De origem húngara, Ignaz Semmelweis (1818-1865) exerceu a medicina numa época em que o povo magiar, imbuído de um sentimento nacionalista, experimentava um movimento de retorno às raízes e desafiava o poder centralizador da Áustria. A previsível animosidade entre aqueles dois povos vizinhos muito provavelmente impediu-o de compartilhar da camaradagem dos colegas nas enfermarias ou salas de autópsia vienenses. Foi como médico assistente na Primeira Clínica Obstétrica de Viena que vivenciou as maiores alegrias e também os piores dissabores da arte de Hipócrates.
Por ser Viena uma cidade grande, era freqüente que partos ocorressem nas ruas, antes que as gestantes pudessem alcançar o hospital. Eram os chamados partos de rua.
As mães que davam a luz na maternidade e consentiam em colaborar com o ensino médico e servir como amas de leite, garantiam um lugar gratuito para o filho no asilo de crianças enjeitadas. Se o parto acontecesse fora da maternidade, tal “privilégio” era perdido. Exceção era feita aos partos de rua, tidos como hospitalares caso as mães tivessem expressado previamente a intenção de ter o filho na maternidade. Abusos freqüentes na forma de partos realizados por parteiras mas relatados como de rua, ocorridos no trajeto da maternidade, tinham por objetivo preservar o direito de albergar gratuitamente o recém-nascido sem os perigos do atendimento pelos médicos.
Semmelweis observou que as mulheres que tinham seus filhos na rua contraiam infecção puerperal menos freqüentemente do que aquelas que davam a luz na Primeira Clínica Obstétrica, apesar das condições menos favoráveis às primeiras.
Na mesma cidade, existia outra clínica obstétrica na qual os partos ficavam a cargo de parteiras e cuja taxa anual de mortalidade por infecção puerperal permanecia abaixo dos 3%, o que contrastava com os 10% à 20% observados entre as doentes atendidas por médicos.
Semmelweis acreditava que as mortes na Primeira Clínica Obstétrica não eram causadas por influências epidêmicas e sim endêmicas. Os fatores endêmicos destrutivos eram desconhecidos mas aparentemente estavam ausentes nos partos de rua ou na clínica das parteiras.
Nessa época, Pasteur ainda não havia derrubado a teoria da geração espontânea, desconhecia-se as bactérias e prevalecia o conceito das infecções causadas por miasmas, emanações não humanas. Preconizava-se a ventilação dos ambientes e condenava-se os conglomerados humanos.
Tudo parecia inexplicável para Semmelweis que, desesperado, decidiu alterar os partos costumeiramente realizados em posição supina e passou a realizá-los em posição lateral, pelo simples motivo que assim procediam as parteiras da Segunda Clínica.
Em março de 1847, Semmelweis partiu para Veneza na companhia de dois amigos com a esperança de ter sua mente e espírito revigorados pelos tesouros vênetos. Tão logo retornou a Viena, foi surprendido com a notícia do falecimento do Professor Kolletschka.
Kolletschka era professor de medicina forense e teve um dedo cortado por uma faca que estava sendo usada por um de seus alunos durante a realização de autópsia orientada pelo mestre. O ferimento resultou em flebite e linfangite da extremidade superior e, posteriormente, causou-lhe a morte por pleurite bilateral, pericardite, peritonite e meningite.
Semmelweis percebeu que a doença que levara seu admirado professor era idêntica àquela que custara a vida à centenas de parturientes. A causa da morte de Kolletschka era conhecida: o ferimento provocado pela faca de autópsia contaminada com partículas cadavéricas. O fator causal específico seriam as partículas cadavéricas introduzidas no sistema vascular. Semmelweis questionou-se sobre a possibilidade das partículas cadavéricas estarem sendo introduzidas no sistema vascular das gestantes e deu-se conta que a resposta era afirmativa.
A escola médica vienense era liderada por Karl Rokitanski, um dos maiores patologistas de sua época e que tornou a anatomia patológica compulsória, fazendo com que professores, assistentes e alunos tivessem contato freqüente com cadáveres.
Semmelweis deu-se conta que a simples lavagem de mãos não era suficiente para remover todas as partículas cadavéricas aderidas, as quais provavelmente entravam em contato com as mucosas genitais das gestantes ou parturientes por ocasião do exame, criando a possibilidade de reabsorção das mesmas.
Supondo que as partículas cadavéricas eram as responsáveis pela infecção puerperal, Semmelweis instituiu a prática da lavagem das mãos com chlorina liquida em maio de 1847. O resultado foi a queda da taxa de mortalidade de 12,24% para valores inferiores àqueles observados na clínica das parteiras.
Apesar do excelente resultado, o chefe do Serviço condenou Semmelweis, aparentemente devido a razões de antagonismo pessoal e reduzindo-o de cargo e retirando-lhe determinados privilégios. Da mesma forma, seu trabalho recebeu ataques virulentos por ocasião de sua apresentação na Sociedade Médica de Viena.
Não obstante o apoio de médicos consagrados como Rokitanski, Skoda e Hebra, Semmelweis estava muito sentido e decidiu abandonar Viena e partir para Budapeste onde seus métodos acarretaram grande diminuição das taxas de mortalidade.
Seu livro Die Aetiologie der Begriff und die Prophylaxis dês Kindbettfiebers publicado apenas em 1861 foi recebido com indiferença e criticado por cientistas de prestígio como Virchow.
Confinado a um asilo, Semmelweis faleceu em 1865 de uma infecção sangüínea. Juntou-se a inúmeros outros cientistas incompreendidos e injustiçados em vida mas, no jugo do tempo, reconhecidos e venerados.
Fica a impressão de que a situação política que, de certa forma, opunha a Hungria à Áustria, dificultou o reconhecimento da obra de Semmelweis em Viena, haja vista que suas idéias foram bem recebidas em Budapeste.
À pesada valorização da anatomia patológica na escola médica de Viena, sob a influência marcante de Rokitanski, poder-se-ia atribuir um grande número de mortes por infecção puerperal, mas também o feito de Semmelweis, uma vez que somente após a morte de seu professor Kolletschka, contaminado durante uma autópsia é que o médico húngaro associou a febre puerperal às atividades na sala de autópsia.
As mulheres vienenses sabiam que a infecção era adquirida na clínica comandada pelos médicos e, por isso, preferiam ou simulavam os partos de rua. Os médicos também desconfiavam pois eram obrigados a oferecer vantagens às parturientes para que elas concordassem em dar a luz sob seus cuidados.
Ao que tudo indica todos sabiam do mal causado pelo atendimento obstétrico médico, mas foi Semmelweis que trouxe a explicação. Infelizmente, só a enxergou quem quis.
Rubens Bedrikow
São Paulo, 8 de outubro de 2001.
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