As manhãs de outono costumam ser bonitas, mesmo durante a triste pandemia. Céu muito azul, sem nuvens e temperatura agradável. Estávamos na ocupação, onde todas as casas são de madeira e as ruas estreitas e tortuosas. O sr. Valdimiro nos aguardava sentado numa cadeira, olhando para a sua casa. Outras duas cadeiras estavam destinadas a mim e a aluna do 4˚ ano de medicina. “Consultório" ao ar livre, sombreado e silencioso. Condições ideias para ouvir sua história de vida e de suas doenças.
Aquele homem pálido, emagrecido, com pouca massa muscular perdera completamente a visão há cerca de 5 meses. Custei a acreditar no que li na carteira de identidade: aquele “idoso" era cinco anos mais novo que eu!
A catarata atingira os dois olhos. A perda de transparência do cristalino deixava claro a falência do sistema de saúde no controle do diabetes e no tratamento da doença ocular comum entre pessoas portadoras dessa doença e/ou tabagistas, como o sr. Valdimiro. Dedicava-se com afinco ao próprio tratamento, proibindo-se a si mesmo a ingesta de açucar e tomando os três tipos de remédios receitados pelos doutores. No entanto, não estava nada bem. O apetite estava péssimo e o peso diminuía à medida que os músculos murchavam. O aparelho digestivo não colaborava: ora vômito ora diarreia ora a barriga distendida. Com muito esforço fazia meia refeição ao dia. A glicemia capilar, aferida pelo aparelho que guarda em casa e que lê a gota de sangue que obtém furando o dedo diariamente, insiste em permanecer elevada.
Um pouco de paciência para ler com ele as bulas dos remédios e tivemos a certeza que a diminuição do apetite, a perda de peso e os sintomas gastrintestinais poderiam ser reações adversas aos remédios. Mais uma vítima da iatrogenia.
A cirurgia ocular já havia sido suspensa uma vez, pois o oftalmologista não opera se o diabetes estiver fora de controle. Como isto não aconteceu a visão sumiu. E com ela a alegria de viver. “Doutor, não dá pra internar uns dois ou três dias, compensar o diabetes e operar?”.
A cegueira fôra atribuída ao diabetes e ao tabagismo. Mas aparentemente era fruto também da desigualdade social, iniquidade, pobreza, protocolos biomédicos e falha do cuidado em rede.
Enquanto eu escrevia o caso, já em casa, para posteriormente compartilhar com a equipe de saúde, assistia a um documentário na televisão. Em um aquário norteamericano, uma equipe de veterinários dedicava-se a preparar um pinguim chamado Charlie para a cirurgia de catarata. Impossível não se questionar sobre os valores presentes na nossa sociedade ocidental. Nestas primeiras décadas do século XXI, aquele pinguim tinha mais chance de chegar à cirurgia de catarata do que aquele simpático, educado e resignado cidadão pernambucano. Um misto de tristeza, revolta e inconformismo invadiu-me. No entanto, foi a cirurgia de uma piranha residente no mesmo aquário que me impeliu a escrever esta crônica.
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