Sem escolha de não lembrar, peço licença de contar que estava ao meu lado aquele homem grande, negro, saudável, olhando aquele trator seu barraco derrubar. Ou melhor, o que restava dele, depois do incêndio que dois dias antes consumira seu lar e de centenas de vizinhos. De repente, ele disse: "aquela porta eu coloquei há uma semana". Não houve valentia capaz de deter as poucas, porém teimosas lágrimas que escorreram, acompanhando a porta que desabava. Eram poucas porque as restantes ficaram bloqueadas pra dentro, às custas de muita firmeza interior, que ele assim justificou: “não quero que minhas filhas me vejam chorar agora”. Tem lágrimas que escorrem pra dentro e não se tornam públicas. São só da pessoa. Mas doem também. Como não relembrar Adoniram, que ao lado de Mato Grosso e Joca foram pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que sentia. Cada táuba que caia, doía no coração. A maior parte do tempo, não conversamos, apenas olhamos pra frente. Olhares paralelos, mais adequados para apaziguar ou driblar a tristeza, o sofrimento que clamava por transbordamento. Mas nos comunicamos assim mesmo, o tempo todo. Saudoso barraco, barraco querido, onde ele passou dias felizes de sua vida. O incêndio mostrou-se implacável e não poupou as lembranças, a antiga fotografia dos pais, as bonecas da filhas, as roupas preferidas, as camas, a história. Eu ali, ao seu lado, numa experiência inédita, longe dos “muros" do campus, exercendo minha arte.
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