quinta-feira, 25 de julho de 2019

Bela mulher

Diante de mim, uma mulher por volta dos cinquenta, cabelo castanho escuro, sorriso largo e olhos esverdeados, não muito claros. Sua beleza saltava aos olhos. E começava nos seus olhos. Tudo ficou mais claro quando contou que seu pai tinha ascendência libanesa. A beleza da mulher árabe acompanhou as diversas ondas migratórias desse povo fiel a valores como a família, a moral e hospitalidade. Ao que consta, o Imperador Dom Pedro II, em viagem diplomática ao Oriente Médio, acabou fascinado pela cultura local e seduzido pela cordialidade do povo árabe, impulsionando a emigração ao Brasil. Libaneses e sírios cristãos, em particular, valeram-se da emigração, em diferentes momentos de sua história, como forma de escapar a perseguições estúpidas e violentas. Assim, no final do século XIX e início do XX, espalharam-se pelo mundo, tendo como um dos destinos principais o Brasil. Não vieram para a lavoura, mas sim como mascates, em sua maioria. Enquanto conversávamos, não havia como desviar meu olhar que teimava em buscar os olhos da neta do libanês que montara uma loja de tecidos em São Pedro, no interior do estado de São Paulo. Não foi apenas o imperador que sucumbiu ao encanto árabe. Uma jovem brasileira, antes que pudesse dizer não, estava casada com aquele jovem simpático, alegre, que tão bem levava as palavras, envoltas naquele sotaque charmoso. A eloquência do rapaz, indiscutível na arte da venda, envolveu aquela jovem tanto quanto os lindos tecidos que recebia como presente. Ele, por sua vez, também não resistiu ao belo sorriso da moça que lhe daria treze filhos. O penúltimo gostava de futebol. Uma partida em Laranjal Paulista selaria seu destino. Já nem se recorda do resultado, se ganhou ou perdeu. Guardou na memória apenas a imagem da jovem filha de italianos que cruzaram para sempre os muros de Lucca após conversarem com Deus, na Igreja de San Michele. Precisavam de forza para rumar ao desconhecido longínquo, na esperança de dias sem frio ou fome. O vapor partiu cheio, lotado, e os beliches tão próximos uns dos outros que a respiração do passageiro ao lado podia ser tão incômoda quanto o calor quase insuportável. Alguns preferiam descansar no convés. A travessia foi mais penosa e demorada do que imaginaram. Finalmente, o desembarque e a longa espera pelas bagagens. Mas não era o fim da viagem. Tinha o trem. Lotado, alguns ficaram sem assento. Agora sim, a Hospedaria no planalto. Mas qual seria o destino? Era o que se mais conjeturava nas conversas dos alojamentos. O trem da Sorocabana partiu e dentro dele os valentes italianos dispostos a enfrentar a terra rossa e os perigos degli serpenti velenosi. Algumas horas e o trem começa a reduzir a velocidade onde parecia não haver nada. Finalmente, avistou-se a torre da antiga igreja de Laranjal Paulista. Deus estava com eles. A lavoura de café os esperava. Depois veio o algodão, o feijão e o milho. Quem poderia imaginar que o café acabaria e que la nipote sarebe sposare il giovane dal Libano!    
As mulheres árabes sabem que são os olhos que primeiro atraem os homens. Por isso, conhecem tão bem a arte da maquiagem, em especial o escurecer das pálpebras, fazendo os olhos parecerem maiores, mais brilhantes, sedutores.
Observando com mais cuidado constatei as pupilas amplas, como duas janelas arredondadas. Olhei por entre elas, bem no fundo, na expectativa de conhecer por dentro minha interlocutora. Não sei porque - talvez ingenuidade- , achei que olhando lá dentro viria a saber parte do que ela vivera em meio século de vida. O que estaria guardado ali?
Surpresa foi descobrir que lá dentro era ainda mais belo. Os olhos eram duas armadilhas hipnotizadoras. Agora estava eu totalmente paralisado, pronto para descobertas mais profundas.
Exibia felicidade, alegria com as conquistas pessoais e profissionais. Fizera viagens a lugares muito bonitos - provavelmente herança do gosto pela aventura dos ancestrais imigrantes. Gostava de ser livre. E era. Tem em alta estima os amigos. Fui paulatinamente entendendo a razão do belo sorriso.
De repente, mais lá no fundo, enxerguei algo que se mexia. Lá dentro dos olhos, algo inquieto, talvez pedindo para ser liberado. Cutuquei um pouco, sacudi cuidadosamente e ela foi se mostrando, mais bonita ainda. O que por fora já me seduzira, a ponto de me paralisar, não era nada se comparado com o que encontrei lá dentro.
Como muitas mulheres, sonhou com um companheiro que lhe perguntasse como foi seu dia, que lhe oferecesse flores, que passeasse com ela segurando sua mão. Infelizmente, como muitas mulheres, o príncipe que escolheu era um ogro. Em vez da pergunta esperada, ouviu gritos. Em vez das flores, safanões e tapas. Em vez da mão, puxões de cabelo. Hematomas, lágrimas, choros. Sofrimento quieto, silencioso, solitário, escondido do filho e pais. Até quando a dor? Tempo demasiado longo. Mais que a travessia do oceano. Mais que a viagem de trem. Mas Deus estava com ela. Um dia, a liberdade. Adeus o sonho. Recomeçar sozinha. Responsabilidade infinita pela criação do filho. Tem que dar certo. Não importa se trabalha o dia todo. Se não tem com quem compartilhar. Sem que se desse conta, a determinação de seus ancestrais se fez presente. Passou pelos obstáculos, deixando os momentos de grande sofrimento escondidos sob as conquistas mais recentes. 
A notícia do câncer de mama, a mastectomia, a quimioterapia desafiaram mais uma vez sua beleza. E se eu morrer, o que será do meu filho? Medo. Muito medo. Com quem conversar, chorar, gritar? Mas Deus estava com ela. Pausa para tratamento. Hoje, o medo de morrer está apequenado sob as alegrias do dia-a-dia. Diz que está melhor, que vive mais feliz depois do câncer. Resiliência à doença. Atualmente, tais lágrimas escorrem para dentro e não para fora, serenamente. 
Todos os dias, antes de sair para o trabalho, passa na casa da mãe a fim de checar os comprimidos e deixar o almoço. Cuidadora dedicada. Rotina, compromisso com mais essa missão, rotineira e permanente enquanto durar. Amiúde solitária. O pai descansou antes.
A bela mulher, de olhos esverdeados, sorriso largo, cabelos castanhos, escondia dentro de si uma beleza pura, densa, só percebida ao se olhar através das pupilas que se dilataram para mim.
Depois desse encontro, me pus a pensar sobre o que é a beleza. 
Como médico, me perguntei o que a anatomopatologia, a patofisiologia, as neurociências teriam a dizer sobre a beleza, sobre a razão do ser humano ter esse tipo de sentimento. O desenvolvimento da neurofisiologia e da neuroanatomia, sobretudo com a descoberta de neurotransmissores, fez alguns cientistas acreditarem que a explicação racional estaria próxima. O substrato anatomopatológico ainda é desconhecido, mas  existiria. Simplesmente ainda não dispomos de formas de conhecê-lo.
A beleza, do ponto de vista da Biologia, serviria à perpetuação das espécies. O pavão, por exemplo, lança mão da sua beleza para seduzir a fêmea. Outros pássaros  e peixes agem da mesma forma. A beleza nada mais seria que uma estratégia de sobrevivência de espécies. Seria assim com os Homo sapiens? Por isso os homens não resistem à beleza feminina? Não sei. O que sei é que esse jeito de olhar a beleza lhe retira o que tem de mais belo.
A sensação de beleza ao ler um verso, ao contemplar um quadro, ao ouvir um trecho musical aparentemente nada tem a ver com a perpetuação das espécies. Assim, suponho que não é na ciência que encontrarei a resposta sobre o que é a beleza.
A Filosofia parece ajudar melhor. Para Platão, a percepção da beleza dá origem à anamnese, a recordação de um contato prévio com o universal, o real ou, numa palavra, com as formas. A beleza é suscetível a manifestações cada vez mais elevadas e, uma vez apreendida, instiga o eros ou a paixão que compele a alma a uma ascensão espiritual, uma viagem de conhecimento combinada com amor. 

A teoria platônica explica melhor a experiência que vivi ao, uma vez hipnotizado pela beleza externa, olhar dentro dos lindos olhos esverdeados.

Um comentário:

  1. Queria realmente fazer algum comentário! Mas o que li me deixou sem fôlego, de tão lindo, maravilhoso e extraordinário!! Parabéns Rubens Bedrikow!! Att.Vera Lúcia de Freitas.

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