Jovem, morena, provavelmente com ascendência africana e indígena pernambucana, mas não certa disso, pois como muitas negras ou cafuzas, não tem acesso a documentos que esclareçam suas raízes mais profundas. O sorriso bonito e costumeiro esconde o fardo de ser mãe órfã, dedicada, sozinha, dependente de auxílio do Estado. O filho de doze anos frequenta a escola de sete e meia às quatro e meia. O menor precisa chegar na creche até às sete, mas fica lá somente durante a manhã. Impossível trabalhar de carteira assinada. Faz bicos. A desaparição da favela coincidia com a dispersão da vizinhança, das amigas e o sumiço das prosas, das festas, dos encontros, das confusões, das cervejas em roda. As crianças já sentiam falta dos amigos para jogar bola, brincar de pega-pega e esconde-esconde à noite, da turma da Unicamp para desenhar e brincar aos sábados. O desespero foi aumentando e não encontrava algum ombro amigo naquele semideserto urbano. Não hesitou ao afirmar que preferia a favela porque lá tinha certeza de conseguir criar os filhos. “No bairro novo, vai ficar mais cara a água, a luz, a construção da casa. Será que vou dar conta disso? Muitas famílias não vão voltar. Nunca mais será como antes”.
terça-feira, 21 de março de 2023
Barraco querido
A favela desaparecendo aos poucos, para dar lugar, em breve, a um bairro novo, planejado, com casas de alvenaria, arruamento, água encanada, energia elétrica e esgotamento sanitário. A maioria dos barracos desabitados, parcialmente derrubados. Poucas famílias ainda estavam morando ali, mas por pouco tempo, pois o prazo para desocupar estava próximo. Quase uma favela fantasma. Avistei a jovem conversando com uma amiga ou parente, atenta a seu bebê no carrinho. Me contou que ia se mudar no dia seguinte, mas que voltaria para construir a casa de alvenaria. Motivo de alegria. Olhou para seu barraco, onde residiu por cerca de sete anos, desde o primeiro dia da ocupação e, com os olhos ligeiramente lacrimejados me disse: “moro ali. Meu barraco faz parte de minha história. Vou sentir falta dele”.
Saudoso barraco
Sem escolha de não lembrar, peço licença de contar que estava ao meu lado aquele homem grande, negro, saudável, olhando aquele trator seu barraco derrubar. Ou melhor, o que restava dele, depois do incêndio que dois dias antes consumira seu lar e de centenas de vizinhos. De repente, ele disse: "aquela porta eu coloquei há uma semana". Não houve valentia capaz de deter as poucas, porém teimosas lágrimas que escorreram, acompanhando a porta que desabava. Eram poucas porque as restantes ficaram bloqueadas pra dentro, às custas de muita firmeza interior, que ele assim justificou: “não quero que minhas filhas me vejam chorar agora”. Tem lágrimas que escorrem pra dentro e não se tornam públicas. São só da pessoa. Mas doem também. Como não relembrar Adoniram, que ao lado de Mato Grosso e Joca foram pro meio da rua apreciar a demolição. Que tristeza que sentia. Cada táuba que caia, doía no coração. A maior parte do tempo, não conversamos, apenas olhamos pra frente. Olhares paralelos, mais adequados para apaziguar ou driblar a tristeza, o sofrimento que clamava por transbordamento. Mas nos comunicamos assim mesmo, o tempo todo. Saudoso barraco, barraco querido, onde ele passou dias felizes de sua vida. O incêndio mostrou-se implacável e não poupou as lembranças, a antiga fotografia dos pais, as bonecas da filhas, as roupas preferidas, as camas, a história. Eu ali, ao seu lado, numa experiência inédita, longe dos “muros" do campus, exercendo minha arte.