sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Conversas com Jacques le Fataliste e Brás Cubas

       Dois autores e duas obras que conversam muito bem: "Jacques le Fataliste et son maître", de Denis Diderot (Langres 1713 - Paris 1784), e "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis (Rio de Janeiro 1839 - Rio de Janeiro 1908).

Diderot escreveu o romance "Jacques le Fataliste et son maître" entre 1765 e 1780.

Machado de Assis escreveu "Memórias póstumas de Brás Cubas" entre março e dezembro de 1880.


Vejamos trechos de cada obra:


     1. Jacques le Fataliste et son maître

Jacques commença l’histoire de ses amours. C’était l’après-dîner: il faisait un temps lourd; son maître s’endormit. La nuit les surprit au milieu des champs; les voilà fourvoyés. Voilà le maître dans une colère terrible et tombant à grands coups de fouet sur son valet, et le pauvre diable disant à chaque coup: “Celui-là était apparement encore écrit là-haut…” (p. 26)

Vous voyez, lecteur, que je suis en beau chemin, et quel ne tiendrait qu’à moi de vous faire attendre un an, deux ans, trois ans, le récit des amours de Jacques en le séparant de son maître et en leur faisant courir à chacun tous les hasards qu’il me plairait. Qu’est-ce qui m’empêcherait de marier le maître et de le faire cocu? d'embarquer Jacques pour les îles? d'y conduire son maître? de les ramener tous les deux en France sur le même vaisseau? Qu’il est facile de faire des contes! Mais ils en seront quittes l’un et l’autre por une mauvaise nuit, et vous pour ce délai. (p. 26-27)

Vous concevez, lecteur, jusqu’où je pourrai pousser cette conversation sur un sujet dont on a tant parlé, tant écrit depuis deux milles ans, sans être d’un pas plus avancé. Si vous me savez peu de gré de ce que je vous dis, sachez-m’en beaucoup de ce que je ne vous dis pas. (p. 31)

Lecteur, il me vient un scrupule, c’est d’avoir fait honneur à Jacques ou à son maître de quelques réflexions qui vous appartiennent de droit; si cela est, vous pouvez les reprendre sans qu’ils s’en formalisent. (p. 236)

Vous ne croirez pas cela, lecteur. (p. 263)

Lecteur, qui m’empêcherait de jeter ici le cocher, les chevaux, la voiture, les maîtres et les valets dans une fondrière? Si la fondrière vous fait peur, qui m’empêcherait de les amener sains et saufs dans la ville où j’accrocherais leur voiture à une autre, dans laquelle je renfermerais d’autres  jeunes gens ivres? Il y aurait des mots offensants de dits, une querelle, des épées tirées, une bagarre dans toutes les règles. Qui m’empêcherait, si vous n’aimez pas les bagarres, de substituer à ces jeunes gens Mlle Agathe, avec une de ses tantes? (p. 281)


       2. Memórias póstumas de Brás Cubas

Morri de uma pneumonia, mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma idéia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não creia, e todavia é verdade. Vou expor-lhe sumariamente o caso. Julgue-o por si mesmo. (p. 3)

Decida o leitor entre o militar e o cônego; eu volto ao emplasto. (p. 4)

Que me conste, ainda ninguém relatou o seu próprio delírio; faço-o eu, e a ciência mo agradecerá. Se o leitor não é dado à contemplação destes fenômenos mentais, pode saltar o capítulo; vá direto à narração. (p. 10)

Já o leitor compreendeu que era a razão que voltava à casa, e convidava a Sandice a sair, clamando, e com melhor jus, as palavras de Tartufo: La maison est à moi, c'est à vou d’en sortir. (P. 17)


      Conversas

Os trechos acima revelam que os dois autores relatam os amores e eventos da vida de seus personagens principais, Jacques e Brás Cubas. Utilizam a mesma estratégia de conversar com o leitor, convidando-o, muitas vezes, a opinar ou decidir sobre o rumo da obra. 

De acordo com "Le Petit Larousse des Écrivains Français”, 

À travers la grande diversité de l’oeuvre de Diderot, on peut observer presque une constante: la forme dialoguée. […] Pourquoi cette quasi-omniprésence du dialogue? C’est la forme la plus appropriée pour échanger des idées et transcrire les tensions de la pensée. Diderot n’a jamais voulu disserter ni prêcher. Le dialogue lui permet de saisir sa pensée dans son jaillissement, dans sa dynamique et d’inciter le lecteur à prendre parti.  

Machado de Assis, que falava e conhecia muito bem o idioma francês, muito provavelmente leu "Jacques le Fatalista et son maître” e deve ter sido fortemente influenciado pelo escritor francês.  


Referências 

1. Denis Diderot. Jacques le fataliste. Paris: Garnier-Flammarion, 1970. 316p.

2. Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Globo, 1997. 208p.

3. Catherine Mory. Le Petit Larousse des Écrivains Français. Paris: Larousse, 2012, p. 108-111.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

A doença que ceifou a vida de Brás Cubas: reflexões médicas

 Brás Cubas, personagem que dá nome ao livro de Machado de Assis, nasceu em 1805, quando a expectativa de vida no Rio de Janeiro situava-se ao redor de 45 anos de idade. Portanto, quando faleceu, em 1869, já com 64 anos, era considerado idoso, talvez até muito idoso. (p. 1) Segundo o que escreveu em suas Memórias Póstumas, a causa de sua morte teria sido pneumonia, ou uma ideia grandiosa e útil, a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade - o “Emplasto Brás Cubas”. (p. 3) 

O trecho transcrito a seguir dá ideia do aspecto agudo e agressivo da doença, assim como de sua relação com a mencionada ideia de inventar um emplasto:


…recebi em cheio um golpe de ar; adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a idéia fixa dos doudos e dos fortes. Via-me, ao longe, ascender do chão das turbas, e remontar ao céu, como uma águia imortal, e não é diante de tão excelso espetáculo que um homem pode sentir a dor que o punge. No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente, sem método, nem cuidado, nem persistência; tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade”. (P. 7)


Naquela época, as doenças infecciosas matavam mais que as doenças cardiovasculares ou as neoplasias, diferentemente do que ocorre atualmente. A pneumonia figurava entre as principais, ou era a principal causa de morte entre idosos. O tratamento não podia contar com antibióticos, desenvolvidos apenas no século XX. Utilizava-se, então, o repouso, sangria, eméticos (remédios para vomitar), laxantes, ventosas, chás.  

O golpe de ar corresponderia à ação do ar frio que tende a paralisar os cílios da árvore respiratória, cuja ação consiste na remoção de muco onde aderem partículas que podem facilitar o desenvolvimento de infecções respiratórias. Faz sentido a recomendação de mães e avós para evitar sair à noite, no frio.

Profundamente envolvido com a ideia de seu emplasto, descuidou-se dos primeiros sintomas da pneumonia, e não se tratou. Não é infrequente que o foco mental em um objetivo relevante para a pessoa, a faça negligenciar os primeiros avisos de uma doença. Rapidamente piorou. Esta informação reforça a hipótese diagnóstica de pneumonia, uma infecção respiratória aguda, diferente da tuberculose, a infecção mais prevalente e letal do século XIX e primeira metade do XX, porém mais arrastada. 

Durante a apreciação das Memórias Póstumas de Brás Cubas, o leitor encontrará algumas passagens que descrevem personagens acometidos pela tísica e, nesse momento, poder-lhe-ia vir à mente a possibilidade de que não fosse pneumonia e sim tuberculose a causa da morte:


…capitão do navio, que aliás tinha muito que cuidar de si, porque, além do mais, levava a mulher tísica em último grau. … A mulher ia quase sempre numa camilha rasa, a tossir muito… Não estava magra, estava transparente; era impossível que não morresse de uma hora para outra”. (p. 40) “Um dia, logo depois do almoço, disse-me o capitão que a enferma talvez não chegasse ao fim de semana. … Fui vê-la; achei-a, na verdade, quase moribunda. Neste ponto vieram buscá-lo da parte dela; corremos ambos; era uma crise. Esse e o dia seguinte foram cruéis; o terceiro foi o da morte”. (p. 42)


Contudo, o autor não prossegue com nenhuma menção a quadro de tosse persistente, emagrecimento, fraqueza ou hemoptise, que pudessem sugerir haver Brás Cubas contraído e sucumbido à tuberculose.

Outro dado biográfico que indica tratar-se mesmo de infeção aguda, é a manifestação de delírio. Machado de Assis dedicou um dos capítulos mais longos do livro - Capítulo VII - à descrição do delírio, na sequência daqueles que apresentaram o processo de morte do protagonista. 


Primeiramente, tomei a figura de um barbeiro chinês, bojudo, destro, escanhoando um mandarim, que me paga o trabalho com beliscões e confeitos: caprichos de mandarim.

Logo depois, senti-me transformado na Suma Teológica de S. Tomás, impressa num volume, e encadernada em marroquim, com fechos de prata e estampa; idéia esta que me deu ao corpo a mais completa imobilidade e ainda agora me lembra que, senso as minhas mãos os fechos do livro, e cruzando-as eu sobre o ventre, alguém as descruzava (Virgília decerto), porque a atitude lhe dava a imagem de um defunto.

Ultimamente, restituído à forma humana, vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou. Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

- Engana-se, replicou o animal, nós vamos à origem dos séculos. (p. 10-11) 


O delírio de origem infecciosa é mais frequente em idosos, comumente com infecção urinária ou pneumonia, e caracteriza-se por distúrbio de atenção, agitação, alteração de comportamento, alucinações, entre outros sintomas. No trecho acima é possível reconhecer alucinações visuais e auditivas. 

A presença de delírio costuma indicar gravidade da doença e pode estar relacionada a sepse.

Brás Cubas faleceu na Chácara Catumbi, de sua propriedade. (p. 1) Não se morria em hospital. Em geral, a passagem se dava em casa, cercado por familiares e amigos, como a irmã Sabina e a amiga e amante Virgília. O papel do hospital como local de morte das pessoas ganharia destaque durante o século XX, pari passu ao desenvolvimento tecnológico capaz de prolongar a vida, e, por vezes, retardar e maltratar o processo de morte. Mais recentemente, com o avanço dos cuidados paliativos, novamente incentiva-se a passagem em casa.

domingo, 15 de dezembro de 2024

Menina linda. Sociedade feia.


    Menina linda, nos seus oito anos de idade. Pele negra, olhos castanhos, cabelo afro e sorriso comunicativo. Quantas e quantas vezes escutou que era linda. Nem sabe mais como responder. Na maioria das vezes, devolve um obrigada.

Gosta de correr, brincar e, como seus três irmãos, é rápida no manuseio do celular. São inesgotáveis as ofertas de joguinhos e vídeos infantis. Nem mesmo o dedão direito na boca compromete sua agilidade digital.

Sua cor favorita é o rosa e não esconde a alegria de vestir bermuda e camiseta dessa cor. Combina com sua pele e seus olhos.

Faz questão de tomar banho com a irmã, que recentemente completou dezoito anos. Gosta de abraços, seja da irmã, seja da mãe, de quem herdou os lindos olhos. Esse grude com a irmã tem explicação.

Durante seus primeiros três anos de vida sofreu violência, quase sempre originada da relação entre o pai e a mãe e irmãos. Não apenas física, mas também psicológica, na forma de dor de estômago vazio, frio no sono na calçada, medo do escuro da noite, desespero da mãe buscando alimentos, ou ainda na necessidade de fazer suas necessidades num balde por causa da ausência de um vaso sanitário. 

Um dia, de repente, sua mãe conseguiu enxugar as lágrimas, criou coragem e deu um basta à violência de gênero. Já era tempo. Saiu de casa com seus quatro filhos e buscou amparo na casa de uma amiga por um curto período de tempo. Em seguida, foram morar num barraco de madeira, próximo à casa da avó. 

Um recomeço difícil. Ainda que tivessem conquistado a liberdade, não se livraram dos medos, principalmente relacionados à incerteza de futuro. Medo de não ter almoço. Medo de perder o lar. 

Um dia, de forma inesperada, seu pai apareceu e a levou, junto com seu irmão. Por que?

Ninguém lhe perguntou se queria ir embora sem sua mãe e seus outros irmãos. Foram cinco anos longe deles. Porque não vinham buscá-la? 

Há dois meses, prenderam seu pai e ela e seu irmão voltaram a morar com a mãe e os irmãos. Agora numa casa de alvenaria, em outro bairro. Não falta mais comida. Tem vaso sanitário. Ganhou roupas novas. A maioria cor de rosa. 

Que alegria dormir com a irmã, os irmãos ou a mãe. Muitos e muitos abraços. Tomar banho com a irmã pra não ficar nem um minuto longe. 

        Que medo de ser levada de novo!

Escola diferente. Ganhou uniforme novo. Vai e volta, acompanhada pela irmã querida. 

Um dia, chegou em casa chorando porque os colegas lhe chamaram de neguinha feia, do cabelo duro. Passou a achar que seu cabelo é feio mesmo.

Tão nova, com uma pesada bagagem de violência e medos. Tão poucos anos de vida e já enfrentando atitudes racistas e preconceituosas dentro da escola. 

Como será que a escola vai lidar com as atitudes dos colegas? Dá pra suspender algumas aulas de matemática, português, ciências ou outra para ensinar às crianças sobre racismo e violência de gênero? Ou não, já que o problema é somente dela?

A mãe a levou a um salão de beleza especializado em cabelos afros. Ficou sentada na cadeira por cerca de seis horas e desceu dali mais linda ainda. Mas talvez não o suficiente para que os colegas parem de importuná-la.

Se seu desempenho não for bom nos estudos é bem provável que sua mãe seja chamada à escola para tomar ciência do fato e fazer alguma coisa. Se não melhorar, terá que refazer o ano? Caberá a ela dar conta sozinha das marcas da violência - física, psicológica, social, racial, de gênero? 

E se seu comportamento piorar? E se chorar no canto? E se começar a se cortar? Alguém poderá encaminhá-la à psicóloga. Será que é fácil conseguir acompanhamento psicológico no postinho? Ou precisará de psiquiatra e remédios faixa preta?

Quando for adulta, os profissionais de saúde que a acolherão terão paciência e interesse para escutar sua história ou apenas receitarão calmantes para o nervosismo, antidepressivos para a tristeza, analgésicos para sua dor?

Na realidade, é a sociedade que está doente, estruturalmente falando. Qual os remédios?

A linda menina quer apenas abraços, colo e ouvido.

domingo, 24 de novembro de 2024

Se o campo não planta a cidade não janta

 A chuva contínua do começo de novembro pintara de verde a paisagem da zona rural de Americana e embarrerara o chão do assentamento Milton Santos. Mas aquela manhã surgiu sem chuva, propícia para as atividades de extensão universitária, nas casas dos moradores. Três grupos de extensionistas formaram-se, com alunos de Medicina e Educação Física, residentes de Medicina de Família e Comunidade e Ginecologia, e  pós-graduandos de Saúde Coletiva - psicólogo e midiáloga.

Fomos recepcionados com bolachas, bolo de fubá, chá e café. Fátima nos esperava com o banquete montado por ela. Pura gentileza. Não faltaram os abraços e sorrisos. Mais tarde, chegou Eunice, com mandioca cozida e um cheiro para cada um de nós.

Além dos atendimentos em saúde, brincadeiras com as crianças preencheram o período.

Eu permaneci na sede, uma construção feita em mutirão, destinada a servir como escola para educação de adultos, mas que abriga outras atividades, como nossos encontros com moradores-pacientes. 

Logo chegou Liormando, um simpático pernambucano, filho de Pedro José e Doralice, natural de Vitória de Santo Antão, de 58 anos de idade, proprietário de um lote do lado de Cosmópolis. Cultiva abacaxi, jiló, beringela, feijão vagem, abobrinha, mamão, tomatinho, cheiro verde e mandioca, entre outros vegetais. Falou com paixão da cultura de abacaxi e da casa de farinha que organizou em seu lote. 

Contou, com orgulho, que produziu 100 quilos de farinha de mandioca na última semana. Fez questão de buscar dois saquinhos para exibir. Fiquei encantado com a pureza e beleza da farinha bem fina, agradável ao olfato. 

A casa de farinha fez parte de sua infância. Conhece bem os segredos de cada etapa da produção de farinha de mandioca, desde seu cultivo até a torragem. Quando criança, seu irmão mais velho lhe pedira ajuda para colocar o caçoar cheio de casca de mandioca no lombo da égua. Caberia a ele sustentar nas costas de um lado enquanto seu irmão rodeava o animal para ajustar o caçoar do lado oposto. No entanto, assim que o irmão soltou o peso do cesto, Liormando sentiu uma dor intensa e aguda nas costas e precisou sair para chorar. Desconfia que a dor que vem e vai na coluna tenha se originado nesse episódio.

Com 7 anos de idade, acompanhava o pai na roça, mas não trabalhava, apenas observava e brincava. Sem querer, chutou um pedaço de terra que atingiu a costela do pai. Foi o suficiente para que passasse a ser considerado apto para o trabalho. Foi, então, apresentado à enxada. Conta que “nunca levou uma pisa” do pai. O castigo era outro: capinar um terreno. Não se conforma com os castigos de hoje, ficando as crianças na cama ou no sofá, às vezes até assistindo programa na televisão ou brincando com o celular.

Sua refeição na roça era camarão salgado e farinha, carregados num bornal feito de lata de leite em pó. Quando ficava em pé e não enxergava mais sua sombra, era hora de almoçar. Outra lembrança dos tempos de roça era a técnica usada para impedir que os porcos fuçassem o solo, mas permitindo que comessem - colocavam um arame torcido no focinho.

Tanto seu chapéu nordestino como suas sandálias são de couro e presentes de seu cunhado alagoano. Liormando explicou que o chapéu está um pouco achatado porque costumava carregar coisas sobre a cabeça. Segurou uma das sandálias na mão e explicou que se orgulha de dizer aos seus interlocutores que eles podem até ter mais terras e mais plantações que ele, mas ninguém tem um par de sandálias como aquela. Quando jovem, trabalhava descalço. Nas canelas, são visíveis as marcas das formigas lava-pés, cicatrizes do trabalho no campo.

Aos 23 anos, deixou a Zona da Mata pernambucana e se instalou em Limeira. Passou a trabalhar na fundição. Algum tempo depois, mudou de ramo e experimentou a construção civil, muito pior, segundo ele, para a coluna.

Reside no assentamento Milton Santos há 19 anos, desde seu início, e colaborou com a construção da casa que servirá de escola, onde nossa conversa transcorria.

Pai de Leonardo - 37 anos de idade e residente em Recife - e de Edinaldo - 36 anos e residente em Limeira -, casou-se com Rosangela, mãe de cinco filhos - Aline, Ramon, Juan, Vitor e Douglas -, e companheira quando se trata de preparar as mudas para o plantio.

Não era esta a primeira vez que conversávamos. Há alguns meses, trouxera exames para serem avaliados e saiu da consulta com o estímulo para fazer caminhadas. Levou muito a sério a recomendação e, atualmente, sai às cinco e quinze da manhã, acompanhado de Rosangela, para uma caminhada de 30 a 40 minutos de duração. Mais de uma vez, durante nossa conversa, ouvi os dois dizerem que a vida melhorou muito depois que começaram a caminhar. 

As veias saltadas na perna de Liormando murcharam e o fôlego aumentou.

Esse homem, ciente do seu papel como verdadeiro fornecedor de alimentos para a população, frisou que “se o campo não planta a cidade não janta”.  

Eu, encantado com tamanha sabedoria e pensando no significado de tudo aquilo que ouvira, lamentei não estarem meus alunos ali também. Ana Carolina, nossa residente de Medicina de Família e Comunidade acompanhou o final da conversa.

Combinamos de visitar seu lote e compartilharmos seus saberes e experiências com os extensionistas daqui a duas semanas. Quem sabe ainda restarão alguns saquinhos com farinha! 

domingo, 22 de setembro de 2024

MARCHA CEIFANTE EM LUANDA

 O cenário eram as ruas de Luanda. Caminhávamos atentos às imagens, cores, cenas, paisagens, meios de transporte, construções e pessoas da fervilhante capital angolana.  O trânsito, aparentemente caótico, em razão de muitos carros, candongas - vans azuis e brancas que funcionam como lotações clandestinas, motos, caminhonetes, kupapatas - motos com reboque para passageiros, que interagem nas ruas e avenidas desprovidas de semáforos, flui ora lentamente, ora um pouco mais rápido. Mesmo quando se forma um verdadeiro novelo de veículos que quase se encostam e tudo parece fadado à uma total imobilidade, alguns hábeis condutores recuam cerca de trinta centímetros para que outros avancem o mesmo, e, de repente, volta-se a circular. 

As calçadas estão quase sempre ocupadas por uma multidão, num vai e vem pulsante. Destacam-se as zungueiras, ágeis e cuidadosas para não derrubarem os produtos que carregam sobre as cabeças. Há também as mulheres que se acomodam na calçada, ao lado de um fogãozinho, vendendo banana pão (banana da terra), mandioca ou amendoim, fontes de energia para os transeuntes. 

Sobre um saco e um pano brancos esticados sobre o chão da calçada, observamos peixes de rio, aguardando compradores. Enquanto estes não chegavam, eram as moscas que lhes rodeavam. Mais adiante, uma mulher cortava cebola. Tinha cinquenta anos e era hipertensa. Sua mãe também sofrera desse mal e falecera com derrame cerebral antes dos sessenta anos de idade. Ao lado dessa mulher, uma filha lavava louça numa pia ao ar livre e outra comia. Eram jovens. Ao lado delas, um balde com grandes peixes de mar que seriam servidos no almoço daquele dia para os clientes que preferem comer em casas de famílias do que em restaurantes.     

Os angolanos que vimos, em sua maioria, são bonitos, magros, com belos sorrisos. No dia a dia, demonstram preocupação. Têm motivos para se preocupar. A música lhes ajuda a seguir adiante. Sexta-feira é dia de crianças de muitas escolas irem vestidas com roupas “africanas”. Ficam ainda mais lindas e embelezam as calçadas da cidade.

Duas mulheres passaram perto de nós, conversando. Uma, mais alta, portava um turbante rosa e um vestido estampado em preto, branco, verde e amarelo, deixando o ombro esquerdo à vista. Portava uma correntinha fina dourada com um pingente em forma de cubo. A outra cobria a cabeça com um tipo de gorro com figuras geométricas em preto e bege. Seu vestido era azul e deixava o ombro e braço direitos à mostra. Nos chamou a atenção sua marcha ceifante, caracterizada "pela diminuição da flexão e extensão dos membros inferiores, diminuindo a sua oscilação para frente e para trás, resultando em uma abdução exagerada do membro parético durante a fase de balanço”. (IWABE, DIZ & BARUDY, 2008, p. 295) Melhor dizer que sua perna esquerda fazia um movimento no formato de uma foice. Ficamos com vontade de nos aproximar e perguntar se era mesmo um derrame, chamado pelos médicos de acidente vascular encefálico, a causa daquela forma de caminhar. Mas, enquanto as reflexões passavam de sinapse a sinapse, as jovens mulheres se foram. Pouco tempo depois, as avistamos novamente e, sem hesitar, caminhamos na direção delas. Nos receberam com simpatia e sorrisos. Havia alguma tristeza no semblante de ambas. Tinham ido comprar umas ervas para fazer chá para o filho de uma delas que apresentava cólica abdominal. Perguntamos à mais baixa se ela havia tido um derrame e ela respondeu afirmativamente. Tinha trinta e oito anos e era mãe de sete filhos. O infarto cerebral acontecera quatro anos antes. Sofria com hipertensão arterial, doença cuja prevalência e gravidade são maiores entre negros se comparadas a pessoas brancas. Tão jovem e já com sequela de acidente vascular encefálico! Qual a chance de ter outro? Perguntamos se era acompanhada por médico e se tomava remédios. Infelizmente não era esse o caso. Como grande parte da população, não tinha acesso a seguimento médico em centro de saúde e a medicamentos de graça.

Meses depois, já no Brasil, conversamos com um médico angolano sobre a atenção primária em saúde em Angola. Perguntamos como seria o atendimento de uma pessoa hipertensa, passo a passo. Em geral, seria recebida por um profissional da enfermagem, pois não contam com recepcionista. Em alguns lugares, o enfermeiro só começa a atender na unidade básica de saúde após trabalhar em sua “lavra”, nas primeiras horas do dia. Cabe a ele aferir a pressão arterial do paciente, se o esfigmomanômetro estiver disponível, o que nem sempre é o caso. Não é certeza a presença de médico no local e, por causa disso, os enfermeiros estão autorizados a fazer a receita dos medicamentos. Contudo, isso não garante que o tratamento farmacológico seja iniciado, pois raramente o paciente hipertenso encontrará os remédios de graça na rede pública e, comumente, não terá condições financeiras para comprá-los. Tal descrição deixava claro que o derrame da jovem mulher com quem conversamos em Luanda não era excepcional.

De acordo com diretores e médicos de hospitais do país, as unidades de emergência e de terapia intensiva desses serviços recebem muitos casos graves de acidente vascular encefálico, com elevada taxa de letalidade (acima de dez por cento), sendo a maioria do tipo hemorrágico.

A expectativa de vida em Angola tem diminuído nos últimos anos e parece estar ao redor de sessenta e um anos. (REIS, 2022) Durante a 2a Conferência Científica da Universidade Agostinho Neto, em maio deste ano, ouvimos falar em cinquenta e oito anos. As principais causas de morte são malária, diarreias agudas, pneumonia.

Angola tem uma população de cerca de 35 milhões de habitantes, não muito diferente do Estado de São Paulo, com 44 milhões. Grande diferença existe no número de médicos em atividade. O país africano conta com cerca 14.000, entre angolanos (8.000 a 9.000) e estrangeiros, e o estado brasileiro com pouco mais de 166.000. (SONHI, 2023; CREMESP, 2024; XINHUA, 2023) "Angola tem apenas 2,48 médicos por cada 10 mil habitantes, ficando abaixo da densidade recomendada pela Organização Mundial de Saúde, de dez médicos por 10 mil habitantes." (CM JORNAL, 2024)  O Ministério de Saúde pretende formar 38.000 profissionais de saúde até 2027. (XINHUA, 2023)   

Nos parece que aqueles responsáveis pela formação de profissionais de saúde em Angola devam priorizar a atenção primária, o cuidado a partir de unidades básicas de saúde, pois as principais doenças responsáveis por internações e óbitos podem ser prevenidas, diagnosticadas e tratadas nesse nível de atenção.




Referências bibliográficas

Cristina Iwabe, Maria Angélica da Rocha Diz, Daniela Pinho Barudy. Análise cinemática da marcha em indivíduos com Acidente Vascular Encefálico. Rev Neurocienc 2008;16/4:292-296.

Cremesp. Demografia médica 2024. 8 de abril de 2024. Disponível em: http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=NoticiasC&id=6460

Sonhi, A. País tem 14 mil médicos preparados para atender toda a população. Jornal de Angola. 26 de janeiro de 2023. Disponível em: https://www.jornaldeangola.ao/ao/noticias/pais-tem-14-mil-medicos-preparados-para-atender-toda-a-populacao/

CM Jornal. Mundo. África. Angola tem 2,48 médicos por 10 mil habitantes. 7 de julho de 2024. Disponível em: https://www.cmjornal.pt/mundo/africa/detalhe/angola-tem-248-medicos-por-10-mil-habitantes.  

Xinhua. Xinhua português. Angola formará 38 mil profissionais de saúde até 2027. 27 de setembro de 2023. Disponível em: https://portuguese.news.cn/20230927/1ce261e052df4cc683464f3c4805e5e3/c.html#:~:text=.  

Reis, JJ. Angolanos estão mais pobres e vivem menos tempo do que há quatro anos.  Expansão. 23 de setembro de 2022. Disponível em: https://expansao.co.ao/angola/interior/angolanos-estao-mais-pobres-e-vivem-menos-tempo-do-que-ha-quatro-anos-110110.html.  

domingo, 15 de setembro de 2024

ZUNGUEIRAS

 Zungueira é o nome dado à mulher que caminha “o dia todo”, carregando sobre a cabeça uma bacia contendo produtos para serem vendidos aos moradores de Luanda. O vocábulo provém de zungar, que significa caminhar sem parar de um lado para outro, de acordo com o que ouvimos de luandenses com quem conversamos. A população está habituada a adquirir produtos das zungueiras, provavelmente mais em conta que nos mercados.

Em sua maioria, são longilíneas, magras, com pernas finas, vestem saia e blusa e calçam chinelos. Sobre suas cabeças, um pano enrolado em círculo, sobre o qual equilibram uma bacia colorida contendo os produtos. Por vezes, a bacia é substituída por grandes sacolas ou sacos de pano. Não raras vezes, além da bacia sobre a cabeça, carregam nos braços sacolas ou baldes. Algumas, ainda acomodam crianças nas costas.

Nas bacias, sobre suas cabeças, passeiam abacates, mandiocas, milhos, frangos, peixes, ovos cozidos, bananas, roupas, produtos de limpeza, materiais escolares, e qualquer outro produto que os habitantes da capital precisem para abastecer suas casas. Não é difícil imaginar o peso dessas bacias cheias.

Difícil é acreditar que andam, ou zungam, por cerca de vinte a trinta quilômetros diariamente, enfrentando o calor, dificuldade de acesso à água e banheiros, e o trânsito caótico, responsável por grande número de atropelamentos. Luanda, com aproximadamente dois milhões e meio de habitantes, não conta com semáforos e quase nenhuma passarela para cruzar a pé as avenidas. O dinheiro que conseguem é suficiente apenas para os gastos daquele dia, de forma que a cena se repete no amanhecer seguinte, sem a possibilidade de períodos mais longos de descanso. Quando retornam ao lar, emendam a atividade de zungueira com a de dona de casa, responsável por cozinhar, varrer, arrumar, lavar e guardar roupas e cuidar de muitos filhos, amiúde numerosos, conforme tradição cultural que encarrega familiares do casal de decidirem a quantidade de herdeiros que eles devem ter. A maioria das famílias teve ou tem uma ou mais zungueiras.

Um verdadeiro exército de mulheres, tal qual um agitado formigueiro, dando cor e vida à maior cidade de Angola. Impossível que os visitantes permaneçam indiferentes às zungueiras. Foi o nosso caso, recém chegados ali para atividades junto à Universidade Agostinho Neto, como membros de um programa internacional de extensão universitária. Estão retratadas em pinturas muito coloridas expostas no mercado de arte do Benfica, visitado por turistas. Ao que parece, não fomos os únicos sensibilizados pela presença delas nas ruas e calçadas de Luanda. Uma incômoda mistura de beleza artística e sofrimento feminino. 

Perguntamos, mais de uma vez e a diferentes angolanos, sobre a condição das zungueiras. Nos parecia que deveriam ter dor no pescoço, ombros, dorso, região lombar, pernas e pés. Quem sabe até dor na alma. Enquadrariam-se num capítulo importante da Saúde do Trabalhador, que se ocuparia dos efeitos de um trabalho informal extremamente extenuante sobre a saúde de mulheres, havendo, portanto, um relevante fator para uma análise mais fidedigna da condição observada - o gênero. Um tema de grande interesse para a Saúde Coletiva, notadamente graças à contribuição das Ciências Sociais para a compreensão das causas do sofrimento populacional.

As respostas que obtivemos não nos tranquilizaram. 

Alguns homens simplesmente nos disseram que as zungueiras estão acostumadas a esse tipo de trabalho. Outros comentaram que elas precisam zungar para sobreviver e que preferem isso à alternativa de não ter essa fonte de renda, pois o governo “ameaça" proibir o trabalho delas. 

As mulheres não “ousaram" se aprofundar no tema e não fizeram nenhum comentário sobre as prováveis dores do corpo e alma. O quase silêncio falou por si e nos entristeceu diante da sensação de que a questão seria mais profunda e grave do que supúnhamos.

Não se trata somente de proibir, mas de oferecer outras formas menos desgastantes de ganho de renda, e de considerar o papel das mulheres na sociedade, já sobrecarregadas pelos afazeres do lar, mormente pela responsabilidade atribuída a elas no cuidado de grandes famílias. 

A compreensão da questão das zungueiras passa pela aproximação e compreensão de uma série de outros fenômenos, culturais, sociais e econômicos.

Acreditamos que a extensão universitária, em razão de sua liberdade para interagir dialogicamente com outros setores da sociedade, possa contribuir significativamente para compreender e analisar, conjuntamente com pessoas da comunidade, o papel e sofrimento das zungueiras.

Outra estratégia que nos parece muito promissora é o investimento na Atenção Primária em Saúde, sob a égide de uma Clínica Ampliada e Compartilhada, que considera não apenas a doença, mas, e sobretudo, a pessoa singular, com sua história de vida, valores, crenças, desejos, saberes e experiências. Seria nessa perspectiva que essa mulheres deveriam ser acolhidas nos serviços de saúde.

Cabe às universidades e ao Ministério da Saúde contribuir para que tais propostas ganhem vida em Luanda.










terça-feira, 14 de maio de 2024

Esculturas e saúde do trabalhador rural do café

 Visitar Brodowski e, em especial, o museu Casa de Portinari costuma ser prazeroso e enriquecedor culturalmente. Era minha quarta visita, todas elas como escala da viagem entre Campinas e Ituiutaba, onde reside minha sogra.

A primeira ida à casa da família do mais célebre pintor brasileiro foi estimulada pela visita que meus pais lá fizeram poucos anos antes. Uma réplica do quadro “Reisado”, de 1941, presente deles, segue na parede da sala de casa. Supus que meu pai, médico formado em 1947 e que dedicou mais de meio século à saúde do trabalhador, teria tido interesse particular pela história da intoxicação por chumbo presente nas tintas que abreviou a vida do artista brodowskiano. Foi esse também meu principal interesse e resultou num texto produzido - Saturno, o Deus de Portinari, em parceria com o historiador Ivan Luiz Martins Franco do Amaral, a partir do que lá encontrei e de pesquisas bibliográficas paralelas, e apresentado no IX Seminário Nacional do Centro de Memória da Unicamp.

Gosto de chegar na noite anterior, me hospedar no hotel localizado a poucos metros da praça Candido Portinari e iniciar a visita na primeira metade da manhã. Este ano, atravessei a praça por volta das oito horas, mas fui informado que a abertura seria somente uma hora mais tarde. Decidi então passear a pé pela cidade. Estava nublado. A fina garoa que ia e vinha não incomodou. Placas coloridas com poesias e prosas de Portinari deram charme adicional à caminhada -

“Num pé de café nasci. 

Um trenzinho passava 

Por entre a plantação”.

Cheguei à antiga estação ferroviária, fundada em 1894, ávido por saber mais sobre a cidade. Estava fechada. Mas atrás do prédio existe uma “Praça das Artes”, inaugurada em 1994, por ocasião das comemorações do centenário da cidade que leva o nome do engenheiro da Companhia Mogiana - Alexandre Brodowski -, responsável pelo surgimento daquela estação, ao redor da qual surgiria a cidade que me acolhia naquele dia. Um muro baixo foi ornado com imagens em relevo ilustrando trabalhadores de café. Lá, o artista Adélio Sarro escreveu “Tributo ao mestre Portinari - 08-10-1994”. Contudo, foram suas esculturas que homenageiam Portinari e a ferrovia que mais me chamaram a atenção. São dois grupos de esculturas em tamanho natural - um representando imigrantes e o outro trabalhadores do café.

A presença dos dois grupos na mesma praça, próximos um do outro, imigrantes e lavradores de café, nos impulsiona a pensar que as primeiras gerações de italianos que vieram trabalhar nas plantações do Brasil tiveram que lidar com o processo de adaptação de clima, idioma e costumes, e com a nostalgia. É provável que muitos apresentassem sofrimento psíquico.

O primeiro grupo é composto por cinco figuras humanas. Duas mulheres, uma delas aparentemente grávida, estão sentadas sobre um banco, muito provavelmente em alusão à espera do trem na estação ferroviária. As outras três figuras representam um casal de adultos e uma criança com os braços elevados, acenando em despedida ao que deixaram para trás. Os traços europeus das figuras dispostas na estação ferroviária destinada a escoar a produção de café daquela região indicam tratar-se de migração de famílias para essa lavoura - provavelmente italianos.

O outro grupo é composto por cinco adultos - três homens e duas mulheres - em pé, em círculo, de costas um para o outro e tendo ao centro uma saca escrito “O café”. Estão todos descalços. Portanto, sem proteção contra arranhões, cortes, picadas de animais - agravos que poderiam ser minimizados com o uso de botas. Talvez o contato direto com o solo, com a terra rossa, foi proposital, na tentativa de representar a relação visceral do lavrador com a terra. A ausência de calçados e a magreza dos trabalhadores também nos leva a admitir a hipótese de pobreza, falta de alimentos e excesso de trabalho dos primeiros italianos que aqui aportaram.

Um dos homens segura uma enxada, ferramenta indispensável para o preparo da terra. O peso da mesma e sua extremidade afiada permitem ao lavrador capinar e revolver a terra, mas, por outro lado, aumentam o risco de acidente de trabalho, principalmente quando se trabalha descalço.

O segundo lavrador eleva uma peneira com as duas mãos, representando o movimento repetitivo de abanar o café visando separar as folhas dos grãos. Exige esforço não apenas dos braços, mas também do tronco. Faz-se necessário repetir os movimentos diversas vezes até que os frutos predominem nitidamente na peneira e as folhas se acumulem no chão. A escultura leva o visitante a supor a possibilidade de dor devido a lesões por esforço repetitivo e esforço muscular exagerado.

Neste conjunto de esculturas de Sarro não foi destacada a musculatura dos trabalhadores, diferente do que se observa no “O lavrador de Café” (1934) de Portinari, mas chama a atenção o fato de todas a figuras serem magras.

Sacudir a peneira acima da altura da boca e nariz pode fazer com que poeira entre nas vias respiratórias e até nos olhos, o que, muito provavelmente, incomodava sobremaneira os lavradores de café. Seria uma queixa comum? O que os médicos do trabalho podem nos dizer a respeito?

Outro trabalhador encontra-se totalmente curvado para a frente, pegando um saco de café. Eu, que já tive o desprazer de interromper minhas atividades rotineiras em razão de lombociatalgia relacionada a traiçoeira hérnia de disco L5-S1, olhei para aquela obra de arte com empatia, imaginando sua musculatura lombar desafiada até o limite do tolerável. Nos dias de hoje, receberia o CID M54.5. Como faziam para evitar a dor lombar? Trata-se de agravo frequente entre trabalhadores rurais?

Me recordo com clareza dos trabalhadores de horta localizada no bairro Beira Rio, na área de abrangência do Centro de Saúde Rosália, em Campinas, onde atuei durante vários anos. Cruzávamos com eles durante as caminhadas semanais que fazíamos às sextas de manhã com moradores dos bairros próximos, enquanto atividade de promoção da saúde e acolhimento. A postura curvada daqueles trabalhadores me incomodou. Os fotografei com o intuito de discutir a questão nas aulas de alunos de graduação, residência e pós-graduação, considerando a intersecção entre Saúde da Família e Saúde do Trabalhador. Nos aproximamos deles, os ouvimos e planejamos introduzir alongamento e ginástica postural na jornada de trabalho.
Uma das mulheres carrega um recipiente semelhante a uma moringa para água. Representaria uma trabalhadora de apoio que garantiria a ingesta de água daqueles que suam no cultivo e colheita?
A outra mulher, muito magra, aparenta estar muito cansada e repousa sentada sobre três sacos de café. Sua condição sugere ser pesado o trabalho do trabalhador rural. Usa um lenço que protege cabeça e pescoço, como nossa guia Andréa, por ocasião de interessantíssimo roteiro pedagógico, técnico, histórico e cultural, indo do genoma à xícara, em Espírito Santo do Pinhal.
Na capital estadual do café, nos contrafortes da Serra da Mantiqueira, deparou- se-me uma outra escultura, intitulada “O colhedor de café”, da artista Lecy Beltran. Inaugurada a 21 de dezembro de 1996, esta obra instalada em frente ao Palácio do Café, mostra um lavrador usando a peneira para separar os frutos de café das folhas e outras impurezas. Também está descalço, com os pés grandes, usando uma camiseta sem mangas, um lenço no pescoço e um chapéu de abas curtas levemente elevadas. As pernas semifletidas dão ideia de esforço e movimento.
Os pés grandes descalços convidam o visitante a refletir sobre os efeitos dessa condição no corpo do trabalhador rural. Me recordo do relato de uma senhora negra, bisneta e nora de escravos. Ela contou que seu avô trabalhou numa fazenda e passou a vida descalço; nunca calçou sapatos ou botas. Isso fez com que a pele da planta do pé ficasse espessa e muito dura. Certa vez, pisou inadvertidamente sobre uma cobra que picou a planta de seu pé, porém foi incapaz de fazer suas presas perfurarem a pele. Ele, assustado, esmagou a serpente com seu calcanhar. Felizmente, a picada veio de baixo para cima e não atingiu o dorso do pé, tornozelo ou perna, locais mais comuns de acidentes ofídicos.
A visita a esses "museus" de esculturas ao ar livre desencadeou uma série de reflexões sobre a saúde dos lavradores de café, apontando para uma possível e profícua intersecção entre Arte e Saúde do Trabalhador. Daí resulta proposta de inserir a Arte no ensino desse campo da Medicina, o que pode ser alcançado, por exemplo, com ações de extensão universitária.

Rubens Bedrikow 
Campinas, abril de 2024.