O Sr. V. é somente 2 anos mais jovem que eu e nosso primeiro encontro se deu em setembro de 2009 quando compareceu ao Centro de Saúde “apenas” para mostrar os exames de sangue realizados alguns meses antes. Exceto pela elevação do ácido úrico e dos triglicérides, o restante da bioquímica sérica e o hemograma encontravam-se normais. Idem a dosagem do antígeno prostático específico, o hormônio tireoestimulante e as sorologias para hepatites B e C e sífilis. Ex-tabagista, apresentava a pressão arterial e exame do coração e pulmões normais. No entanto, relatou um problema muito sério - a dependência de álcool. A ingesta diária desse produto há aproximadamente 30 anos era preocupante. Dessa primeira conversa, surgiu o interesse em tentar novamente vencer o vício. Para os primeiros dias de abstinência, programamos o uso de diazepan.
O segundo encontro ocorreu transcorrido pouco mais de um ano. A “necessidade” de beber tinha prevalecido. Cachaça diariamente. Voltamos a conversar. Não me recordo bem o que conversamos, mas registrei no prontuário que expliquei os riscos e efeitos do álcool, sobre a síndrome de abstinência e que o incentivei a parar de beber. O que disse a ele? Não me lembro.
Finalmente, o terceiro e último encontro, ontem. Ele ganhou peso, estava bem vestido, penteado, com brilho nos olhos e aparentava felicidade. Nunca mais bebeu desde nossa conversa, há pouco mais de 4 meses. Trabalha como pedreiro. Contou que antes de largar o vício, gastava muito com a bebida e, sem contar à esposa, vendia ferramentas de trabalho para conseguir pagar as dívidas de boteco. Nem mesmo as dificuldades financeiras e as brigas com a mulher, que chorava diante do seu comportamento, eram capazes de fazê-lo desistir da “marvada”. Hoje, anda de cabeça erguida, trabalha muito, readquiriu as ferramentas, recuperou o carinho da mulher, o respeito do filho de 20 anos e planeja o futuro da filha ainda bebê.
Compareceu a esta consulta em tom de agradecimento e eu me pus a pensar: o que aconteceu naquele encontro que o fez parar de beber? Seria algo que eu disse? O que mexeu com ele? Por que dessa vez ele conseguiu ter força de vontade suficiente para despachar um vício tão sério e antigo? Talvez o que importa seja a troca que ocorreu, a empatia dos interlocutores e não apenas o que se falou. Segundo ele, foi a consulta anterior que alterou sua vida e de seus familiares e, por isso ele estava ali, para agradecer. Eu que tenho estudado a Clínica do Sujeito, a Clínica Ampliada, me pergunto se essa experiência exitosa poderia ser sistematizada. Todo encontro tem sua singularidade, mas há algo que pode servir para situações semelhantes no futuro?
Ainda tomado pelas emoções do encontro descrito acima, recebi na mesma sala do mesmo centro de saúde uma senhora que vinha para consulta de rotina. Ficamos satisfeitos ao constatar que estava bem, com a pressão arterial controlada e exames normais. Quando os pacientes encontram-se nessa situação, é comum a conversa nos afastar da doença. Emergem assuntos referentes às suas origens, relacionamentos familiares, amores e frustrações, atividades rotineiras e profissionais. Enfim, há liberdade para tratarmos do que quisermos. Demonstram prazer nesses momentos. São momentos realmente agradáveis tanto para mim como para eles. E assim também transcorreu com essa senhora. Terminada a consulta - programada para 20 minutos - nos levantamos e a acompanhei até a porta. Foi então que, sem aviso, ela olhou nos meus olhos e me deu um abraço. E eu retribuí. O abraço, assim como o olhar, foram mais intensos que as palavras trocadas nos minutos anteriores, mesmo que tenham durado poucos segundos. Houve também sorrisos e frases polidas. Me senti bem ao receber e retribuir aquele abraço, o que deve ser lógico, pois nada mais é do que uma forma de demonstrar afeto. Mais tarde, as reflexões. Qual o significado daquele abraço? Qual a mensagem? Como não perguntei a ela, só me restam minhas próprias conjeturas. A paciente provavelmente gosta de consultar comigo e já criou um vínculo relativamente forte, o que foi proporcionado pela minha fixação nessa unidade de saúde há 3 anos - longitudinalidade. A abordagem do sujeito e não apenas de suas doenças, conforme acreditamos, estudamos (influência do Prof. Gastão) e, propositadamente, experimentamos na prática, pode ter contribuído para o vínculo e a satisfação.
Será que as pessoas que só conhecem o SUS através das notícias sempre negativas enfatizadas pela mídia ou através das salas de espera amiúde lotadas dos pronto-socorros públicos desconfiam que existe um SUS humanizado, onde encontros como esse acontecem todos os dias, onde profissionais de saúde e pacientes não falam apenas de doença?
Rubens Bedrikow
Campinas, 2012.
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