A dor dava ares de muito forte. Inquieta, agoniada, a jovem se contorcia e não encontrava conforto sobre a estreita maca. Ora sentada, ora deitada, gemia por causa da dor no peito. Tanto a doutora como os auxiliares e enfermeiros, de repente, se sentiram profundamente implicados. Tamanho sofrimento lhes demandava atenção imediata. Um eletrocardiograma foi produzido de pronto e o soro contendo analgésico ganhava a veia do braço antes mesmo do exame concluído. A possibilidade de dor torácica provir de infarto do miocárdio, faz com que o registro da atividade elétrica do coração seja muito disponível nas unidades de saúde e amiúde realizado em situações como essa. Os olhos da doutora se detiveram no segmento ST - liga a onda S à onda T - do traçado. Buscava desnivelamento - indicativo de corrente de lesão no miocárdio - fase aguda de infarto. A dúvida: haveria algum desnivelamento significativo na derivação V3? A resposta seria dada fora daquela unidade básica de saúde, porquanto decidiu-se transferir a jovem, ainda com dor violenta, a um serviço de urgência.
O médico do pronto socorro descartou problema cardíaco e concluiu por alteração pulmonar após examinar a radiografia de tórax. A paciente obteve alivio da dor, mas seguia preocupada, agora com uma possível doença no pulmão. Mais tarde, descobriria que o pulmão era, pelo menos radiologicamente, normal. Residia próximo ao centro de saúde e a convidei a relatar o que lhe sucedera antes de começar a dor.
Ficara viúva recentemente. O marido, que se tornara dependente químico, pusera fim às economias da família antes de partir. Sem o companheiro, viu-se obrigada a deixar a casa de aluguel e trilhar, com seus dois pequenos filhos, o caminho de volta à casa dos pais. Apesar da generosa acolhida, deu-se conta que não dispunham de renda suficiente. Apenas a mãe estava empregada. O pai aposentado por doença e o irmão sem trabalho. Outras duas crianças também dependiam do minguado recurso familiar. Discussões e brigas familiares passaram a fazer parte da rotina de todos. A jovem viúva mostrava-se angustiada com o grande estorvo financeiro, a dificuldade de vaga para os filhos na creche e a falta de perspectiva de emprego e, por conseguinte, de independência. A narrativa desse momento de sua vida, parecia trazer-lhe algum sossego. Encerrou concluindo que a dor no peito, provavelmente, decorria das recentes mudanças e desafios. Acreditava não sofrer de nenhuma doença orgânica. Nisso, parecia ter razão.
O cenário dessa conversa era o pequeno, mal ventilado e pouco iluminado quarto da casa improvisada para servir de centro de saúde do bairro. Estávamos tão próximos que podia sentir o cheiro de cigarro nos seus cabelos e roupas e perceber marcas na face sofrida e deprimida. Seu olhar vazio não condizia com seus vinte e poucos anos. Eu me esforçava em focar minha atenção no discurso da magricela, pálida e desanimada pessoa que buscava força interior para retomar a via de um sonho abruptamente interrompido. Enquanto isso, me indagava como a jovem enxergava a intervenção da equipe de saúde? Os detentores do saber médico lhe impuseram analgésico, eletrocardiograma, transferência em ambulância, atendimento em pronto socorro e radiografia de tórax. Decisões em consonância com a clínica hegemônica, respaldada pela ciência moderna. No entanto, nada disso lhe trouxe alívio. Na verdade, serenou seu espírito apenas quando falou da sua vida. Quanto mais discorria sobre a história dessa parte da sua vida, mais mitigava o sofrimento interior e alijava a dor. Falar de si mesma ajudou-lhe mais que analgésicos e exames. Isso vai de encontro ao que preconiza a Clínica Ampliada: tirar o foco do biológico e não se limitar à doença, mas considerar também a subjetividade e a singularidade do indivíduo. Acrescentaria que a solução de numerosos problemas com os quais se deparam os profissionais de saúde está na história de vida das pessoas e não no desarranjo de seus órgãos. Como no caso da jovem acima, é preciso desobedecer as rígidas regras da consulta tradicional e deixar livre o discurso. Faz-se necessário transgredir os costumes e preceitos que regem a anamnese e protocolos de atendimento impostos pela ciência moderna. Liberdade para falar, capacidade de ouvir, possibilidade de criar novas soluções. Eis uma receita capaz de recuperar a potência da clínica sufocada por saberes científicos normativos.
Rubens Bedrikow
Campinas, 21 de março de 2010.
Rubens, parabéns! Que legal poder ver/ler todas as suas histórias reunidas aqui! Já compartilhei! Um abraço, Bruna
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