segunda-feira, 20 de abril de 2020

Tuberculose tostão

Eu não apanhei a gripe de18. Mamãe me mandou para São José dos Campos. Eu fugi da gripe. Fiquei sozinho num hospital de tuberculosos, o Instituto São Geraldo, que era do Jaime Ferreira, casado com minha prima. Até a empregada caiu de gripe; aprendi a fazer de tudo, até cozinhar.
A tuberculose não pega, tanto que comecei a namorar com uma tuberculosa, dava cada beijo nela e não peguei nada. Ela tinha sido casada com Fosco Candini, que era um cantor de operetas. E uma moça que sabia que ia morrer, me disse: “Seu Abelzinho, eu sou tuberculosa, ninguém gosta de mim, mas eu gostaria de que alguém me desse um beijo”. “Então, venha cá.” E lhe dei um beijo de desentupir pia. Eu tinha quinze anos nesse tempo.
O Huygnens, que era um dos hóspedes, descobriu-se que não era tuberculoso, ele estava lá era fugido; tinha dado um desfalque no Banco Noroeste.
A comida que eu comia lá era a mesma dos tuberculosos do sanatório, e nunca pegou. Os parentes proibiam que se desse dinheiro para as moças tuberculosas, porque elas compravam bebida com esse dinheiro. Um dia, no quarto de uma moça, debaixo da cama, achei uma garrafa de álcool. Ela, com o pretexto de tomar banho de álcool (os tuberculosos naquele tempo não tomavam banho comum, de água), guardava debaixo da cama aquele garrafão e bebia o álcool! De tão desesperadas, elas bebiam mesmo. E acabavam morrendo. E lembro agora uma história de família.
De Campos do Jordão eu tenho uma lembrança nítida. Quando eu tinha oito anos, fui passar uns tempos lá com minha prima, a Nadir Galvão Bueno. Foi então que chegou a Campos um jovem alto, grande, cabelos bastos negros, o homem mais bonito que eu conheci, uma dentadura perfeita, uma beleza sem defeito. Mas subiu de maca, veio para morrer. Era filho do armador Mateus Ferreira, do Rio de Janeiro. Subiu para morrer. No fim de uma semana, quem tratava dele já não era a enfermeira, era essa minha prima. E ela acabou casando com ele. Todo mundo achou que era loucura casar com um homem que estava para morrer. Pois olhe, o sr. Jaime Ferreira não morreu, ficou dois ou três meses em Campos do Jordão, desceram ele e a mulher pra São José dos Campos e montaram lá o Instituto São Geraldo, a primeira pensão de tuberculosos. São Geraldo é o protetor dos tuberculosos. Tiveram um filho que até os cinco anos era uma beleza de menino, mas aos seis anos teve um ataque epiléptico. Quando ele começava a gaguejar, pê… pê… pá… pá… pá…, a gente mandava ele correr pra casa porque era certo que vinha o ataque epiléptico. E não há remédio para este mal. Só esperar aquele estrebucho e deixa passar, depois ele se sentia feliz e descansado.
O tuberculoso pode fazer tudo, menos vir para São Paulo. Esse meu parente era tuberculoso dos dois pulmões, fez uma toracoplastia, cortou as costas e pôs duas bolinhas de pingue-pongue no lugar das cavernas. Mais tarde veio para São Paulo magro, torto e morreu. Deu um tiro no ouvido, não aguentava mais viver.
Os tuberculosos tinham características interessantes. Uma delas era usar uma escarradeira pequenina de bolso, azulzinha, um negócio horroroso. Eles faziam hé… hé… hé… cuspiam lá dentro e depois guardavam no bolso. Mas depois descobriu-se que não era necessário usar as escarradeiras fora do sanatório, só dentro, porque ao ar livre os raios ultravioleta em quinze minutos eliminam o bacilo, isso por causa da situação de São José dos Campos. Não é a altura, pouco mais que a de São Paulo, é a situação da cidade. São Paulo tem 670 e São José 674 metros de altura, mas tem raios ultravioleta. Por isso deixou de existir lá a peste branca.
A tuberculose é curável: é só comer bastante, fazer repouso e tomar cuidado com o sol. A característica tuberculoso, naquele tempo, era andar sempre de guarda-chuva, não por causa da chuva, mas para não tomar sol. O sol pode fazer aumentar a infecção e aí aparece a "vermelhinha". Eles brincavam um com os outros: "Eu estou ficando rico, tinha só um tostão e já estou agora com duzentão. Mas ainda chego lá, no quatrocentão. ‘E a vermelhinha?’ Bom, a vermelhinha eu já estou com ela”. O tostão, o duzentão, eram o tamanho das cavernas que eles tinham no pulmão. E a vermelhinha era a febre acompanhada de sangue quando eles cuspiam.
No sanatório, quando um doente passava mal acendia uma luzinha vermelha. Meu primo pedia: “Você não quer atender para mim”. Deixava toda a aparelhagem ali: algodão, gelo e emetina Bruneau. Tocava e lá ia eu atender a moça. Quanta moça bonita! "Moça, o que houve?” Era aquela sangueira no chão. Era uma hemoptise violenta. Então eu sapecava a emetina Bruneau, gelo na boca e ficava esperando. Muitas se salvaram. Outras, no dia seguinte, morreram. 


(Bosi, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças dos velhos. 15. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Sr. Abel. p. 190-192)

Nenhum comentário:

Postar um comentário