Qual a relação entre o conde Liev Nikoláievitch Tolstói, a Estratégia de Saúde da Família e a formação de jovens médicos? Eis uma questão que só me apareceu por causa de um presente que recebi de uma querida tia paterna, filha de russo e afeita a ofertar obras interessantes e curiosas. Trata-se, neste caso, do livro “Contos da nova cartilha: primeiro livro de leitura”, publicado pela Ateliê Editorial. Até então, ignorava eu o fato do escritor de “Guerra e Paz” e “Anna Karenina” ter sido também um pedagogo ousado. Em sua propriedade, em Iásnaia Poliana, inaugurou, em meados do século XIX, uma escola para crianças filhas de trabalhadores rurais. Ali realizou experiências didáticas inovadoras, uma vez que detectara limitações nas obras escolares mais famosas da época. Disso resultaram as Cartilhas e os Quatro Livros de Leitura. Por ocasião de sua morte, em 1910, “as cartilhas estavam em sua trigésima edição, com tiragem de cem mil exemplares cada uma”1. “Tolstói acreditava que o critério da pedagogia concentra-se na liberdade”2.
Seus alunos não levavam lições para estudar em casa, não eram obrigados a se lembrar das lições do dia anterior, tinham liberdade para escolher o lugar onde se sentar nas salas de aula (bancos, chão, mesas ou parapeito das janelas), bem como o assunto que queriam estudar. Não havia listas de presença, notas, exames, castigos, repreensões ou chamadas orais. Para o mestre, ao conhecer a liberdade, o aluno desenvolveria sua personalidade e seria capaz de improvisações criativas durante toda a sua vida2.
A Nova Cartilha contém fábulas, histórias verdadeiras e contos maravilhosos. Dessa obra, escolhi alguns textos para ler a um grupo de moradores de bairros adscritos ao centro de saúde onde trabalho como médico da Estratégia de Saúde da Família. As leituras tornaram-se rotineiras após a caminhada semanal que fazemos pelas ruas da região. Certa ocasião, li a fábula “O burro e o cavalo” antes mesmo de partirmos, enquanto aguardávamos a chegada de mais gente. A história do cavalo que se recusou a ajudar o burro a carregar a pesada carga, mas que acabou tendo que carregá-la sozinho após a morte deste, produziu reflexões e comentários nos presentes. Seguimos, então, por ruas, ora de asfalto, ora de terra, cruzamos hortas, uma pequena cobra, e paramos diante da empresa que retira um milhão de litros de água diariamente de um poço artesiano ali localizado. Enchemos os recipientes de água e continuamos até a chácara de um casal de idosos, pacientes meus. Nos convidaram a entrar e colher jabuticabas e caquis. Confesso certa apreensão ao observar as pessoas subindo na jabuticabeira. Felizmente, caíram apenas as frutas. Clima de visita, gente alegre, sorridente e promessas de futuros encontros, churrasco combinado. Pouco mais de uma hora e estávamos de volta à Associação de Moradores. Como de costume, o Sr. Antonio garantiu seu lugar ao meu lado a fim de melhor escutar a leitura, já com a audição abalada pelos quase oitenta anos de uso. A menina Duda, neta de Juraci, também queria um lugar ao meu lado, na expectativa de ouvir mais histórias de bichos. Foi assim que li, para uma platéia animada com o passeio, as frutas, os encontros e as conversas, “O leão e o camundongo” e “O cachorro, o galo e a raposa”. Propositadamente, encerrei com “O velho avô e o netinho”3:
O avô foi ficando muito velho. Suas pernas já não andavam, seus olhos não enxergavam, seus ouvidos não ouviam, e dentes ele não tinha. Quando comia, escorria comida da sua boca. O filho e a nora já não o levavam para comer à mesa e lhe davam de comer atrás da piétchka. Certa vez, deram-lhe comida numa tigela. Ele quis puxá-la para perto de si, mas derrubou-a e quebrou-a. A nora ralhou com o velho, dizendo que ele estragava tudo na casa e quebrava as tigelas, e que daí em diante ela lhe daria comida no cocho. O velho apenas deu um suspiro e não disse nada. Numa ocasião, o marido e a mulher estavam sentados, vendo seu filhinho brincar no chão com alguns pedacinhos de madeira e tentando montar alguma coisa. O pai perguntou:
- O que você está fazendo, Micha?
Micha respondeu:
- Estou fazendo um cocho, papai. Quando você e a mamãe estiverem velhos, vou dar comida para vocês nele.
Marido e mulher olharam um para o outro e começaram a chorar. Eles ficaram envergonhados por tratarem tão mal o velho; daí em diante, passaram a sentá-lo à mesa e cuidaram dele.
Há mais de 140 anos, Tolstói, numa carta à sua prima Aleksandrina Andréievna, escrevera que, “se duas gerações de crianças russas, desde os filhos da realeza até os dos camponeses, aprendessem as primeiras letras em sua Cartilha e dela recebessem suas primeiras impressões poéticas, ele poderia morrer em paz”1. Sequer poderia ele imaginar sua obra sendo usada como ferramenta de promoção de saúde em outro país, muito distante de sua Iásnaia Poliana natal, e que, de alguma forma, vem apostando na atenção primária à saúde. Os contos, fábulas, contos maravilhosos, histórias verdadeiras, descrições, contos folclóricos e relatos de camponeses têm se prestado a provocar discussões e reflexões entre os moradores, que ampliam o olhar sobre o mundo, as relações interpessoais, as famílias e os valores da sociedade moderna. Contribuem para o empoderamento pessoal e coletivo, com ênfase em caminhos éticos para a sociedade.
Meu vínculo com algumas escolas de medicina - primeiro a da Santa Casa de São Paulo e, atualmente, a da Unicamp - despertaram em mim o interesse por experiências pedagógicas capazes de atrair os alunos, de encantá-los pela profissão que escolhemos. Assim, foi com grande satisfação que encontrei na obra de Tolstói a indicação de uma proposta de ensino baseada na liberdade, na possibilidade de escolha por parte dos alunos. Enxergar no aluno um sujeito capaz de escolhas, de co-construir seu aprendizado a partir do simples prazer de descobrir o mundo, sem necessidade de listas de presença, exames e notas. Não direi que o pedagogo russo estava à frente de seu tempo. Primeiro, porque o princípio positivista de progresso não explica todas as formas de avanço da humanidade. Segundo, pelo fato de que ainda hoje as escolas insistem em colocar freios nas potenciais improvisações criativas de seus alunos, oferecendo-lhes conteúdos prontos e obrigando-lhes a apreendê-los intactos, o que é testado e controlado por provas e listas de presença.
Tolstói lia para seus netos e alunos carentes na gelada Rússia do século XIX.
Eu me pego lendo para meus pacientes pouco abastados da periferia campineira neste tórrido Brasil do século XXI.
Referências bibliográficas
1. Bernardini AF. As cartilhas do Conde Liev Nikoláievitch Tolstói (prefácio). In: Tolstói L. Contos da Nova Cartilha: primeiro livro de leitura. Tradução: M. Aparecida B.P. Soares. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
2. Rabello BJ. As cartilhas do Conde Liev Nikoláievitch Tolstói (contra-capa). In: Tolstói L. Contos da Nova Cartilha: primeiro livro de leitura. Tradução: M. Aparecida B.P. Soares. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
3. Tolstói L. Contos da Nova Cartilha: primeiro livro de leitura. Tradução: M. Aparecida B.P. Soares. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
Rubens Bedrikow
Campinas, 12 de abril de 2014.
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