sábado, 3 de janeiro de 2015

No fundo do coração

      Madrugada tranquila no Pronto Socorro. Eu já consultava as pessoas que esperaram o alvorecer para buscar ajuda. A greve do funcionalismo público, ainda que moderada, fazia-nos chegar aqueles que, em vão, tentaram consulta em unidades básicas. Moral e eticamente, não é fácil para os profissionais da saúde - pelo menos alguns - furtar-se a aliviar o sofrimento daqueles que os procuram. Mais difícil, porém, a situação dos doentes que lidam amiúde com a frustração do não. O empregador, neste caso a Prefeitura Municipal de Campinas, elevara sua proposta inicial de reajuste de 4,22% para 7,33%. Alguns aceitaram, receosos de mais uma queda de braço desgastante. No entanto, a decisão da assembleia foi outra e a greve seguiu. A adesão não era maciça e muitos, mais do que por salários maiores, protestavam contra seus processos de trabalho, postura de seus chefes, ambiência ruim, falta de diretrizes claras e de projeto no qual acreditar e investir, falta de pessoal, perda de espaços de diálogo, entre outros motivos. Reuniões tensas, conversas difíceis, tons elevados ganharam o cotidiano da maioria dos servidores. Denúncias de corrupção envolvendo a primeira dama da cidade, secretários municipais e empresários culminaram em prisões, apreensão de documentos, computadores e vultosas quantias de dinheiro nessa mesma madrugada. Tudo gravado, filmado e exibido pelos meios de comunicação. Pessoas se telefonando, completando a informação do outro, compartilhando as análises dos fatos, atentas aos noticiários das rádios e emissoras de televisão. A indignação dos munícipes com o desvio de verba e a improbidade na administração contribuiu para engrossar as manifestações, as passeatas e os gritos de ordem. No mesmo dia, iniciava-se a IX Conferência Municipal de Saúde. Gestores, trabalhadores e usuários reunidos para pensar e traçar o futuro da Saúde no município. A delicada situação política e a incerteza da governança perpassariam os encontros do evento. Numa demonstração de maturidade e responsabilidade, os organizadores, delegados e convidados mantiveram a Conferência. De pé, escutaram o hino nacional e apreciaram o vídeo que exibia Campinas. Entre diferentes paisagens, monumentos e obras arquitetônicas, o retrato de uma senhora idosa. Cabelos bem brancos apareciam debaixo do lenço. A pele morena, curtida pelo sol, rodeava a boca assimétrica e os olhos pequenos. Serena, sossegada, encarava a todos. Seu olhar súplice, humilde, era direto, profundo. Sua efêmera passagem pela tela bastou para despertar em mim pensamentos novos. O entrecruzamento de olhares - tecnologia levíssima capaz de colocar a relação profissional de saúde-paciente em patamar elevado, onde os anseios são de uma ordem distinta daquela que pode ser resolvida com mandos, passeatas, greves ou prisões. Talvez, se gestores, grevistas, delegados, acadêmicos pudessem fitá-la com mais vagar… 
De volta ao assunto do plantão, naquela madrugada, não obstante as dificuldades de trabalhar num sistema sub-financiado, até certo ponto desacreditado, em crise, me senti realizado, feliz, orgulhoso de serenar o sofrimento do homem que se confiava a mim. A sala era pequena, simples, com a pintura desgastada, porém limpa e silenciosa. Indaguei sobre sintomas. Cansaço aos pequenos esforços. Auscultei estertores crepitantes nas bases dos pulmões. Usei o raciocínio patofisiológico da clínica moderna para diagnosticar insuficiência cardíaca congestiva. Compartilhei minhas conclusões e sugeri uma radiografia de tórax uma vez que, na maioria dos casos de cardiopatia em hipertensos - esse era seu caso - ocorre aumento do coração. Propus captopril e furosemida. A radiografia confirmou a cardiomegalia e revelou ainda linhas B de Kerley - linhas densas, curtas e transversais na periferia dos pulmões e que representam septos interlobulares espessados por líquido de edema. Expliquei-lhe os achados, fizemos uma carta para sua médica assistente e uma receita. O efeito dos medicamentos não tardou e o paciente mostrou-se aliviado, nitidamente satisfeito. Eu também. Sensação de dever cumprido e o prazer interno, decorrente da prática médica. Nesse encontro, rolaram transferências, confiança, vínculo, propedêutica. Uma clínica simples, potente, capaz de agradar aos dois sujeitos. Essa sensação de bem estar, de realização ao exercer a clínica, está em que ordem de entendimento? 
Que os formuladores de diretrizes e políticas de saúde possam, eles também, enxergar essas várias dimensões da clínica, ao invés de reduzi-la a frios números sem significado para os sujeitos envolvidos. Que dediquem um olhar atento às amplas possibilidades da medicina e facilitem encontros clínicos que valorizem significados e sentimentos. Talvez esteja aí o caminho para a crise da saúde brasileira.  


Rubens Bedrikow

Campinas, 22 de maio de 2011 e fevereiro de 2014.

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