domingo, 31 de maio de 2015

Só rindo

A encontrei já sobre a maca, na sala de emergência, coberta do pescoço aos tornozelos, deixando os pés expostos. Na casa dos dezessete anos, magra, pequena, clara, lábios grossos, cabelos castanhos e olhos grandes. Não quis ou não conseguiu dizer seu nome. Estava ali porque havia discutido com a mãe. Bate-boca descontrolado, exaltado, capaz de deixá-la muda. O sofrimento parecia demasiado grande para aquela alma ainda imatura. Deixara de falar e até de se mexer. Os familiares assustados correram com ela até o pronto socorro. Não suportavam vê-la esvanecida, indiferente. Contavam com a ciência para recuperá-la.
A medicina científica tem solução para quase tudo que consegue nomear. A jovem parecia combinar com transtorno de conversão, o que, no passado, era chamado de histeria, condição estudada por Freud e Charcot. Ali, no pronto socorro, onde amiúde espera-se soluções rápidas, o que poderia eu fazer?
Decidi dar-lhe tempo ao invés de impingir-lhe uma terapia qualquer. Nenhuma prescrição. Nenhum medicamento. Apenas um pouco de paciência para que os pensamentos e as emoções se re-acomodassem. Não deu certo. Nenhuma palavra. A jovem seguia quieta e imóvel.
Me aproximei do seu rosto para poder conversar em voz baixa, sem que os técnicos de enfermagem ou os demais pacientes ali presentes escutassem. Talvez assim, no tête-a-tête, ela começasse a falar. De perto, percebi lágrimas. Sem força para secar os olhos, as lágrimas iam se acumulando, encharcando os olhos. Fiz algumas perguntas, num tom de voz suave, acolhedor. A conversa, e não os medicamentos, soava mais adequada. O máximo que consegui foi o esboço de um tímido sorriso que se desfez antes mesmo de nascer.
Impotente, sentei sobre uma cadeira ao pé da maca, na espera de mais alguma inspiração. Fitei seu pequenos pés. De repente, cogitei, mesmo que de forma insensata, fazer-lhe cócegas nos pés. Desde Darwin, já se conhecia o papel das cócegas nas relações sociais, mas nunca ouvira falar de seu emprego no tratamento de algum mal. 
Comuniquei minha maluca decisão, tanto à jovem como aos profissionais de saúde presentes. Perguntei se alguém tinha uma pluma. Brincadeira! Peguei uma gaze e passei a roçar levemente a pele da planta dos pés.

A jovem sentou na maca, mudou a fisionomia e começou a rir. Desceu e partiu na companhia da avó.

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Desgosto

Peço permissão pra mode contar uma prosa que levei com um cumpadre muito do sabido, lá pros lado do Mário Gatti, enquanto nóis aguardava o dotô. 
Nasci em Caculé, no sertão da Bahia. Bisneta de escravo fugidio que perambulava pelos lado da lagoa. Já tô véia, muito sofrida. Pus no mundo dezesseis fio, mas só dez vingô. O mais moço arribô em Campinas, se amancebô e montô famia. Esse ano, vai sê avô. É por isso que eu tô aqui. Pra vê meu bisneto. Já faz trêis mêis que arribei. Meu marido, o Sinval, aquele caba safado, partiu dessa pra mió há muitchos ano. Foi meu único home. Era teimoso que nem um jumento e nunca foi nas consurta com os dotô. Tinha pressão arta, mas num tomava os comprimido. Aí, um dia, acordô de madrugada, sentô na bêra da cama, ponhô a mão no peitcho, e disse: “Ô Gustinha, eu te amo”. Caiu e nunca mais levantô, nem falô. Só carregado pelos companheiro, prá dentro do caxão. Foi a única vez que ele disse que me amava. Meus fio já tão tudo criado e eu posso ficá por aqui o quanto quisé. Quase todo dia, eles liga de lá e pede pra eu vortá, com medo da dengue que eles escutcha no rádio e na televisão. Parece que esse ano a dengue está fraca lá na Bahia, mas tá fea aqui em Campinas. 
- A senhora vai passar com o doutor?
- Cumé? - Levei foi um susto. Não esperava a pregunta. A sala tava apinhada de gente, até do lado de fora. Eu, que vou morrê dipressa, consegui sentá. Minhas perna tava só o bagaço, num guentava mais caminhá nem me sustentá. Empareiado comigo, um cabôco de cabelos branco, cabeça chata, pescoço curto. Foi ele que puxou a prosa. 
- Eu perguntei se a senhora está doente e se também aguarda a consulta - insistiu o cabôco.
- Não, eu vim acompanhá a nora do meu fio. A buchuda pegou uma quentura; tá que é só o buraco e a catinga. Uma leseira da peste. Num qué cumê nem bebê.
- Deve ser a dengue, senhora. Qual a sua graça? - ele perguntou.
- Maria Augusta, mas meu povo me chama de Gustinha.
- O meu é Antão, mas todo mundo me chama de Antonio. É costume, lá na minha terra, em Vitória da Conquista, trocar os nome das pessoas. Eu sempre chamei minha mãe de Graça, como todo mundo, a vida toda. Só quando ela partiu, que eu precisei providenciar o enterro, é que descobri o verdadeiro nome dela: Raimunda. Meu pai, Manoel, veio de Portugal lá pelos anos de 1930. Tinha um armazém onde vendia de tudo. Se encantou com Graça, a moça mais linda da região - ao que parece, descendente dos Kamakan-Mongoyó - e não sossegou enquanto não se casou com ela. Tirou minha mãe da roça e fizeram doze filhos. Fez questão de que todos estudassem. Eu cursei jornalismo. Agora, já estou aposentado, mas leio jornal e escuto as notícias no rádio todo dia.
- O sinhô tá com dengue, né não?
- Acho que sim. Faz dois dias que a cabeça dói, atrás dos olhos, o corpo quente, muita fraqueza e não consigo nem olhar para a comida. Fui ao postinho e fiz exame de sangue. Minhas plaquetas estão baixas, por volta de 80.000. Me disseram que não era grave, mas que eu precisava ir ao pronto socorro, no final de semana, já que o postinho não abre. Fui ao Anchieta, mas, chegando lá, antes mesmo de fazer a ficha, já informaram que não haveria médico. A gente, doente, com o corpo doido, muita fraqueza e ardendo em febre, não tem nem coragem para discutir. O que pode fazer? Saí de lá e caminhei até o terminal. Fui pegar o ônibus. Por sorte, já estou velho e não pago passagem, mas tem gente que precisa pagar. Às vezes, não têm recurso e simplesmente retornam para casa, sem consultar. 
- Oxente, seo Antonho, num é que cum nóis foi parecido, num sabe? Meu fio Zezinho ficou foi invocado quando trombô com a porta do São José fechada. Ele tá aperreado com a nora que num consegue enchê o bucho e num sai da cama. Avalie só!
- Dona Augusta, eu li no jornal que o São José só vai voltar a funcionar lá pro fim de abril, quando o pior dessa epidemia tiver passado. Enquanto isso, o povo precisa vir até aqui, o Mário Gatti, e esperar várias horas, doente, com dor e febre. O que me deixa mais revoltado é que os jornais não dão destaque para o sofrimento do povo. Tratam disso como se fosse apenas uma questão banal de atraso. Acho que é porque não incomoda os ricos. Não significa nada para quem não usa o serviço. Não imaginam como é pegar ônibus de noite, com dor e febre, para ir ao médico longe de casa. Essa reforma já dura seis meses, mas poderia ser completada em dois. Parece que, no começo, apenas dois pedreiros trabalhavam ali. Um descaso com nossa gente da periferia.
- Vixe, o sinhô tá é muitcho apurrinhado com esse guverno da moléstia. Vai tê um infarte nestante. É mió sossegá o facho. 
- Me desculpe. A senhora tem razão. Tal como o Patativa, estou é desiludido nesta vida de tanto lero lero.  
- Oxe, calada eu também num fico não; num guardo silenço. As oturidade só qué é enricá. É uma farta de vergonha. Eles num tem iscrupo de fazê nóis sofrê. Os miserave ingruvatado tem boa vida, tem carro de passeio, faz comiço e sermão. Eles tão no jorná e nóis não. Nóis num têm como recramá dos consurtoro que num abre.
- É isso que me dói mais, a imprensa do lado do rico e cega para o pobre. Eu, que era jornalista, chego a ter dor no peito quando penso nisso. 
- Aff Maria, é mió se aquetá. Meu falecido Sinval começô com essas dô no peitcho e, de supetão, me dexô viúva. 
- Estou cansado. Nem sei se quero seguir vivendo. O povo que não consegue atendimento está desiludido. Sabe que se reclamar, no dia seguinte a imprensa solta uma explicação ou nova promessa e fica parecendo que está tudo bem. Só quem levou cerca de uma hora para chegar aqui e espera durante horas, com febre, dor, fraqueza é que sabe qual é o verdadeiro sofrimento. Infelizmente, nem os criadouros dos mosquitos foram eliminados a tempo.   
- Iapôe? E é verdade que essas muriçoca da dengue aumentaram muitcho este ano? - perguntei. 
- É sim. Parece que o combate ao mosquito da dengue tem sido negligenciado. Meia boca, como diz meu neto. Eu sempre tive ódio desse mosquito. É coisa antiga, da família. Meu pai, nascido em Lisboa, sempre torceu para o Benfica e não deixava de ir ao Estádio da Luz quando visitava os irmãos. Uma vez, depois de seu Glorioso bater o rival Sporting, no mais violento derby da capital portuguesa que se tem notícia, foi agredido até desmaiar. Quando acordou, o que ficou na memória foram aqueles inimigos listados atacando ele. Desde então, ficou com raiva até de zebra. Se estivesse vivo, com certeza faria de tudo para dar cabo desses mosquitos rajados. E pensar que estou aqui, morrendo, por causa deles.  
- Arre égua, que diabeisso, seo Antonho! O sinhô num pode morrê não. É muito estudado e entende das coisa. Nóis carece é de cabra que nem o sinhô, que não se decha botá cabresto e nem engabelá. O sinhô num arrudeia os probrema e com muitcha inteligênça dá essas lição de sabença. 
- Acho que já vão me chamar - disse ele.
Quando ouviu seu nome, se alevantô, pôs a mão no peitcho e disse: “Gustinha, obrigado por prosear comigo”. Desabô e só saiu dali foi carregado pelos enfermero. 
Morreu de desgosto. Mas os dotô e as oturidade vão dizê que foi a dengue.



Maria Augusta Santina de Deus

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Koh’l: uma boa idéia


Koh’l, kuhl, kohol, kahal ou khur é o nome dado ao fino pó negro que as mulheres árabes utilizam para escurecer as pálpebras, fazendo os olhos parecerem maiores, mais brilhantes, sedutores. Tradicionalmente trajadas de forma a esconder quase todo o corpo e a parte inferior da face, são seus olhos negros que de primeiro atraem os homens. O sombrear, no entanto, não parece se limitar a instrumento de sedução, haja vista que protege contra o brilho excessivo do sol forte do deserto, legitimando seu uso por parte dos homens. Ademais, teria aquele pó o poder de prevenir determinadas doenças oculares. Provavelmente seja esta a explicação mais coerente para justificar a técnica tradicional de aplicação do koh’l: introduzir o bastão aplicado esculpido em madeira, cuja extremidade arredondada foi previamente embebida em óleo de oliva, no koh’l em pó, segurá-lo paralelo ao olho fechado e, começando da parte medial deste, deslizá-lo entre as pálpebras de forma a tingir as raízes dos cílios e embarrar delicadamente o globo ocular.
As tenuíssimas partículas de koh’l ou al-koh’l são constituídas de antimônio, um metal branco azulado utilizado como anti-séptico pelos egípcios. Talvez a crença na proteção contra as doenças oculares seja fruto da observação, pelos povos da Antiguidade, dessa propriedade do pó de antimônio.
A palavra al-koh’l era usada pelos alquimistas árabes para descrever finos pós, alguns dos quais obtidos através do aquecimento de determinadas substâncias até a separação dos gases, seguida de resfriamento. O termo foi generalizado para designar substâncias provenientes da destilação.
No século XVI, Theophrastus Bombastus von Hohenheim, conhecido como Paracelsus (1493-1541), famoso alquimista e defensor da terapia química, utilizou pela primeira vez a palavra álcool para designar o “espírito do vinho”. O vocábulo provém de al-koh’l e designa o composto orgânico descoberto ao redor do ano 1100 na primeira escola de Medicina do ocidente, em Salerno (Itália), e que, atualmente, é utilizado como solvente, combustível, bebida e anti-séptico.
Portanto, a palavra álcool deriva daquele pó estribado chamado pelos árabes de koh’l e utilizado para escurecer as pálpebras.
É curioso que a marca de uma das cachaças mais populares no Brasil, a aguardente Pirassununga 51, carrega no seu nome o número atômico do elemento antimônio, cujo símbolo é SB, do latim Stibium.
Se não fosse coincidência, seria uma boa idéia.

terça-feira, 14 de abril de 2015

A maior epidemia da história de Campinas, em 2015

A observação participante é um bom método de obtenção de informações, partindo do olhar do observador, inserido no meio onde o fato ou fenômeno a ser estudado se dá. Uma vez imiscuído entre os atores do processo, sua presença praticamente deixa de chamar a atenção, permitindo-lhe se locomover quase que imperceptivelmente. 
Minha condição de observador participante decorre do fato de atuar como médico em unidades básicas de saúde (UBS) e em serviços de urgência no município de Campinas desde 2001. Nessa condição, observei, “de dentro”, as principais epidemias de dengue que assolaram essa cidade.
Em 2014, Campinas enfrentou a maior epidemia de dengue até aquele ano. Foram mais de 42.000 notificações. Em 2015, o número de casos foi maior em cada um dos três primeiros meses, segundo dados fornecidos pelo Departamento de Vigilância em Saúde (DEVISA). Essa informação, por si só, nos faz supor que os números de 2014 poderão ser ultrapassados. Por outro lado, alguns gestores apostam na antecipação do declínio da epidemia que, no ano passado, invadiu o mês de junho. Ainda que os números finais fiquem aquém daqueles de 2014, posso afirmar ser esta epidemia, de 2015, a maior da história da cidade. Exponho, a seguir, os argumentos dessa minha afirmação:
  1. Os casos atendidos mostraram-se clinicamente muito mais graves. Os pacientes apresentam-se muito mais desidratados. Basta olhar a língua dos doentes: extremamente seca e rugosa, muito além do que costumávamos encontrar. Repercussão mais intensa na pressão arterial, isto é, hipotensão mais acentuada. A grande maioria dos “dengosos” relatam fraqueza intensa, adinamia, falta total de apetite e dificuldade até mesmo de ingerir líquidos, acompanhando as dores moderadas a intensas. Diferentemente de anos anteriores, são muito mais frequentes os eventos hemorrágicos como epistaxe, gengivorragia, sangramento vaginal, entre outros. Os desenlaces fatais, infelizmente, já fazem parte do noticiário também este ano. Alguns doentes (poucos), uma ou duas semanas de recuperados, retornam com sintomas sugestivos de dengue, o que deixa a impressão de que, neste ano, mais de um sorotipo de vírus circula na cidade, suspeita que precisa ser investigada.
  2. A duração dos episódios mais longa. Os pacientes demoram, de regra, mais tempo a se recuperarem, sendo comum a necessidade de afastamento de suas atividades cotidianas, incluídas aí as ocupacionais, por cerca de 10 dias. Os últimos dias do quadro tendem a cursar com exantema e prurido exuberantes, causando desconforto de outra ordem aos enfermos, já aliviados das dores mais incômodas nessa fase da doença.
  3. As alterações do hemograma têm sido mais acentuadas. Valores muito baixos de plaquetas, inferiores a 50.000/mm3 deixaram de ser excepcionais e menores que 10.000/mm3 já não surpreendem. Também encontramos com relativa frequência número de leucócitos ao redor de 1.000/mm3
  4. Os pronto atendimentos (PAs) superlotados, com pacientes aguardando inclusive do lado de fora do estabelecimento. Amiúde, pessoas com febre aguardam, por tempo demais, na sala de espera, para receber hidratação e anti-térmicos. Isso porque as salas no interior das unidades são insuficientes para acomodar o volume de doentes que necessitam desse tipo de terapia. O que mais se observa são doentes recebendo soro fisiológico pelas veias do braço. Um ao lado do outro, em cadeiras e poltronas dispostas lado a lado, cada um com uma bolsa de soro sobre suas cabeças. Os “motoboys” encarregados de levar o sangue colhido ao laboratório deixam os PAs “carregados”, levando nas caixas térmicas quase que exclusivamente tubos com tampa roxa (de hemograma), numa proporção impensada até há poucos meses. Um funcionário é destacado exclusivamente para realizar as notificações. Diante de sua mesa, em alguns momentos do dia, os pacientes fazem fila para a prova do laço e o preenchimento da ficha de notificação. O vai-e-vem frenético da equipe de saúde durante todo o dia e grande parte da noite não deixa dúvida de que estamos diante de uma grande epidemia. A imensa maioria dos pacientes são orientados a retornar no dia seguinte, seja no PA ou na UBS, para reavaliação clínica e laboratorial. 
  5. As UBS tiveram que mudar sua rotina. Antes mesmo de abrirem as portas, já há fila do lado de fora. A imensa maioria dos que buscam atendimento queixam-se de febre, dor nos olhos, cefaléia, fraqueza intensa e inapetência. Aumentou, e muito, o número de doentes que recebem hidratação por via intravenosa nas UBS. Cadeiras comuns, odontológicas e poltronas ficam quase que ininterruptamente ocupadas pelos desidratados enfermos. Amostras de sangue são colhidas e enviadas para exame diariamente. Da mesma forma, os resultados são procurados e impressos diariamente, a fim de nortear as decisões clínicas. 
O quadro descrito acima é muito diferente do que observei nas epidemias anteriores, quando o número de doentes era alto, mas a gravidade menor. Diante dessa nova situação, os profissionais de saúde têm se desdobrado para dar conta do desafio que lhes apareceu. Chega a ser emocionante observar o trabalho intenso desses profissionais, diagnosticando, examinando, pegando veias, colhendo sangue, administrando soro, conversando com os doentes. Muito diferente da imagem que a mídia tenta passar desse Sistema de Saúde universal. Infelizmente, um dos pronto atendimentos mais importantes, localizado do distrito mais populoso da cidade, permaneceu fechado, para reforma, durante a maior parte da duração da epidemia.  Moradores dessa região têm sido obrigados a deslocamentos mais longos e enfrentam o incômodo de esperar mais tempo por atendimento sentindo dor, apresentando febre, desidratando-se nas salas de espera dos serviços de urgência. Assim como em 2014, os serviços municipais de urgência funcionam com número insuficiente de profissionais, sejam médicos ou de enfermagem. Por isso, o tempo de espera inaceitável em vários períodos.  
As razões de tão grande epidemia são várias e não somente única. Não me parece que a população mudou tanto assim o modo de armazenar água nos últimos anos. Houve sim uma mudança por conta da crise hídrica, mas não a ponto de explicar a eclosão dessas duas últimas epidemias - 2014 e 2015 - e em várias regiões do país. Atribuo tais epidemias, causadas por insetos-vetores, mormente ao aquecimento global, principalmente se admitirmos que temperaturas mínimas elevadas cursam com epidemias de dengue mais devastadoras, assim como ocorreu com a febre amarela urbana no passado. 
Enfim, esta parece ser realmente a pior epidemia da história de Campinas, excetuando-se, talvez, a epidemia de febre amarela que assolou a cidade no início dos anos 1890. 
Devemos aprender com esta epidemia para planejar o futuro. Preocupa a provável chegada da Chikungunya no Sudeste, onde praticamente ninguém tem proteção imunológica e quase todos correrão o risco de “tornarem-se dobrados”. Investimento na Atenção Básica e na Urgência, além de ações ambientais podem e devem ser prioridade. Sugiro, neste momento, mais do que nunca, ouvir (de verdade) os usuários, respeitar os conselhos locais, distritais e municipal, mas também em todos os encontros, clínicos ou outros.

domingo, 15 de fevereiro de 2015

Sertão do Rosália



Embora fitasse seus sábios e serenos olhos nos demais membros do grupo, o que enxergava eram aroeiras, mandacarus, jumentos, bois e casas de farinha. Os versos rimados e até engraçados do folheto cordelista a conduziram do salão comunitário para a roça nordestina da sua infância e juventude.

  Meu velho sertão querido
Sertão das minhas lembranças
Sertão das serras cinzentas
Sertão das minhas andanças
Onde o cabôco sofrido
Perde suas esperanças.

- À medida que o senhor foi lendo, um filme foi passando na minha cabeça, engatou Alice. Eu trabalhei numa casa de farinha. 

Lá no forno se mexia
Aquela massa branquinha
Ficava mole e gostosa
E eu provava bem quentinha
Eu morro, mas não me esqueço
Duma casa de farinha.

- Eu tocava o jumento depois de prender o caçuá de um lado e do outro da cangalha, sobre a qual ainda botava uma criança. Dentro do caçuá, a gente punha milho e farinha. Criei meus filhos ali. Era sofrido, mas eu gostava. 

O caçuá do sertão
É feito pra carregar
Batata doce e mandioca
Pra todo e qualquer lugar
Unido com a cangalha
Pro jumento trabalhar.


O caçuá é amarrado
Na cangalha do jumento
Tem um suado por baixo
Pra não fazer ferimento
Se ferir só um pouquinho
Ele dá coice no vento.

Não foi apenas Alice que se emocionou com suas reminiscências longínquas.
Com um largo e espontâneo sorriso, Odete intercalou explicações para as palavras e idéias que emergiam das poesias, ajudando os não nordestinos. Levantou-se da cadeira de palha para melhor mostrar como seria o trançado de um caçuá feito de cipó. Ela mesmo os tecia. 

O caçuá se divide
Em testeira, aro e cambão
Atravessando os cipós
Numa outra direção
Todo feito de cipó
Rasteiro lá do sertão.

O caçuá ele é feito
De cipó de cajarana
Pra fazer um caçuá
Leva quase uma semana
Tem que tecer direitinho
Pra ficar muito bacana.

No caçuá se transporta
Mandioca, milho e batata
Feijão verde do roçado
Lá do cantinho da mata
Jerimum e melancia
E o queijo que vem da nata.
Pouco antes, enquanto ainda caminhávamos pela Vila Réggio, próximos à arvore de jambo, Odete puxou cautelosamente Elza a tempo de impedir que pisasse sobre uma cobra. Com grande precisão e agilidade, Virgínia usou seu pequeno guarda-chuva para dar fim ao animal. Por via das dúvidas, acertou as duas cabeças. Também conhecida como cobra-cega, não é peçonhenta, mas tem uma mordida forte e costuma ser agressiva. Além disso, quando morde, deixa a pessoa cega! Mais tarde, vim a saber que a cobra-de-duas-cabeças ou cobra-cega não é classificada nem como lagarto nem dentro do grupo das serpentes, como já foi anteriormente, mas numa sub-ordem à parte, Amphisbaenia. O curioso incidente ofídico provocou temor, caretas, comentários e risadas. Já valera a pena sair de casa - ou deixar o consultório, no meu caso. Na roda, estimulada pelos cordéis, Virgínia relembrou os tropeiros que tocavam jumentos cobertos com capas de couro e carregados com o milho colhido. A madrinha - a mula mais velha - portava o cincerro. Partia à frente, enfeitada com fitas, e puxava a tropa de cerca de cinquenta animais, em direção à feira. Foi fácil visualizar a tropa. Tudo isso graças aos folhetins que Luciana nos trouxera da Bahia.
Dispostos em roda, todos nós sorrimos, suspiramos e cochichamos com o vizinho ao lado. 
Elson também cresceu no sertão nordestino. Tudo aquilo que ouvíamos tinha um significado especial para ele. A vida na roça tinha sido dura, sofrida. As mulheres criavam dez ou doze filhos e nenhum virava bandido ou saia do prumo. Havia grande solidariedade.

As famílias sertanejas
São elas as mais sofredoras
Trabalhando nos roçados
Cultivando as lavouras
Mas às vezes viram vítimas
Das secas devoradoras.

Tudo que vem do sertão
É com muito sofrimento
Limpar roçado e plantar
Depois do desmatamento
E os escravos do sertão
São o boi e o jumento.

Durante cerca de meia hora, deixamos a periferia de Campinas. A viagem pelo sertão baiano estendeu-se ao cearense da menina Leny. 
Eu, nascido na cidade de São Paulo, aprendi tanto! Emocionei-me e passei a admirar ainda mais aquelas pessoas que encontro todas as semanas. Com eles, senti a cultura nordestina - tão esculachada por ocasião das eleições que dividiram o país há poucos meses. Sofrida, resistente, rica, viva. Com toda certeza, os discursos xenofóbicos vieram de pessoas ignorantes e que não tiveram a felicidade de conviver com gente como esses amigos que descobri caminhando e lendo.
           
O Brasil tem seus sotaques
E gírias que só a peste
De Norte a Sul do país
Passando pelo Sudeste*


*Estes versos são do “Dicionário nordestinês” de Izaias Gomes de Assis (Isvá Editora, Parnamirim-RN, agosto de 2014). Todos os demais versos foram tirados de “O caçuar do sertão” de Manuel Silva (Chico Editora, Parnamirim-RN, novembro de 2012).

sábado, 3 de janeiro de 2015

A liberdade clínica

     A dor dava ares de muito forte. Inquieta, agoniada, a jovem se contorcia e não encontrava conforto sobre a estreita maca. Ora sentada, ora deitada, gemia por causa da dor no peito. Tanto a doutora como os auxiliares e enfermeiros, de repente, se sentiram profundamente implicados. Tamanho sofrimento lhes demandava atenção imediata. Um eletrocardiograma foi produzido de pronto e o soro contendo analgésico ganhava a veia do braço antes mesmo do exame concluído. A possibilidade de dor torácica provir de infarto do miocárdio, faz com que o registro da atividade elétrica do coração seja muito disponível nas unidades de saúde e amiúde realizado em situações como essa. Os olhos da doutora se detiveram no segmento ST - liga a onda S à onda T - do traçado. Buscava desnivelamento - indicativo de corrente de lesão no miocárdio - fase aguda de infarto.  A dúvida: haveria algum desnivelamento significativo na derivação V3? A resposta seria dada fora daquela unidade básica de saúde, porquanto decidiu-se transferir a jovem, ainda com dor violenta, a um serviço de urgência. 
O médico do pronto socorro descartou problema cardíaco e concluiu por alteração pulmonar após examinar a radiografia de tórax. A paciente obteve alivio da dor, mas seguia preocupada, agora com uma possível doença no pulmão. Mais tarde, descobriria que o pulmão era, pelo menos radiologicamente, normal. Residia próximo ao centro de saúde e a convidei a relatar o que lhe sucedera antes de começar a dor. 
Ficara viúva recentemente. O marido, que se tornara dependente químico, pusera fim às economias da família antes de partir. Sem o companheiro, viu-se obrigada a deixar a casa de aluguel e trilhar, com seus dois pequenos filhos, o caminho de volta à casa dos pais. Apesar da generosa acolhida, deu-se conta que não dispunham de renda suficiente. Apenas a mãe estava empregada. O pai aposentado por doença e o irmão sem trabalho. Outras duas crianças também dependiam do minguado recurso familiar. Discussões e brigas familiares passaram a fazer parte da rotina de todos. A jovem viúva mostrava-se angustiada com o grande estorvo financeiro, a dificuldade de vaga para os filhos na creche e a falta de perspectiva de emprego e, por conseguinte, de independência. A narrativa desse momento de sua vida, parecia trazer-lhe algum sossego. Encerrou concluindo que a dor no peito, provavelmente, decorria das recentes mudanças e desafios. Acreditava não sofrer de nenhuma doença orgânica. Nisso, parecia ter razão.
O cenário dessa conversa era o pequeno, mal ventilado e pouco iluminado quarto da casa improvisada para servir de centro de saúde do bairro. Estávamos tão próximos que podia sentir o cheiro de cigarro nos seus cabelos e roupas e perceber marcas na face sofrida e deprimida. Seu olhar vazio não condizia com seus vinte e poucos anos. Eu me esforçava em focar minha atenção no discurso da magricela, pálida e desanimada pessoa que buscava força interior para retomar a via de um sonho abruptamente interrompido. Enquanto isso, me indagava como a jovem enxergava a intervenção da equipe de saúde? Os detentores do saber médico lhe impuseram analgésico, eletrocardiograma, transferência em ambulância, atendimento em pronto socorro e radiografia de tórax. Decisões em consonância com a clínica hegemônica, respaldada pela ciência moderna.  No entanto, nada disso lhe trouxe alívio. Na verdade, serenou seu espírito apenas quando falou da sua vida. Quanto mais discorria sobre a história dessa parte da sua vida, mais mitigava o sofrimento interior e alijava a dor. Falar de si mesma ajudou-lhe mais que analgésicos e exames. Isso vai de encontro ao que preconiza a Clínica Ampliada: tirar o foco do biológico e não se limitar à doença, mas considerar também a subjetividade e a singularidade do indivíduo. Acrescentaria que a solução de numerosos problemas com os quais se deparam os profissionais de saúde está na história de vida das pessoas e não no desarranjo de seus órgãos. Como no caso da jovem acima, é preciso desobedecer as rígidas regras da consulta tradicional e deixar livre o discurso. Faz-se necessário transgredir os costumes e preceitos que regem a anamnese e protocolos de atendimento impostos pela ciência moderna. Liberdade para falar, capacidade de ouvir, possibilidade de criar novas soluções. Eis uma receita capaz de recuperar a potência da clínica sufocada por saberes científicos normativos.            


Rubens Bedrikow
Campinas, 21 de março de 2010.

A clínica, passo a passo

     Céu azul. Quase sem nuvens, para desespero nosso, convivendo com clima seco desde o final do ano. Terra vermelha, fina, recobrindo as folhas mais rasteiras. O arrasto dos calçados erguia a poeira até olhos e narizes. O horário de verão encerrara-se há menos de duas semanas. O sol surgia cedo. Aquele início de manhã prenunciava dia quente. Aos poucos, as pessoas iam chegando. 
A lépida idosa empunhava a bengala e dava a outra mão para a filha. Sua marcha era ágil, leve, pouco usual entre os que atingem os oitenta e oito. Dizia que os parentes tinham o hábito de morrer cedo, mas ela teimava em viver. Sua filha, sorridente, pele morena, lisa, agia como cuidadora atenta e carinhosa. Retribuía generosamente os cuidados que recebera na infância. Ajuntaram-se aos demais, reunidos para mais uma caminhada pelo bairro. 
Uma menina alegre, pura, ávida por conhecer plantas e bichos, escolhera acompanhar a avó em vez de dormir até mais tarde. Esta, por sua vez, ao fitar os olhos na neta, exibiu um vistoso sorriso. Vaidosa, bronzeada, com luzes no cabelo, aparentava estar bem consigo mesma. Como foi bom vê-la assim, cheia de vida, recuperada de injusto sofrimento que seu destino lhe impusera por ocasião da doença maligna que consumiu seu marido ao longo de penosos meses. Os olhos, antes lacrimosos, agora iluminavam os espaços por onde transitava. Não era a única. 
O circunspecto cearense sentado à minha frente conhecera infortúnio parelho. A brancura de seus bigodes bastos condizia com as cãs que lhe cobriam a cabeça como uma ligeira pasta de algodão, sem, por isso, subtrair-lhe o aspecto vigoroso e jovial que assumia tão logo entabulava conversação ou punha-se a caminhar. Certamente, na intimidade do lar, nos aposentos que continuava a frequentar, a lembrança da companheira que partira. As caminhadas, o Lian gong, o movimento vital expressivo, no convívio dos camaradas daquele arrabalde, tornaram-lhe possível levantar a cabeça e desdenhar os sintomas depressivos do alvorecer da viuvez. 
Por certo que os bons momentos vividos ali e o desejo de levar a velhice com saúde tornaram certa a presença diária de outro aposentado. As finas pernas daquele neto de imigrantes italianos, que no passado tanto pisaram as roças de café e algodão do interior do estado, estavam agora arqueadas. O andar lento e doloroso dos primeiros momentos do dia expressava a batalha diária contra a artrose, herança familiar que, há vários anos, confinara sua irmã a dois ou três quartos escuros. Ele não. Era teimoso. Coxeava por cerca de um quarto de hora. Em seguida, o corpo quente calmava a dor e lhe concedia o prazer de novamente explorar os caminhos que tanto conhecia. Entre velhos e novos conhecidos, ria e sorria. Fazia questão de, na roda, sentar-se ao meu lado pois, assim, era-lhe possível escutar as leituras, sem fazer caso a seus ouvidos octogenários que reclamavam descanso. Era ele quem puxava o “Pai Nosso”, segurando firme as mãos ao lado, e dava por encerradas as atividades logo após o “Amém”. 
Sob um chapéu de palha com largas abas, a senhora de tez clara, alegre, expansiva, vinha de longe. Falava claro e forte. Destarte, conquistara a simpatia de todos. Introduzira no grupo o costume de saudar o sol. Os participantes, em círculo, davam as mãos e aproximavam-se do centro dizendo “Bom dia sol”. Tradição e misticismo rotineiros. Dada a estiagem, saudou-se a chuva também. Sua filha estreara como poetisa há cerca de um ano, influenciada pelas leituras que usualmente ali fazíamos. Declamadas em voz baixa, suas poesias cuidavam de sofrimento interior. Mexiam com ela e conosco.
O grupo partiu na hora combinada, antes das oito, sob sol ardente. Dois, três, quatro pessoas dividiam as mesmas prosas. Ao todo, eram mais de vinte.
Assim parte o grupo pelas ruas afora…
José junta o passo com João,
que já tinha juntado o passo com Antonio…
E assim vai seguindo o passo a passo percorrendo as ruas,
hora pela terra, hora pelo asfalto…
Como a vida, o trajeto vai mudando
e o passo também…
E o corpo vai se movimentando.
E olhando bem não dá para saber qual parte se movimenta mais,
A língua ou os pés?
E Vera juntou o passo com Maria e lá se vai conversa…
E o corpo vai em movimento com todas as suas peças…
Se a língua não fala, a mente, ao contrário, não para de tagarelar
em mil pensamentos que também vão juntando o passo
e assim vão seguindo muitos pés, muitas línguas e muitas mentes.
E tem o médico que junta o passo
e vai conhecendo histórias que só podem ser ditas
no passo junta passo…
E o corpo vai vencendo a cada andar o seu limite,
afinal, os pés não estão sós,
e um passo junto com outro passo vai criando poder.
Poder para superar, lutar, sentir-se igual e fazer parte.
Ah, mas o doutor, antes atrás da mesa, agora faz parte
porque seus pés estão juntos com muitos pés…
No passo junta passo.
(Maria Leny Freire - agente comunitária de saúde - 2013)

Abacateiro, guaranazeiro, mangueira e jaqueira. O norte, a roça, a infância. A menina provou o fruto do guaraná. Doce, muito doce, mas menos gostoso que o refrigerante. Alguém lhe disse para observar o desenho do fruto no rótulo da embalagem da bebida, no supermercado. Levou consigo alguns. Mais entusiasmada mostrou-se com os abacates que pretendia comer em casa. Um espirituoso brincou que, se ao invés de uma maçã, tivesse caído uma jaca sobre Isaac Newton, talvez ele não tivesse sobrevivido ao trauma craniano para escrever a lei da gravidade. Passeio, brincadeira, atividade física, aprendizado, troca de saberes. Fora da sala de aula.
A mangueira sombreou nossa demora. Água, alongamento e recompactação do grupo que se estendera à medida que avançara. A moça risonha, com traços finos realçados pela maquiagem, amiúde ia à frente. Seu entusiasmo era evidente, mas contava que, no passado, não gostava de atividades físicas. Agora, principiava os dias caminhando, dançando ou alongando. 
Protegida do sol por uma fina sombrinha vermelha, a senhora esbelta, com o característico acento nordestino, espalhava simpatia. Durante sua viagem à Bahia, revendo familiares, relatou orgulhosa suas caminhadas ao lado do doutor. 
Muitos carregavam na memória a nostalgia da infância e juventude no agreste brasileiro. Pés nus, enxada pesada, namoros na roça, corpo afundado no colchão de palha, tênue luz das lamparinas, medo das cobras, bocados de comida amassados com farinha entre os dedos e levados com a mão até a boca. 
Uma cobra passou e se escondeu. Um dos homens a perseguiu, porém, em vão. Mulheres trocaram segredos culinários, especialmente os que levam guizos crotálicos. Homens recordaram as vezes que toparam com animais grandes e perigosos. Filhos haviam sido mordidos. Remédios caseiros e reza. A cidade ficava longe, praticamente inacessível. Felizmente, ninguém morreu.
O doutor não cansava de admirar a riqueza da diversidade ali presente. Durante a caminhada, trocava palavras com aquelas pessoas que já não eram apenas pacientes. Cada um trazia um pouco de seu passado, sabedoria, afeto, medo, esperança. Raramente conversavam acerca de doenças. 
Foi o acaso que levou para dentro do grupo o hábito da leitura após as caminhadas. Um dia, há cerca de um ano, o doutor fez uma brincadeira com o grupo. Pediu para quem fosse nascido em São Paulo ficar à esquerda e os demais à direita. Em seguida, que se posicionassem à esquerda aqueles que haviam trabalhado na roça e os outros à direita. E assim por diante, de forma a todos se conhecerem melhor. Quando pediu que aqueles que gostavam de ler passassem para o lado direito, foi surpreendido pelo senhor que não se moveu. Nunca aprendera a ler. Nesse mesmo dia, o doutor começou a ler. “Amor” e “O barbeiro”, de Luiz Vilela. Junto a eles, declamou Manoel de Barros, Vinicius de Morais, Patativa do Assaré. Leu Machado de Assis, Tolstói, La Fontaine. Naquele dia, recitou “A uma lavadeira”, de Gilka Machado, e, em seguida, pensando na menina ali presente e no passado rural da maioria, escolheu “A aranha e a mosca”, que Afonso Lopes de Almeida escreveu em 1914:

 À beira de larga estrada
Uma aranha tece a teia.
A trama, fina e doirada, 
À luz do sol reverbera…

E a aranha, encolhida e feia,
Fica à espera.

Voa ali, pousa adiante,
Rápidas curvas descreve…
Ébria de luz, fulgurante,
Segue a própria fantasia!

Céu azul, ar puro e leve…
Que lindo dia!

Lá vem a mosca. O caminho
Esplende ao Sol, que se deita
No Ocaso devagarinho…
Zum-zum… Lá vem… Presa rica!

E a aranha, de longe à espreita,
Imóvel fica.

Lá vem. Descuidada e linda,
Zumbe no ar. Silêncio em roda.
Por tudo uma calma infinda
A tarde suave estende…

E a mosca, na teia, toda
Se enreda e prende.

Zum-zum!… Aflita e medrosa,
As lindas asas agita.
Cansa-se lenta; e, furiosa,
Mais sofre, mais se arrepela.

E a aranha, que a fome incita,
Vai sobre ela.

Um lavrador que passava,
Estende a mão rude e tosca,
Liberta a mísera escrava
Que entre as árvores se some…

E a aranha, perdendo a mosca,
Morreu de fome.                          

Alguns, com pavor de aranhas, consideraram o final feliz. Para outros, a aranha deveria ser preservada por ser útil no controle da população de insetos. Não importa. A prosa foi boa. 
Deixaram-se, então, uns aos outros, lentamente. Cada um que se retirava desarranjava um pouco mais o todo, até que o todo desapareceu, restando apenas na memória de cada um. Até que se reunissem novamente.
Àquela hora, cabia ao doutor trocar a rua pelo consultório. Tirar o calção e vestir o jaleco. Substituir a obra literária pelo estetoscópio.



Rubens Bedrikow
Campinas, 1 de março de 2014.
Caminhada da sexta-feira - Campinas-SP


Nosso caminho


Pausa à sombra


Olha a cobra

Próxima Estação: CAPS

      Manhã de quinta-feira, pego os três alunos do 5˚ ano de medicina em frente à Faculdade de Ciências Médicas e deixo a Unicamp em direção ao CAPS. Esta disciplina de Saúde Coletiva permite criar, improvisar, montar o estágio conforme o caso apresentado pela unidade básica de saúde, no intuito de construir um projeto terapêutico singular. Casualmente, os três alunos pensaram na Psiquiatria como opção para o futuro. Não tive tempo de avisar da visita, mas contava com o acolhimento porta aberta daquele Centro de Atenção Psicossocial. Eu estava certo.
Nem bem cruzamos o portão do grande sobrado e topamos com o sorridente funcionário da GOCIL. Apresentei-me, e os alunos que me acompanhavam, não sem frisar o interesse pela especialidade de Pinel e Basaglia. O tal funcionário, alto, forte, moreno, com uma tiara na cabeça, devolveu: “Boa escolha! Trabalhar com Saúde Mental é muito bom! Eu mesmo vou estudar psicologia”. Mais um pouco de conversa e perguntei se ele gostava de trabalhar ali. “Eu amo”, disse ele. Em seguida, nos apresentou à auxiliar de enfermagem que se preparava para a caminhada com usuários do serviço. Bermuda, chapéu para proteger do sol, tênis, óculos e um belo sorriso. Ainda na parte externa, foi logo contando da caminhada e nos conduzindo até uma sala onde seríamos recebidos por outra funcionária. Percebemos seu amor pela profissão e nem estranhamos quando ela parou para dedicar mais tempo ao relato. Enquanto isso, pacientes passavam, chegavam, preparando-se para a atividade. Repeti a ela a mesma pergunta que fizera ao funcionário da GOCIL e obtive a mesma resposta: “Eu amo”. Adentramos a casa, dizendo “oi” aos pacientes que nos observavam, passamos diante do posto de enfermagem, subimos a escada e paramos no interior da sala de reuniões da equipe. Lá estavam vários profissionais que discutiam os projetos terapêuticos ou passavam plantão. Todos compenetrados, mas com um olhar e sorriso acolhedores em nossa direção. Para mim, pessoas ou fisionomias conhecidas, familiares. Da sacada da sala, podíamos observar os pacientes no pátio da casa, alguns sentados, outros nas espreguiçadeiras, outros caminhando, enquanto um homem terminava a limpeza da piscina. Fomos convidados a nos sentar em volta da mesa para um papo com a psicóloga Iara. Esta também não tardou a exibir seu ar risonho. A contração dos músculos faciais para expressar alegria parece ser a marca do lugar. Iniciou pela discussão do que foi a reforma psiquiátrica. O que passaria pela cabeça dos três alunos que, olhares atentos, aprendiam sobre a reabilitação psicossocial naquele espaço, cercados de pessoas com sofrimento mental grave, ali inseridos em diversas oficinas e grupos? Aprendizado longe da sala de aula, mas tão perto do real. No papel de professor, estava satisfeito de oferecer tal oportunidade a eles. Muito provavelmente, o resultado seria outro dentro de uma sala de aula. A conversa fluiu fácil, as perguntas surgiram naturalmente e os olhos brilharam. Para trabalhar ali é mister aprender a atuar em equipe, coconstruir projetos terapêuticos com os colegas. “Uma segunda residência no CAPS”. Andamos pelos diferentes cômodos e espaços do sobrado. Testemunhamos a postura afável dos profissionais diante dos pacientes que os chamavam pelos nomes: “Iara, Iara…”. Dois gêmeos dormiam, um sobre a mesa de bilhar e o outro sobre o piso. O que fugiu, retornou. Apertamos mãos, proseamos, admiramos os trabalhos produzidos nas oficinas e lemos o conto do abacaxi falante. Uma paciente dizia ser psicóloga e quis conversar conosco. Achou as alunas lindas, tanto a morena como a loira. Interessou-se pelo crachá: “Ah, vocês são da Unicamp; minha mãe morreu lá. Por que vocês não a salvaram?” No passado, com certeza, aquelas pessoas só seriam encontradas em prisões ou manicômios. Mas hoje, estão ali, convivendo conosco, entrando e saindo do CAPS quando querem. Essa reforma acontece no cotidiano e pode ser apreendida ali, nas conversas, nos gestos, nos toques. Mas só faz sentido porque a clínica permeia tudo. 
Agradeço a gentileza, disponibilidade e boa vontade com que os funcionários do CAPS  Estação nos receberam.
O trabalho de vocês faz muita diferença para muita gente.
Parabéns.

Rubens Bedrikow
FCM - Depto. Saúde Coletiva - Unicamp 
  CS Rosália - PMC

Campinas, 24/1/2014

Dengue: urgência

        RESUMO
No ano de 2014, Campinas - município da região sudoeste do Brasil, a cerca de 100 km de São Paulo - viveu a pior epidemia de dengue de sua história com mais de 30.000 casos. Desde 2005, o mês de abril é o de maior incidência da doença. Interessou aos pesquisadores conhecerem os motivos de uma epidemia dessa magnitude e a capacidade de atendimento de um serviço de urgência durante o mês de abril de 2014. Utilizou-se como fonte de dados secundários livros de registro e de notificações do serviço estudado. Concluiu-se que fatores climáticos como temperatura mínima elevada e baixa precipitação durante os primeiros três meses do ano, aliados à situação imunológica favorável à infecção pelo sorotipo DENV-1 e à não contratação em número suficiente de profissionais que atuam na prevenção da doença, parecem ter contribuído significativamente para a epidemia de 2014. O número de atendimentos clínicos no serviço de urgência estudado foi muito baixo durante o mês de abril de 2014, acarretando desassistência de pacientes adoecidos com dengue durante o pico da epidemia. 

Palavras-chave: Dengue; Epidemias; Serviços Médicos de Emergência; Gestão em Saúde.

ABSTRACT
In 2014, Campinas - a southeastern Brazilian city about a 100 km from Sao Paulo - had its worst dengue epidemic with more than 30.000 cases. Since 2005, April is the month  with the highest incidence of the disease. The authors’ purpose was to investigate the reasons for an epidemic of such magnitude and the response capacity of an emergency service during the month of April 2014. Record and notifications’ books of the emergency service served as secondary sources. It became apparent that climatic conditions such as high minimum temperature and low precipitation during the first three months of the year, combined with immunological situation favorable to the infection by DENV-1 serotype and with the not hiring enough number of workers in charge of disease prevention actions, contributed to the 2014 dengue epidemic. The number of clinical consultations in the emergency service studied has been very low during April 2014, leading to lack of medical attention of people sick with dengue at the peak of the epidemic. 
 
Key-words: Dengue; Epidemics; Emergency Medical Services; Health Management.

INTRODUÇÃO
O ano de 2014 será lembrado como o da maior epidemia de dengue da história da cidade de Campinas com cerca de trinta mil casos confirmados até o mês de maio.1 Abril, no entanto, costuma ser o de maior incidência da doença desde 2005.1 Em geral, nesse período, já não bastam as medidas de prevenção, de eliminação de criadouros ou de combate ao vetor. Dado o elevado número de pessoas infectadas e sintomáticas, faz-se necessário a assistência adequada aos pacientes a fim de aliviar o sofrimento e reduzir a letalidade das formas graves da doença. Tanto as equipes que atuam nas Unidades Básicas de Saúde como nos Pronto Atendimentos devem estar aptas a cuidar de pessoas com sintomas da doença.2 Este estudo buscou conhecer alguns aspectos do atendimento clínico de pessoas com idade igual ou superior a 14 anos no Pronto Atendimento Municipal da região norte do município de Campinas, onde se registrou o segundo maior coeficiente de incidência da doença em 2014.1 

A dengue
A dengue é uma doença febril aguda que se manifesta com cefaléia, dor nas articulações, mialgia, prostração, anorexia, astenia, dor retroorbital, exantema e prurido cutâneo. Dor abdominal generalizada é mais frequente em crianças. Manifestações hemorrágicas como petéquias, epistaxe, gengivorragia e metrorragia são mais comuns em adultos, principalmente ao fim do período febril. Além de quadros hemorrágicos mais graves, a febre hemorrágica da dengue pode cursar com choque decorrente de aumento da permeabilidade vascular, hemoconcentração e falência circulatória.3  A positividade da prova do laço - aparecimento de petéquias após manter o esfigmomanômetro insuflado no ponto médio da pressão arterial por cinco minutos - evidencia fragilidade capilar, sinal de alerta para o risco de febre hemorrágica da dengue.3
O agente etiológico é um arbovírus do gênero Flavivirus, transmitido por mosquitos do gênero Aedes, sendo a espécie Aedes aegypti a mais importante nas Américas e igualmente responsável pela febre amarela urbana.3 O nome Aedes vem de aedos - poetas gregos que dedilhavam liras - em razão das listas negras no dorso do mosquito, lembrando o instrumento.4 A origem africana do inseto foi eternizada no descritor específico aegypti.4 
A escravidão e os navios negreiros romperam esse equilíbrio ecológico. A partir do século XVI, o Aedes aegypti emigrou repetidas vezes da África para as Américas no interior dessas embarcações, em promiscuidade com mulheres e homens portadores de formas pouco sintomáticas da doença. Nos barris de água potável e nas coleções de água empoçada as fêmeas acharam o meio ideal para incubar seus ovos, dos quais eclodiram larvas que, ao atingir a vida adulta, infectam-se picando portadores da doença, entretendo-a em vários ciclos reprodutivos até alcançar as Américas.5
A transmissão se dá pela picada do mosquito após um repasto de sangue infectado, no ciclo ser humano-Aedes aegypti-ser humano. Não há transmissão por contato direto de um doente ou de suas secreções com pessoa sadia, nem por intermédio de água ou alimento. O período de viremia - presença de vírus no sangue humano - inicia-se um dia antes do aparecimento da febre e dura até o 6˚ dia da doença. Apenas durante esse período é que o ser humano transmite o vírus ao mosquito, indo alojar-se nas glândulas salivares da fêmea. Após um período de incubação que dura de oito a doze dias, a fêmea do mosquito é capaz de transmitir a doença até o final de sua vida (seis a oito semanas).3
Há referências de epidemias de dengue no Brasil desde o século XIX.3 Aceita-se que a epidemia de febre reumática eruptiva que assolou o Rio de Janeiro e Bahia entre 1846 e 1848 tratava-se, na verdade, de dengue. Ficou conhecida como polca, dança então muito em moda. “O doente ficava com as articulações dos membros inferiores de tal modo afetadas e doloridas, que ao se locomover simulava ensaiar os passos da polca”.6 Segundo Steffen4, estratégias de combate à febre amarela pelo controle do Aedes, como aquela pioneira em Sorocaba (SP), em 1901, e coordenada por Emílio Ribas, alcançaram a erradicação quase total do mosquito em 1942, reintroduzido no início dos anos setenta, oriundo da América Central. Segundo Braga e Valle7, a Organização Pan-Americana de Saúde e a Organização Mundial de Saúde coordenaram eficientes programas de combate ao Aedes aegypti em todos os países latino-americanos, entre o final da década de 1940 e a década de 1950. No Brasil, o último foco do mosquito teria sido extinto em 1955, na zona rural do município de Santa Terezinha, na Bahia.7 A epidemia que atingiu São Paulo em 1916 recebeu o nome de urucubaca.4 Assim como em 1923, na cidade de Niterói, não houve diagnóstico laboratorial.3 A primeira epidemia documentada clínica e laboratorialmente foi a de 1981-1982, em Boa Vista (RR). Em 1986, epidemias importantes ocorreram no Rio de Janeiro e algumas capitais do Nordeste.3 O aumento significativo da incidência de dengue a partir da década de noventa decorreu da ampla dispersão do mosquito transmissor no território nacional.3
Em Campinas (SP), o Aedes aegypti já produzira enorme estrago por ocasião da epidemia de febre amarela de 1889. A elevada taxa de mortalidade - de 20 a 25% - dizimou grande parte dos vinte mil habitantes e fez muitos outros deixarem a cidade que teve sua população reduzida a aproximadamente cinco mil pessoas. Entre abril e maio desse ano, Adolpho Lutz acorreu a Campinas com o intuito de conter a epidemia:
“Quando em 1889 fui chamado, com urgência, de São Paulo para Campinas onde já não havia mais médicos, encontrei uma pandemia bem acusada de febre amarella e esperava todos os dias ser accomettido, mas escapei de um ataque febril”.8
Interessante que, da mesma forma que aconteceu neste ano de 2014, em que experimentamos a maior epidemia de dengue da história de Campinas, em 1889, durante os três meses de verão, quase não choveu e a temperatura subiu mais que nos anos anteriores.9 De acordo com Câmara et al.10, a temperatura mínima elevada nos primeiros meses do ano parece ser o fator crítico para definir a possibilidade de uma epidemia numa população suscetível imunologicamente e as epidemias tendem a ser mais frequentes nos anos em que o volume de chuvas no verão é pequeno (abaixo de 200 mm). Entre 1988 e 2008, a temperatura mínima média nos meses de janeiro, fevereiro e março foi inferior àquela observada este ano (Tabela 1) e o índice pluviométrico superior ao de 2014 (Tabela 2).11,12
O número de casos registrados até o mês de maio deste ano - ao redor de trinta mil - supera de longe os da epidemia de 2007, com cerca de onze mil casos, até então a mais importante da cidade. De acordo com o Informe Epidemiológico Dengue de 14 de março de 2014, elaborado pelo Departamento de Vigilância em Saúde da Secretaria Municipal de Saúde de Campinas, havia 
uma situação complexa do ponto de vista epidemiológico, pois o sorotipo DENV-1 não predomina há muitos anos em Campinas, devendo haver uma grande proporção de pessoas que são susceptíveis a este vírus[…]o que aumenta o risco de uma epidemia com maior número de casos e com uma proporção maior de casos graves.13
O padrão epidemiológico observado desde a década de 1990, caracteriza-se por períodos de baixa transmissão intercalada com a ocorrência de epidemias, geralmente associadas à introdução de novo sorotipo ou à alteração do sorotipo predominante. A cada novo ciclo epidêmico tem sido constatado aumento na incidência14. Portanto, a reintrodução do sorotipo DENV-1 após alguns anos ausente, juntamente com as condições climáticas favoráveis, explica a atual epidemia e, pelo menos em parte, o aumento da incidência em relação às epidemias anteriores.
De acordo com membros do Conselho Municipal de Saúde de Campinas, a magnitude da epidemia poderia ter sido menor caso o poder público municipal não tivesse se mostrado omisso na contratação de agentes comunitários de saúde e agentes de controle ambiental ou nas ações de vedação de caixas d’água ou remoção de criadouros e entulhos em geral em áreas de ocupação recém despejadas e urbanas como um todo.15      

O Serviço de Urgência 
Interessou-nos neste estudo conhecer como se deu a assistência de urgência durante o mês de abril por entender que tais ações são cruciais nesse período que, em geral, cursa com elevado número de pessoas adoecidas.  
Sabemos que o período de maior incidência em Campinas nos últimos 15 anos tem sido os meses de março, abril e maio, sendo assim, é fundamental que a rede de assistência tanto pública como privada esteja preparada para atendimento de uma quantidade maior de casos, assim como de casos graves de dengue neste período.13
  Escolhemos para estudo, o Pronto Atendimento Padre Anchieta (PA Anchieta), localizado na região norte de Campinas que conta com aproximadamente 220.000 habitantes. Trata-se de instituição pública municipal voltada ao atendimento médico de urgência/emergência.16
  Em 2011, o PA Anchieta foi objeto de vistoria por parte do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.16 Naquela ocasião, o serviço contava com vinte e três médicos clínicos e vinte e um pediatras. A escala diária de trabalho médico previa cinco clínicos e três pediatras das 7 às 19 horas e três clínicos e dois pediatras das 19 às 7 horas. Cinquenta por cento das escalas médicas estavam incompletas. A média mensal de atendimentos entre janeiro e agosto de 2011 foi de 6.358 para clínica médica e 2.340 para pediatria. A origem da demanda de atendimento era da região norte de Campinas e adjacências (60%), municípios de Sumaré (20%) e Hortolândia (20%). Nova vistoria, realizada em outubro de 2013, revelou redução de 27% no número de médicos e escalas de plantões médicos incompletas fazendo com que a unidade trabalhe com a “porta fechada”, isto é, assista apenas pacientes classificados como graves no momento da classificação de risco.17 A diminuição do número de enfermeiros - 21%17 - contribuiu para que a classificação de risco não fosse realizada em todos os plantões. Houve ainda queda na produção mensal que oscilou em torno de 2.400 atendimentos. Portanto, o Pronto Atendimento Anchieta teve sua situação assistencial agravada entre 2011 e 2013 em virtude da redução de seu quadro de médicos e enfermeiros e demais profissionais de enfermagem.17
MÉTODOS
Trata-se de pesquisa descritiva. Os dados foram extraídos dos livros de registro preenchidos pelos recepcionistas e do livro de notificação de casos de dengue. Buscou-se o número de médicos clínicos presentes em cada período e o número de fichas de atendimento abertas. Interessou-nos ainda o número de casos de dengue notificados diariamente no serviço. A pesquisa restringiu-se a pacientes com idade igual ou superior a 14 anos - grupo etário atendido pelos médicos clínicos - e ao período de 1˚ a 30 de abril. Fez parte da pesquisa correlacionar o número de médicos nos diferentes plantões com o número de atendimentos realizados e os casos de dengue notificados.

RESULTADOS
Foram realizados, no total, 3234 atendimentos clínicos, o que corresponde a uma média diária de 107,8. Em dois dias - 4 e 6 - o número de atendimentos foi muito baixo - 54 e 50, respectivamente, ficando ao redor da metade da média mensal.
Em nenhum dia do mês de abril a escala médica esteve completa com 5 médicos durante o dia e 3 durante a noite. Apenas na manhã do dia 18 e na tarde do dia 21 alcançou-se o número de 5 médicos. No que se refere ao período noturno, o número previsto de 3 médicos foi alcançado apenas em nove oportunidades.
Quando não se alcançou o número mínimo de 3 médicos em cada turno, o número de atendimentos esteve abaixo da média de atendimentos do mês. Os dias 4,6 e 22 foram aqueles com menor número de atendimentos - 54, 50 e 63, respectivamente. Nesses dias o número de médicos presentes foi de 2 ou 1 em cada período. Em nenhum desses dias, 3 ou mais médicos estavam presentes. Os dias 7, 21 e 26 tiveram o maior número de atendimentos. No dia 7, estavam presentes 2 médicos pela manhã, 4 à tarde e 3 à noite. No dia 21, trabalharam 4 pela manhã, 5 à tarde e 2 à noite. Não dispomos de informação sobre o período da manhã do dia 26, mas sabemos que à tarde estavam presentes 3 médicos e à noite 2. Portanto, em todos esses três dias, em pelo menos um período, estavam presentes 3 ou mais médicos. Observou-se que com menos de 3 médicos o volume de atendimentos é baixo quando comparado com dias que contam com pelo menos 3 médicos no plantão. Em média, quando menos de 3 médicos trabalharam durante o dia, foram realizados apenas 85,7 atendimentos, mas quando 3 ou mais médicos estavam presentes, essa média elevou-se para 131,3.
Em abril, foram realizadas 291 notificações de dengue. No dia 6, que teve o menor número de atendimentos - 50 - foi notificado apenas um caso. 
Existe uma relação direta entre o número de atendimentos e o número de notificações de casos de dengue durante o mês de abril de 2014. Observa-se que nos dias com número baixo de atendimentos foram notificados poucos casos de dengue.
Treze por cento dos 291 casos de dengue apresentaram prova do laço positiva, um sinal de potencial gravidade da doença.

DISCUSSÃO
A média de atendimentos clínicos - pacientes com 14 anos de idade e mais - durante o mês de abril de 2014 - mês com maior incidência de dengue - ficou em 106,7/dia, muito abaixo da média de 2011 - 205,1/dia - informada no documento “Avaliação dos serviços de urgência e emergência do município de Campinas/SP”, elaborado pelo Cremesp/Campinas.16 Portanto, houve uma queda de quase 50% no número de atendimentos clínicos no PA Anchieta entre 2011 e 2014. Vistoria realizada pelo Cremesp/Campinas em 201317 mostrou uma produção mensal ao redor de 2.400 nos meses de agosto e setembro, o que corresponde a cerca de 80 atendimentos por dia. Em outras palavras, a produção do PA Anchieta sofreu forte queda desde 2011. Algumas explicações para esse fato têm sido discutidas. Uma delas, e que parece ser muito relevante, é a exoneração, em 2012, de médicos contratados por um serviço de saúde conveniado com a prefeitura de Campinas, em razão do encerramento desse convênio. Os concursos e processos seletivos realizados não foram capazes de recompor as equipes. Outra explicação diz respeito a rotatividade de profissionais, um desafio antigo para os gestores municipais. Um seminário organizado em 2008 revelou diversas causas para o fenômeno tais como baixos salários, empregos múltiplos e ambiência inadequada.18
Em nenhum dia o número esperado de médicos (5-5-3) foi alcançado nos 3 períodos (manhã-tarde-noite).
A correlação observada entre o número de médicos e o número de atendimentos mostra que a baixa produção de consultas deve-se à falta de profissionais e provavelmente não à redução da demanda. Isso fica muito claro ao se comparar o volume de atendimentos  de dois dias consecutivos - 6 e 7. No dia 6, estavam presentes apenas 2 médicos por turno e foram atendidas apenas 50 pessoas. No dia seguinte, com 4 médicos à tarde e 3 à noite, foram atendidas 179 pessoas. Da mesma forma, enquanto apenas 1 caso de dengue foi notificado no dia 6, foram 21 no dia 7. Assim, pode-se afirmar que a falta de solução para o problema de captação e fixação de médicos acarretou desassistência de pessoas com suspeita de dengue no PA Anchieta. Provavelmente, os pacientes retornavam às suas casas ou buscavam atendimento em outro serviço.  É possível supor que os habitantes dos bairros próximos ao PA Anchieta foram “aprendendo” que não adiantava procurar esse serviço uma vez que recebiam com frequência uma resposta negativa às suas tentativas de serem ali atendidos. Isso explica, em parte, a redução do número de atendimentos e nos obriga a procurar saber onde essas pessoas têm buscado ajuda. Essa situação torna-se mais grave ainda na vigência de uma epidemia de dengue quando a demora no diagnóstico e início do tratamento pode comprometer a saúde e vida dos doentes. De acordo com as Diretrizes Nacionais para a Prevenção e Controle de Epidemias de Dengue19, a “organização da rede de serviços[…]é fundamental para a redução da letalidade por dengue” e isto inclui
Profissionais qualificados e em quantidade suficiente para atendimento das atividades propostas. Garantir o atendimento médico e a realização de exames de controle dos pacientes agendados para retorno à unidade estabelecida. Identificar e preparar unidades de saúde para atendimento em regime de 24 horas que funcionarão durante a epidemia, como, por exemplo, hospitais-dia e outras unidades, em reforço às demais unidades estabelecidas com este fim. 

CONCLUSÕES
As principais conclusões deste estudo são:
  1. Fatores climáticos como temperatura mínima elevada e baixa precipitação durante os primeiros três meses do ano, aliados a situação imunológica favorável a infecção pelo sorotipo DENV-1 - que não circulava havia alguns anos - e a não contratação em número suficiente de profissionais que atuam na prevenção da doença, parecem ter contribuído significativamente para a epidemia de 2014. 
  2. O pronto atendimento municipal da região norte de Campinas experimentou importante queda do número de médicos e profissionais de enfermagem entre 2011 e 2013, o que repercutiu na baixa produção observada desde 2013.
  3. Em nenhum dia do mês de abril de 2014, a escala de médicos clínicos esteve completa. 
  4. Quando o número de médicos clínicos foi inferior a três, o volume de atendimentos foi muito baixo. Isto porque, nessa situação, a “porta” do pronto atendimento permaneceu fechada. Ao contrário, nas ocasiões em que três ou mais médicos estavam presentes, houve aumento significativo dos atendimentos.
  5. O volume de atendimentos clínicos no pronto atendimento municipal da região norte de Campinas foi muito baixo durante o mês de abril de 2014, pico da epidemia de dengue. 
  6. O número insuficiente de médicos clínicos e o fechamento frequente da “porta” do pronto atendimento acarretaram desassistência de pacientes adoecidos com dengue durante o pico da epidemia de 2014. 

Referências bibliográficas
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