Dois mil e vinte será lembrado como o ano da Pandemia de Coronavírus (COVID-19), doença infecciosa causada por um coronavirus recentemente descoberto. Cerca de quatro meses após o primeiro caso de COVID-19 ser informado pelo governo chinês à Organização Mundial da Saúde, em dezembro de 2019, mais de 195 países apresentam casos. Os infectados ultrapassam os 350.000 e as mortes os 16.000. A letalidade da doença está acima de 3%, atingindo principalmente idosos e profissionais de saúde.(OMS, 2020)
A atual pandemia evidenciou a importância de sistemas nacionais de saúde, das pesquisas básicas, epidemiológicas, clínicas, antropológicas e sociológicas, assim como desvelou a vergonhosa desigualdade social dentro de países e entre os países, apontando para a necessidade de investimentos tanto em pesquisas como na consolidação dos sistemas nacionais de saúde, como o brasileiro - Sistema Único de Saúde.
Diante de incertezas, medos e medidas coletivas de isolamento social em massa, convém rever o que epidemias anteriores nos ensinaram.
Há pouco mais de um século, entre 1918 e 1919, a pandemia de Gripe Espanhola fez entre 20 e 40 milhões de vítimas em todos os continentes, e pode ser considerada “a mais catastrófica pandemia da história”. (Bertolli Filho, 1989, p.33) Apenas na cidade de São Paulo, foram aproximadamente 350.000 infectados (65% da população) e cerca de 5.000 mortes (1% da população) em apenas sessenta e seis dias (Damacena, 2008; Bertolli Filho, 1989). São Paulo crescia rapidamente, em razão da riqueza do café e do comércio, e também por causa do início da sua industrialização. De acordo com Bruno (1954, p.1049), “A expansão da cidade e a formação de bairros novos se acentuou particularmente nas vésperas da primeira Grande Guerra”, acompanhada do surgimento de feiras, mercado e cortiços, ambientes propícios para aglomeração de pessoas e propagação de doenças transmissíveis. O medo provocado pela doença fez com que muitos paulistanos fugissem da cidade, interiorizando, dessa forma, a epidemia. Em Campinas, por exemplo, adoeceram 7317 moradores, dos quais faleceram 209, sendo, portanto, a letalidade igual a 2,86% (Bertolli Filho, 1989).
Tendo em vista sua via de transmissão e manifestação clínica, semelhantes à do COVID-19, a Gripe Espanhola constitui-se em exemplo importante de pandemia a ser revisitada neste momento, em especial porque também desvelou fragilidades da organização social e, em especial, da atenção à saúde, e, sobretudo, porque exigiu soluções que ainda podem nos ser úteis neste início de século XXI.
A Gripe Espanhola chegou ao Brasil vinda da Europa, com passageiros do vapor inglês Demerara, que partiu de Liverpool e fez escalas em Lisboa, Recife, Salvador e Rio de Janeiro. (Bertolli Filho, 1989). Assim como ocorreu com a COVID-19, a epidemia, no país, provavelmente atingiu primeiro a elite, o que fez com que fosse, erroneamente, chamada de “democrática”, quando, na verdade, como se constatou posteriormente, atingiu muito mais a população pobre. Foi chamada de “moléstia reinante”, “urucubaca”, gripe, influenza, peste, resfriado coletivo ou constipação.(Bertolli Filho, 1989, p.32)
Tanto hoje como em 1918, coube aos médicos assumirem a responsabilidade de orientar governantes e população com respeito à nova doença, e nos dois momentos, houve divergências de opiniões entre eles. Enquanto alguns mostravam-se preocupados, outros julgavam tratar-se de “resfriado coletivo”, bem menos fatal que a moléstia que afligia a Europa”. (Bertolli Filho, 1989, p.32).
Em 1918, Artur Neiva, diretor do Serviço Sanitário, foi considerado o “supremo chefe da luta”. (Bertolli Filho, 1989, p.34) Em 2020, esse papel cabe ao ministro da saúde, Henrique Mandetta, mas também a secretários de saúde dos estados e municípios, e ainda a coordenadores de centros de contingência de coronavírus dos estados, como o Dr. David Uip, em São Paulo, e que, assim como Neiva, também se infectou durante a epidemia. (Portal G1, 2020) No estado de São Paulo, o coordenador do Centro de Contingência do Coronavírus ganhou mais visibilidade e destaque do que o próprio secretário estadual da saúde.
Neiva, assim como o presidente Bolsonaro, buscou convencer o povo que a doença não era mortal ou grave. (Bertolli Filho, 1989, p.34; Portal gov.br, 2020.) No entanto, diante dos doentes e mortos que se avolumavam, Neiva foi obrigado a recuar:
Em 28 de outubro, diante do poder devastador da peste, Neiva expediu um comunicado que tratava da falta de confiabilidade dos dados oficiais sobre o número de enfermos e mortos pela influenza. Anunciava também a virtual incapacidade do serviço em defender os paulistanos do mal que os ameaçava. A despeito do ar arrogante que o celebrizou, no dia seguinte o próprio Artur Neiva veio pedir humildemente a todas as pessoas e instituições capacitadas que socorressem a cidade[…]O pedido oficial de ajuda encontrou resposta pronta e generosa entre os paulistanos ainda não atingidos. Famílias da elite econômica do estado doaram grandes somas; o anônimo e pobre cidadão não ficou atrás e pôs, à disposição de quem precisasse, suas parcas economias e mais tudo o que tinha: roupas, alimentos, colchões, panelas, urinóis, bíblias, limões”. (Bertolli Filho, 1989, p.35)
A participação de Neiva e do presidente Bolsonaro nos revela uma série de aspectos importantes relacionados ao papel do gestor público no combate à epidemias avassaladoras. Em primeiro lugar, que a sociedade apostava e aposta no saber científico, representado por médicos e pesquisadores, para obter sucesso no controle do flagelo. Por esse motivo, são eles a ocupar os mais altos cargos públicos da área da saúde pública. Contudo, é durante essas epidemias que os limites da ciência e da saúde pública tornam-se mais visíveis, principalmente às elites e classe média, haja vista que já é de conhecimento dos menos favorecidos. Esses episódios mostram que certezas podem, rapidamente, se transformar em dúvidas e erros, e que medidas tomadas pelos governos de plantão não ficam imunes aos interesses econômicos e políticos, nem mesmo em tempos de epidemia. Isso fica evidente quando o presidente da República, em pronunciamento à nação, utiliza os termos histeria e pânico e recomenda a reabertura de escolas e comércio, quando a recomendação dos especialistas nacionais e internacionais vai no sentido contrário, de isolar as pessoas em suas casas a fim de evitar a transmissão. O aparecimento diante das câmeras de governantes e secretários de saúde ou especialistas, lado a lado, diz, por si só, dessa proximidade entre ciência e política.
Outro aspecto a ser extraído do episódio envolvendo Neiva diante da epidemia de influenza diz respeito à participação solidária daqueles que detêm a fatia maior da riqueza nacional. Assim como naquele momento a elite econômica doou grandes somas, agora também o combate à epidemia não pode prescindir dessa contribuição, seja ela voluntária ou compulsória, corrigindo, ao menos neste momento, a enorme desigualdade social do país. Assim como fez Neiva, poderia nosso atual ministro e outros membros do executivo incitar aquele 1% dos brasileiros que detém cerca de 50% da riqueza nacional a se fazer presente do ponto de vista econômico. Nesse sentido aponta a pesquisa realizada pela Oxfan Brasil em 2019, que revela que "84% concordam que é obrigação dos governos diminuir a diferença entre muito ricos e muito pobres” e que "77% concordam com o aumento dos impostos de pessoas muito ricas para financiar políticas sociais”. (Oxfan Brasil, 2020) Os muito ricos têm condições de construir hospitais em tempo hábil e montar fábricas capazes de produzir equipamentos de proteção individual em número suficiente para trabalhadores da área da saúde que, necessariamente, prestarão cuidados aos enfermos.
No que se refere à iniquidade, via de regra, em praticamente todas as epidemias, são os mais pobres que adoecem em maior número, têm menos acesso a tratamentos e apresentam taxa de mortalidade mais elevada. Estudos mostrarão se o acesso a unidades de terapia intensiva foi democrático, igualitário, entre as diferentes classes sociais durante a epidemia de COVID-19.
A iniquidade também foi constatada na epidemia de meningite que assolou São Paulo na década de 1970 e que foi colocada sob censura pelo governo militar. De acordo com Barata (1988, p.35), o coeficiente de incidência da doença meningocócica, em 1974, foi muito mais elevado (192,67/100.000 habitantes) nas áreas mais pobres, representadas pelos distritos e subdistritos da periferia, do que na área central da cidade de São Paulo (103,71/100.000 habitantes). Esses achados não são novidade, pelo menos não desde o estudo de Louis-René Villermé que mostrou a associação entre taxas de mortalidade mais elevadas e pobreza. Essa informação, ainda que já bem conhecida, convém ser considerada no momento em que a doença chega às favelas das preferias das grandes metrópoles brasileiras. Importante frisar que a estagnação da economia, o aumento do desemprego e da pobreza fazem com que, para grande parte da população, residir em ocupações ou favelas seja uma das poucas alternativas possíveis. Como resultado tem-se que o número de aglomerados subnormais e da população favelada nas grandes cidades brasileiras aumenta a taxas maiores que a população total. Outro aspecto relevante é a elevada densidade demográfica em tais aglomerados, bem acima da média dos municípios como um todo. (Pasternak e D'ottaviano, 2016). É coerente, portanto, supor que essa população residente em favelas e ocupações encontre maiores dificuldades para permanecer em isolamento social, obter alimentos e outros gêneros de primeira necessidade - haja vista que muitos são trabalhadores informais que estarão impossibilitados de trabalhar -, e ter acesso a ações e serviços de saúde. Mais do que nunca, essa população precisa de atenção singularizada, com apoio financeiro e unidades de atendimento especializada em COVID-19 descentralizadas.
Dentre os remédios que Bertolli Filho (1989, p.33) menciona no seu minucioso estudo sobre a Gripe Espanhola em São Paulo, encontra-se o "Maleitosan, vendido por quatro décadas como remédio específico para malária”, a base de Resorcinol-Quinina, e que se mostrou ineficaz no tratamento da influenza. A única medida que realmente teve algum impacto foi o isolamento social. As pessoas que podiam ficaram em suas casas, hábitos de moradia e alimentação mudaram, como o aumento da ingesta de limão, as compras passaram, em alguns casos a serem entregues em domicílio.
Passados mais de cem anos, o mundo científico quer novamente acreditar em um medicamento antimalárico, mas que também é usado no tratamento de lúpus e artrite, para o controle de uma epidemia de gripe.
Considerações finais
O conhecimento adquirido a partir do estudo de epidemias anteriores, em especial da pandemia de Gripe Espanhola, que assolou o país entre 1918 e 1919, pode nos alertar para os seguintes pontos, importantes no controle da epidemia de COVID-19:
- Tende a existir disputas de saberes e poder durante uma epidemia tão avassaladora;
- A sociedade aposta e confia, pelo menos no início da epidemia, que a ciência será suficiente para orientar corretamente as medidas a serem tomadas. Isso coloca médicos, e pesquisadores em evidência;
- "Certezas" iniciais podem dar lugar a incertezas se as medidas não surtem o efeito esperado;
- As medidas tomadas pelos governantes não são sempre apenas cientificamente embasadas, mas costumam estar contaminadas por interesses econômicos e políticos da elite que detém o poder no país;
- No início, os governantes tendem a minimizar a gravidade da epidemia, com o risco de retardar a adoção de medidas urgentes;
- Uma epidemia da monta da epidemia de COVID-19 traz à tona a necessidade de um sistema nacional de saúde adequadamente financiado, universal, gratuito, integral e equânime, menos suscetível ao humor do mercado e de interesses econômicos e políticos;
- Não se pode colocar as cartas na promessa de um medicamento ainda sem evidência científica. É mais importante, neste momento, usar as duas únicas armas existentes: isolamento social e hospitais ou outras unidades adequadamente equipados para tratamento de pacientes com manifestação clínica grave da doença;
- Não se combate adequadamente uma epidemia sem investimento em pesquisa básica, clínica, epidemiológica, sociológica, antropológica e histórica;
- A epidemia não é democrática, pois atinge mais os pobres, seja em número de adoecidos , seja no acesso a ações e serviços de saúde e na mortalidade. Uma epidemia como a da Gripe Espanhola ou de COVID-19 desvela à sociedade a enorme desigualdade social do país;
- O controle da epidemia depende de recursos financeiros que estão na mão de poucos brasileiros muito ricos.
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