domingo, 5 de abril de 2020

A epidemia de perda de memória

A perda de memória tornou-se problema de saúde pública no século XXI. Há mais de 50 anos, Gabriel García Márquez dedicou páginas a uma epidemia de insônia e perda de memória, em Cem Anos de Solidão1:
"No domingo, de fato, Rebeca chegou. Ela não tinha mais de onze anos de idade". (p.59)
"Uma noite, por volta da época em que Rebecca foi curada do vício de comer terra e foi levada a dormir no quarto das outras crianças, a índia que dormia com elas acordou por acaso e ouviu um estranho barulho intermitente no canto. Ela sentou-se em alarme, acreditando que um animal tinha entrado na sala, e depois viu Rebecca na cadeira de balanço, chupando o polegar e os olhos dela iluminados como os de um gato no escuro. Surpresos de terror, perturbados pela inevitabilidade do seu destino, Visitación reconheceu nesses olhos os sintomas da doença, cuja ameaça a tinha forçado a ela e ao seu irmão a banirem-se para sempre de um reino milenar em que eram príncipes. Era a praga da insônia. ...] Mas a índia explicou-lhes que o mais assustador da doença da insônia não era a impossibilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço, mas a sua inexorável evolução para uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Ela quis dizer que quando o doente se habituava ao seu estado de vigília, as memórias da infância começavam a ser apagadas da sua memória, depois o nome e a noção das coisas e, finalmente, a identidade das pessoas e até mesmo a consciência do seu próprio ser, até que se afundava numa espécie de idiotice sem passado"(p.63)
"Quando José Arcadio Buendía percebeu que a praga tinha invadido a cidade, reuniu os chefes de família para lhes explicar o que sabia sobre a doença da insônia e foram acordadas medidas para evitar que o flagelo se propagasse a outras cidades do pântano. Assim, das cabras foram retirados os sinos que os árabes trocavam por araras, e foram colocadas à entrada da aldeia, à disposição daqueles que ignoravam os conselhos e os apelos das sentinelas e insistiam em visitar a população. Todos os estranhos que nessa altura andavam pelas ruas de Macondo tinham de tocar o seu pequeno sino para que os doentes soubessem que eram saudáveis. Não lhes foi permitido comer ou beber nada durante a sua estadia, pois não havia dúvida de que a doença só era transmitida pela boca, e todas as coisas para comer e beber estavam contaminadas com insônia. Desta forma, a peste foi mantida confinada ao perímetro da população. Tão eficaz foi a quarentena que chegou o dia em que a situação de emergência foi tomada como natural, e a vida foi organizada de modo a que o trabalho recuperasse o seu ritmo e ninguém mais tivesse de se preocupar com o hábito inútil de dormir.
Foi Aureliano quem concebeu a fórmula que os deveria defender durante vários meses das evasões da memória. Ele descobriu-a por acaso. Perito em insônia, tendo sido um dos primeiros, tinha aprendido a arte da prataria até à perfeição. Um dia estava à procura da pequena bigorna que usava para laminar os metais, e não se lembrava do seu nome. O seu pai disse-lhe: <<tas>>. Aureliano escreveu o nome num papel que colou na base da pequena bigorna: tas. Dessa forma, não o esqueceria no futuro. Não lhe ocorreu que esta fosse a primeira manifestação de esquecimento, porque o objeto tinha um nome difícil de lembrar. Mas alguns dias depois descobriu que tinha dificuldade em se lembrar de quase tudo no laboratório. Por isso, marcou-os com o respectivo nome, para que lhe bastasse ler a inscrição para os identificar. Quando o seu pai comunicou o seu alarme por ter esquecido até os fatos mais impressionantes da sua infância, Aureliano explicou-lhe o seu método e José Arcadio Buendía pô-lo em prática em toda a casa e, mais tarde, impô-lo a toda a gente. Com um hissopo tintado ele marcou cada coisa com um nome: mesa, cadeira, relógio, porta, parede, cama, frigideira. Foi ao curral e marcou os animais e as plantas: vaca, cabra, porco, galinha, mandioca, malanga, guinéu. Pouco a pouco, estudando as infinitas possibilidades do esquecimento, percebeu que um dia poderia chegar em que as coisas seriam reconhecidas pelas suas inscrições, mas a sua utilidade não seria lembrada. Por isso, foi mais explícito. O sinal pendurado no pescoço da vaca foi um exemplo da forma como os habitantes de Macondo estavam preparados para lutar contra o esquecimento: esta é a vaca, deve ser ordenhada todas as manhãs para produzir leite e o leite deve ser fervido para misturar com o café e fazer café com leite" (p.66-67) 
Nesse trecho de sua obra, García Marquez nos apresenta de forma fantasiosa dois temas muito reais e de suma importância para a sociedade deste primeiro quarto do século XXI: o aumento de pessoas com comprometimento da memória e o enfrentamento de epidemias por parte de coletividades.
O desejável e louvável aumento da sobrevida das pessoas onde houve melhora das condições de vida e do acesso a ações e novos recursos de saúde carrega consigo o desafio de enfrentar condições prevalentes em idosos, sobretudo entre os muito idosos. Entre estas, a perda de memória, frequentemente associada à doença de Alzheimer, ocupa posição de destaque e exige preparo, dedicação, paciência e resiliência emocional de familiares e cuidadores profissionais. Assim como descrito no texto do escritor colombiano a perda de memória é processo progressivo e não instantâneo. Começa-se perdendo apenas um tipo de memória e o indivíduo tem consciência disso, o que lhe permite lançar mão de estratégias tais como escrever nomes e explicações que podem ser consultados. Alterações do sono também são frequentes nesses pacientes acometidos por perda de memória e isso também foi lembrado pelo escritor. Em fases muito iniciais a insônia pode ser até vantajosa, pois aumenta a produtividade e não traz maiores prejuízos. 
Essa passagem de "Cem anos de solidão” nos deixa curiosos sobre o que teria inspirado García Marques a escrever sobre uma epidemia de perda de memória. Teria ele convivido com algum familiar ou conhecido acometido por alguma síndrome demencial?
No que se refere à epidemia, García Marques escreve sobre medidas para prevenir o contágio de outras pessoas ou comunidades, sobre isolamento social e quarentena, e sobre mudanças no cotidiano a partir de epidemias. Os mesmos temas que invadem diariamente nossas redes sociais e mídias em tempos de pandemia por COVID-19. Ele menciona sentinelas, pessoas que desobedeciam recomendações e insistiam em manter contato com adoecidos, teoria sobre o mecanismo de contágio (por boca, por alimentos e bebidas contaminados) e o sucesso da quarentena, mantendo a peste restrita ao perímetro da cidade. 
Em 2020, o novo Coronavírus alastrou-se rapidamente pelos cinco continentes e exigiu medidas semelhantes àquelas descritas em Cem anos de solidão, e os comportamentos humanos não foram diferentes, principalmente no que se refere à determinação de isolamento dos enfermos, quarentena de cidades e desobediência de algumas pessoas.
Uma epidemia não se limita à ciência e medicina, mas diz respeito à vários aspectos da vida das pessoas, inclusive à literatura.    

1) Marquez GG. Cem anos de solidão. Havana: Ediciones Huracán, 1979.

Rubens Bedrikow

Campinas, 5 de março de 2020.

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