terça-feira, 21 de março de 2023

Saudoso barraco

 Sem escolha de não lembrar, peço licença de contar que estava ao meu lado aquele homem grande, negro, saudável, olhando aquele trator seu barraco derrubar. Ou melhor, o que restava dele, depois do incêndio que dois dias antes consumira seu lar e de centenas de vizinhos. De repente, ele disse: "aquela porta eu coloquei há uma semana". Não houve valentia capaz de deter as poucas, porém teimosas lágrimas que escorreram, acompanhando a porta que desabava. Eram poucas porque as restantes ficaram bloqueadas pra dentro, às custas de muita firmeza interior, que ele assim justificou: “não quero que minhas filhas me vejam chorar agora”. Tem lágrimas que escorrem pra dentro e não se tornam públicas. São só da pessoa. Mas doem também. Como não relembrar Adoniram, que ao lado de Mato Grosso e Joca foram pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que sentia. Cada táuba que caia, doía no coração. A maior parte do tempo, não conversamos, apenas olhamos pra frente. Olhares paralelos, mais adequados para apaziguar ou driblar a tristeza, o sofrimento que clamava por transbordamento. Mas nos comunicamos assim mesmo, o tempo todo. Saudoso barraco, barraco querido, onde ele passou dias felizes de sua vida. O incêndio mostrou-se implacável e não poupou as lembranças, a antiga fotografia dos pais, as bonecas da filhas, as roupas preferidas, as camas, a história. Eu ali, ao seu lado, numa experiência inédita, longe dos “muros" do campus, exercendo minha arte.

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