sexta-feira, 10 de abril de 2020

Carta de idoso

Campinas, 10 de abril de 2020.

Sr. Jair Messias Bolsonaro
Presidente do Brasil

Prezado Sr. Jair,
Sou idosa e quero continuar vivendo. Nasci em Lucca, cidade italiana da região da Toscana, no ano de 1926. Provavelmente, o senhor, que é rico, a conhece. Eu, nunca mais voltei à Italia e guardo apenas vaga lembrança da Chiesa di San Michele in Foro. Foi o último lugar que estivemos antes de emigrare in Brasile. Meu pai fez questão de reunir a família para rezar diante da Madonna con Bambino.  A travessia do Atlântico foi sofrida. Não tivemos sorte, pois fomos atingidos por tempestades violentas e tivemos medo de que o vapor afundasse. Os passageiros passavam mal e muitos vomitavam. Como dormíamos em beliches muito próximos uns dos outros, os roncos e vômitos não respeitavam fronteiras e, amiúde, alcançavam os colchões vizinhos. Quando a maré sossegava, as mulheres corriam lavar a terceira classe. A viagem demorou cerca de um mês, com escalas em Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Finalmente chegamos em Santos. Havia ainda o trem, também apinhado de gente. Na Hospedaria, em São Paulo, tomamos banho, almoçamos e nossos pertences foram desinfectados. Nessa ocasião, São Paulo contava com pouco mais de um milhão de habitantes. Mas não nos demoramos por lá, pois meu pai conseguiu trabalho numa fazenda na região de Campinas, bem menor, com pouco menos de cento e cinquenta mil almas. O primeiro lugar que meu pai nos levou foi à Chiesa Nostra Signora della Concezione. Fomos agradecer e rezar. Estávamos magros, mas unidos e cheios de esperança. Nunca deixei de agradecer, mas, anos depois, passei a frequentar a Basílica do Carmo, pois o som do Organo a canne me deixa mais perto de Deus. Agora, mais perto do fim da vida, fico muito emocionada quando a missa é acompanhada pela música do órgão Tamburini e as vozes do coral. Não consigo impedir que lágrimas escorram. Mas são de emoção e não de tristeza. Escorrem porque sinto que Deus está na música que penetra minha alma.
Escolhi ser professora. O brilho nos olhos das crianças que ouviam as histórias que eu lia e que descobriam a beleza da literatura infantil, das poesias, dos mistérios da natureza, desvendados pela ciência, era meu maior pagamento. Só quem teve o privilégio de ser educador sabe do que estou falando. Acompanhei os jovens trocarem as calças curtas por calças longas, se apaixonarem e sofrerem por amor. Eu estava lá para ouvi-los. Alguns chegavam magros, com fome. Olhos tristes. Com certeza a situação estava difícil em casa. Eu me esforçava para não deixar as lágrimas sairem; estas, sim, de tristeza. Só vazavam em casa, quando eu me fechava no quarto à noite e rememorava o dia. Era um misto de tristeza e revolta com a desigualdade deste lindo país que me acolheu quando eu também aqui cheguei criança. Às vezes, eu comprava pão para elas, escondido do diretor da escola e de meu marido.
Muitas dessas crianças têm hoje, senhor presidente, a sua idade. Algumas ficaram ricas como o senhor e mandam no país. As mesmas crianças de ontem, que fizeram lágrimas escorrer no meu rosto, tanto de emoção como de tristeza, parecem não se importar com os velhos. Deixei de assistir televisão, tamanha minha tristeza diante das falas relativas à epidemia. “A doença não é tão grave! A maioria das pessoas que vai morrer são idosos!”
Peço desculpas, senhor presidente, mas não posso continuar esta carta. Minhas mãos tremem. Mas gostaria de fazer-lhe um pedido final. Nos dê a chance de viver. Não quero morrer agora, pois ainda posso ensinar muito a vocês. 
Rogo ao médico que cuidar de mim durante minha passagem que,  se eu morrer infectada pelo Coronavírus, sem acesso a terapia intensiva e respiradores, coloque no meu atestado de óbito que a causa mortis foi desigualdade social e desvalorização do idoso. Por favor, não reduza minha morte à COVID-19.  

Respeitosamente,


Maria di Lucca

Nenhum comentário:

Postar um comentário