me. E os meus olhos, afundando-se na extensão das salas que se sucediam, avistaram um sem número de lâmpadas mortiças, tremendo, tremendo, continuando-se a perder de vista. Daí a pouco, aquele meio apavorante me havia dominado. Passeavam pela escuridão claridades vagas, como de sudários brancos voando. Os rumores confusos de tosse, de gemidos de respirações difíceis, tomavam corpo, avultavam, entravam-me pelo ouvido, martelando-me o cérebro. A morte estava ali perto de mim. E eu sentia o seu hálito gelado bafejar-me a nuca: e tinha a certeza absoluta, precisa, iniludível, de que me bastava voltar a cabeça para vê-la…

Nesse momento senti que o operado se agitava no leito. Tive um suspiro de alívio, abençoando aquele movimento, que me arrancava das mãos do terror que me empolgavam. Levantei-me e aproximei-me da cama, com a vela acesa em punho. O desgraçado acordara. E a primeira cousa que vi foram os seus olhos, os seus mesmos olhos de durante a operação, abertos, horrivelmente abertos, fixos em mim.

E só então, compreendi o que esses olhos me diziam de manhã, quando os bisturis rangiam sobre a carne ensanguentada, e o que me estava dizendo naquele momento. Havia nesses olhos, que se enchiam de um clarão sinistro, um tal desprezo pela dor, um tal nojo pela vida, uma tão absoluta serenidade diante da morte, que eu admirei esse homem extraordinário, como nunca mais hei de admirar ninguém…

Tomei-lhe a temperatura. A febre baixara. Mas a respiração era difícil. E alguma cousa, não sei o quê, me incutiu no espírito a convicção de que ele ia morrer. E os seus olhos me fitavam. Dei-lhe uma colher da poção, cheguei a minha face até perto da sua, falei-lhe carinhosamente, com a voz quase soluçando, como se fala a um irmão que vai morrer… Ele olhava-me sempre, como quem quer falar e não pode, como quem precisa dizer uma cousa que está enchendo a alma e não pode passar da garganta. Ao cabo de algum tempo, cerrou as pálpebras… Adormeceu, ou pareceu adormecer de novo.

Voltei para minha mesa.

         *          *         *

Então, mais calmo, fortificado pelo nobre espetáculo daquela nobre coragem, começava eu a ler, quando um rumor diferente dos outros que haviam até então povoado a enfermaria, me chamou a atenção. Era um como arrastar de sandálias, acompanhado de um cicio brando… E, olhando para a frente, vi que longe, muito longe, na escuridão da última sala, balançava-se uma luz, quase ao nível do chão. De quando em quando sumia-se a luz e cessava o rumor. Depois aparecia ela mais próxima e ouvia-se mais distintamente o arrastar de sandálias e o cicio da prece. Compreendi. Era uma irmã de caridade que, com a sua lanterna, fazia a ronda noturna.

Quando ela entrou na minha enfermaria, parou junto de mim, informou-se do operado. Chegamo-nos a ele. Acordara outra vez. Agora a respiração era angustiada, estertorosa. E os seus olhos abertos, terrivelmente abertos, iam da minha face à face da irmã…

Boa irmã! Sem dizer-me uma palavra, sorriu tristemente, e, tirando do pescoço o seu pequeno crucifixo de ébano, meteu nas mãos do moribundo. Ele abriu ainda mais os olhos; teve um arranco supremo de todo o corpo na cama e ficou imóvel.

Estava morto.

*          *          *

De joelhos, a irmã rezava. E, antes que, terminada a prece, ela se levantasse para lhe cerrar as pálpebras, eu encostei os meus olhos nos olhos do morto, para neles de perto ler a sublime e inolvidável lição que me davam, o segredo do ânimo inalterável, da coragem soberana e terrível, com que esse homem sereno, - durante a operação, sofrendo dores inconcebíveis, e durante a agonia, sentindo dentro de si o despedaçamento de toda a alma, - olhava impassivelmente para a morte, desprezando as misérias e as torturas da vida.


Os adjetivos escolhidos por Bilac para qualificar a situação descrita, a cirurgia realizada e o enfermo, foram fortes, profundos: "horrível operação, suportada pelo desgraçado, foi medonho”. Nem poderia ser diferente, pois o médico cortou-lhe a pele e músculos e serrou o osso da mandíbula, sem anestesiar o paciente. Talvez faltem adjetivos para descrever apropriadamente a dor que sentiu aquele desgraçado caboclo reforçado, e que se submeteu ao procedimento proposto porque tinha fé na Medicina. Fé que a arte de Hipócrates devolvesse a dignidade de voltar a viver sem a dor diária que a cárie traiçoeira lhe havia imposto, lentamente, corroendo seu interior, até chegar ao osso e à alma. 

Seja no trecho do livro de Bulgákov seja na crônica de Bilac, no momento do intolerável tormento, a comunicação deixou de ser verbal, com frases, e foi substituída pelos olhares. Os olhos, fossem eles esbugalhados, atônitos, faiscantes, fixos, secos, sem lágrimas, abertos ou fechados, moviam-se, indecisos, entre a coragem, a fé e a morte.   

Mais de um século separa os casos descritos por Bulgákov e Bilac daquele que eu testemunho agora. Mas todos eles têm em comum pessoas em grande sofrimento por cáries avançadas, complicadas, necessitando de intervenções cirúrgicas, infelizmente realizadas sem anestesia. Em todos eles, os escritores estavam presentes, na condição de estudantes de medicina ou médicos, e conservaram na memória aqueles episódios violentos. Todos se mostraram sensíveis e abalados com o martírio que presenciaram. 

Os significativos avanços da ciência, tecnologia, medicina, odontologia e saúde pública, ocorridos nos últimos oitenta anos, desde a Segunda Guerra Mundial, deveriam ter impedido que a jovem mulher conhecesse tamanho sofrimento motivado por cáries e infecções orais, em pleno século XXI. No entanto, o que vivenciou nos últimos meses a assemelha aos personagens de Bulgákov e Bilac, como se estivesse no século XIX.

O que está, realmente, na raiz de seu sofrimento é a pobreza, a vergonhosa desigualdade social que aflige o país. O pus retirado da boca, aos poucos, graças às intermináveis cirurgias odontológicas, não consistia apenas numa colação de piócitos, pois estava carregado de injustiça social, muito mais agressiva e duradoura. 

Faltou acesso à educação, à prevenção, ao atendimento odontológico em momento oportuno e de qualidade, ao cuidado integral, ampliado, continuado. Não alcançou o vínculo com a equipe de referência da Saúde da Família. Não recebeu visita domiciliária de agente comunitário de saúde. Sua história de vida, seu familiograma, sua rede social significativa permanecem desconhecidos da equipe. Seu caso não foi objeto de um Projeto Terapêutico Singular. Sequer foi discutido numa reunião de equipe.

A principal diferença entre os contextos da atenção à Saúde no Império Russo, no Brasil de Olavo Bilac e nos dias de hoje, é que já podemos lançar mão da atenção primária como porta de entrada no sistema, como coordenadora do cuidado e oferecer seguimento longitudinal, buscando o cuidado integral da pessoa. É preciso analisar porque não funcionou a Estratégia de Saúde da Família. 

A taxa de brasileiros submetidos a várias extrações dentárias, impedidos de sorrir, seria importante indicador de saúde e da qualidade da atenção à saúde do país.

E não me venham com chorumela dizer que a culpa é da paciente!    



Referências

Bedrikow, Rubens. Reflexões e crônicas sobre a Clínica Ampliada. São Paulo: Hucitec, 2022. 123p. ISBN 978-85-8404-312-5.


Bilac, Olavo. Crônica livre. Gazeta de Notícias, 10 mar 1894. In: Dimas, Antonio. Bilac, o Jornalista: Crônicas: Volume 1. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, Editora da Unicamp, 2006. p. 64-67.


Bulgákov, Mikhail Afanasievitch. Anotações de um jovem médico e outras narrativas. Tradução: Érika Batista. São Paulo: Editora 34, 2020 (1a Edição). 216 p. ISBN 978-65-5525-027-5.


Porter, Roy. Hospitals and surgery. In: Porter, Roy (editor). The Cambridge illustrated history of medicine. Cambridge: Cambridge University Press, 1996. ISBN 0-521-44211-7. p. 202-245.