domingo, 29 de outubro de 2023

A conversa das árvores na Cachoeira Comprida

 - Ei você aí no alto…

- Quem? Eu?

É você mesmo. Qual é seu nome mesmo?

- Na minha certidão de nascimento está escrito Schizolobium parahyba, mas, como ninguém sabe falar, ganhei o apelido de Guapuruvu. Não sei porque nos registram com nomes tão difíceis. Devia ser proibido isso. Sofri até bullying. Primeiro por causa do nome. Era Esquizo pra cá, Esquizo pra lá. "Você já foi ao seu psiquiatra?” Ou ainda “Volta pra Paraíba”. Meu irmãozinho não sabia falar meu nome e dizia algo incompreensível, com o som parecido com guapuruvu. O jeito dele falar pegou e hoje todo mundo me chama pelo apelido. Mais tarde, na adolescência, a causa do bullying passou a ser o fato de eu ser magro e comprido. “Não precisa de escada não pra trocar a lâmpada; chama o Guapuruvu”. Se você está me chamando para fazer gozação comigo, pode ir embora porque não quero conversa com você.

  - Calma. Não é nada disso. Não vou fazer gozação com seu nome, não. É que você é mais alta que eu e queria lhe pedir um favor. Estou percebendo que está super movimentado na casa do Rodolfo e da Regina hoje. Você sabe como sou curiosa, mas não consigo enxergar daqui. Será que você poderia olhar lá e me contar o que está acontecendo?

- Com prazer. Vou olhar e te conto sim. Para isso servem os vizinhos; para colaborar. Além do mais, tudo que acontece com aquele casal nos interessa porque é graças a eles que estamos aqui, fortes e felizes.  

- Verdade. Mas não esqueça da menina Júlia também, a filha deles.

- Impossível esquecer dela. Ainda aparecendo menos por aqui, todas nós temos muito carinho por ela e muitas lembranças, principalmente da infância que passamos aqui na Cachoeira Comprida.

- Então me conta o que você consegue avistar.

- OK. Hoje, tem muita gente jovem na casa. Parecem animados. Comeram pão, bolo, abacate, mamão. Beberam leite de castanha com linhaça, café, chá. Agora estão sentados em roda e cada um está falando um pouco. 

- Tenta ouvir o que estão dizendo.

- Estão falando o nome, o que fazem e que árvore gostariam de ser. Uma mulher com camiseta vermelha falou jaboticaba. É a irmã do Rodolfo. Uma outra disse mangueira. E outra falou abacateiro. Começaram a cantar a música do Gil. Eita turma animada. [Eu começo a chorar]

- Porque você está chorando? Aconteceu alguma coisa que te deixou triste?

- É porque uma jovem com um sorriso muito bonito falou meu nome. Ela queria ser eu. Ela não imagina como sou sensível e o presente que me deu ao falar meu nome positivamente e não para fazer bullying. Se eu pudesse ia dar um abraço nela. 

- Porque você não manda uma folha até ela, de presente?

- Boa ideia. Vou fazer isso. Vou rezar pro vento levar bem pertinho dela. Quem sabe até pousa nela.

- Conta mais. Conta mais.

- Peraí. A Regina pegou aquela foto antiga daqui. De antes da gente nascer. Parece que era muito triste por aqui antigamente. Olhando a foto, fico até emocionada. Se eu pudesse abraçar o Rodolfo, a Regina e a Júlia, não soltaria mais. Ia encharcar eles com minhas lágrimas de reconhecimento. Desculpa. Eu choro com facilidade. Você sabe que sou uma manteiga derretida. Ei, o que está acontecendo? Você também está chorando?

- Sim. De alegria. Não estou enxergando nada, mas só de ouvir você narrar eu já me emocionei. 

- Agora o Rodolfo levantou e começou a explicar como será a atividade do dia do outro lado da estrada. Entendi tudo. Essa turma toda vai ajudar a plantar uma agrofloresta. Em três metros haverá banana, café, goiaba ou cítrico, eucalipto, sementes de urucum, e outras plantas ou sementes, mas não consegui ouvir direito porque passou aquele tucano simpático fazendo barulho. Um jovem já está calçando a bota. A meia tem marca de terra. Ele já deve ter trabalhado em agrofloresta.

- Nossa! Pelo jeito vai ser muito legal mesmo.

- Agora que me dei conta. Até o seu Israel e dona Rute estão lá. Eu gosto tanto deles. Vivo observando seu Israel trabalhar. Ninguém diz que ele já tem setenta e nove anos. E que charme, ele fumando aquele cigarro feito com palha de milho.

- Hoje, vou dormir tranquila depois de ouvir tanta coisa bonita que você falou. Acho que vou eliminar ainda mais oxigênio.

- Eu também, pois nunca imaginei que um dia eu ia ver tanta gente reunida preocupada conosco e com nosso futuro. Rodolfo, Regina e Júlia nos colocaram lado a lado para que, de forma solidária e colaborativa, pudéssemos interagir e crescer mais fortes. Agora, reuniram uma galera de jovens, engajada na mesma direção. Dá até para voltar a ter esperança.  

- Hoje está sendo um dia muito especial. Eu diria até histórico.

- Concordo com você. Felizmente, o Rafael está documentando isso. Levantaram a estão cruzando a estrada, empurrando carrinho de mão, carregando mudas, sementes, água. Não vou conseguir acompanhar. Daqui pra frente, vamos usar a imaginação. 


Rubens Bedrikow

Piracicaba, Cachoeira Comprida, 29 de outubro de 2023.




terça-feira, 21 de março de 2023

Favela querida

 Jovem, morena, provavelmente com ascendência africana e indígena pernambucana, mas não certa disso, pois como muitas negras ou cafuzas, não tem acesso a documentos que esclareçam suas raízes mais profundas. O sorriso bonito e costumeiro esconde o fardo de ser mãe órfã, dedicada, sozinha, dependente de auxílio do Estado. O filho de doze anos frequenta a escola de sete e meia às quatro e meia. O menor precisa chegar na creche até às sete, mas fica lá somente durante a manhã. Impossível trabalhar de carteira assinada. Faz bicos. A desaparição da favela coincidia com a dispersão da vizinhança, das amigas e o sumiço das prosas, das festas, dos encontros, das confusões, das cervejas em roda. As crianças já sentiam falta dos amigos para jogar bola, brincar de pega-pega e esconde-esconde à noite, da turma da Unicamp para desenhar e brincar aos sábados. O desespero foi aumentando e não encontrava algum ombro amigo naquele semideserto urbano. Não hesitou ao afirmar que preferia a favela porque lá tinha certeza de conseguir criar os filhos. “No bairro novo, vai ficar mais cara a água, a luz, a construção da casa. Será que vou dar conta disso? Muitas famílias não vão voltar. Nunca mais será como antes”.

Barraco querido

 A favela desaparecendo aos poucos, para dar lugar, em breve, a um bairro novo, planejado, com casas de alvenaria, arruamento, água encanada, energia elétrica e esgotamento sanitário. A maioria dos barracos desabitados, parcialmente derrubados. Poucas famílias ainda estavam morando ali, mas por pouco tempo, pois o prazo para desocupar estava próximo. Quase uma favela fantasma. Avistei a jovem conversando com uma amiga ou parente, atenta a seu bebê no carrinho. Me contou que ia se mudar no dia seguinte, mas que voltaria para construir a casa de alvenaria. Motivo de alegria. Olhou para seu barraco, onde residiu por cerca de sete anos, desde o primeiro dia da ocupação e, com os olhos ligeiramente lacrimejados me disse: “moro ali. Meu barraco faz parte de minha história. Vou sentir falta dele”.

Saudoso barraco

 Sem escolha de não lembrar, peço licença de contar que estava ao meu lado aquele homem grande, negro, saudável, olhando aquele trator seu barraco derrubar. Ou melhor, o que restava dele, depois do incêndio que dois dias antes consumira seu lar e de centenas de vizinhos. De repente, ele disse: "aquela porta eu coloquei há uma semana". Não houve valentia capaz de deter as poucas, porém teimosas lágrimas que escorreram, acompanhando a porta que desabava. Eram poucas porque as restantes ficaram bloqueadas pra dentro, às custas de muita firmeza interior, que ele assim justificou: “não quero que minhas filhas me vejam chorar agora”. Tem lágrimas que escorrem pra dentro e não se tornam públicas. São só da pessoa. Mas doem também. Como não relembrar Adoniram, que ao lado de Mato Grosso e Joca foram pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que sentia. Cada táuba que caia, doía no coração. A maior parte do tempo, não conversamos, apenas olhamos pra frente. Olhares paralelos, mais adequados para apaziguar ou driblar a tristeza, o sofrimento que clamava por transbordamento. Mas nos comunicamos assim mesmo, o tempo todo. Saudoso barraco, barraco querido, onde ele passou dias felizes de sua vida. O incêndio mostrou-se implacável e não poupou as lembranças, a antiga fotografia dos pais, as bonecas da filhas, as roupas preferidas, as camas, a história. Eu ali, ao seu lado, numa experiência inédita, longe dos “muros" do campus, exercendo minha arte.