sábado, 3 de janeiro de 2015

Clínica lado a lado

Diante do salão comunitário, nos pontos mais ensolarados daquela estreita rua, tentávamos driblar o frio do início da manhã. No inverno, o céu limpo, sem nuvens, que sobrevem a um dia de chuva, é de infinita beleza. Sob o azul celeste, a maioria de nós escondia as camisetas verde-azuladas sob os pulôveres. Éramos apenas oito. Amiúde, somos mais, mas as férias e o frio encolheram o grupo. Moradores e profissionais de saúde decididos a caminhar por cerca de uma hora.
Tão logo encetamos os primeiros passos, divisamos Seu Antonio. Avizinhava-se a coxear lentamente. Culpa da artrose de quadril que chegara de há muito, de mala e cuia, e nunca mais partira. Protegido por uma camisa de flanela grossa, exibia seus cabelos brancos bem penteados e o semblante sossegado. Foi recebido com sorrisos, beijos e frases de boas-vindas. Não tinha certeza de que daria conta de acompanhar o grupo, mas arriscaria. A depender da dor, daria meia volta.
Achei por bem calcorrear ao seu lado, deixando livres os demais para seguirem no  ritmo que lhes conviesse. E não me arrependi.
Mais ouvi do que falei. Uma agradável conversa com o octogenário neto de italianos que trocaram Veneza pelas lavouras do interior paulista, ainda no auge do ouro verde. Muito provavelmente, aportaram em Santos, subiram a serra em trem e aguardaram seu destino nas dependências da Hospedaria de Imigrantes do Brás. O suor que deitaram na terra vermelha explica a opulência de cafezais paulistas de então. À medida que os filhos atingiam a idade adulta, partiam. Buscavam colocação em outra fazenda. Não foi diferente com seu Maneco, pai do meu companheiro de caminhada. Trocou a cafeicultura pela roça de milho e arroz nos arredores de Jaguariúna. Período de trabalho árduo. Antonio recorda bem dos sacos de café que carregou nas costas e do arroz que seus braços cortaram e recolheram. Suspeita que esse peso todo esteja na origem de suas dores. Marcas de um passado bem distante. Guarda também boas recordações. As festas organizadas pelos colonos da fazenda, e que só terminavam ao amanhecer. Prazenteiros momentos. Sorriu ao recordar os pais a dançar felizes as músicas italianas ou caipiras. Permaneceu no campo até seus trinta e três anos, sem ter tido a oportunidade de aprender a ler. Mostrou-se excelente narrador, capaz de prender a atenção deste interlocutor. Limitava-me, eu, a interpor curtos comentários ou perguntas no intuito de tão somente garantir a continuidade da prosa. Aos poucos, a cadência de nossos passos acompanhava o ritmo nostálgico da narrativa. Paulatinamente, as dores e receios ficaram distantes. Absortos nessa atmosfera, não atentamos para o fato de que havíamos deixado os outros para trás. 
Nos anos sessenta, o declínio da agricultura regional obrigou-o a buscar outras formas de sustento. Trocou o campo pela periferia de Campinas. Juntou-se ao irmão mais velho que encontrara guarida nestas paragens. Bairro em formação, quase sem nenhuma infra-estrutura, com predomínio de solo duro e seco de antiga propriedade rural de há muito abandonada. Todos os dias, despertava antes das cinco da manhã e, sob chuva ou não, dirigia-se ao novo emprego. Trabalhava no setor de caldeira de um hospital da cidade. Agora, produzia vapor. Tornou-se muito bom nessa tarefa. Isso não impediu que, anos depois, fosse mudado de setor em razão de não possuir um diploma. Conformado, aceitou a imposição. Conta que não raramente era chamado para resolver pepinos no antigo setor. Nessas ocasiões, não lhe exigiam diploma nenhum.
O discurso de Antonio correspondia à história oral de famílias de imigrantes italianos bem-vindos ao interior do estado durante o apogeu da cafeicultura paulista. Descrevia também o êxodo rural que acompanhou a industrialização do país. Momentos assim poderiam ser aproveitados por escolas da região para ensinar esse capítulo importante da nossa história. Levar estudantes para ouvir de antigos moradores relatos como este. 
Atualmente, prestes a festejar seus oitenta anos, diverte-se com seu cachorro, seu papagaio e sua calopsita. Há mais de uma década, nos brinda com sua presença nos grupos de caminhada, Lian gong e Movimento Vital Expressivo. Deste modo, não se rende à dor crônica. Teme ficar restrito a um andador e poucos cômodos, tal qual sua irmã que raramente desfruta da beleza do céu.
Proseamos muito, ele e eu, paciente e médico, mas não falamos de doença. A artrose avançada permaneceu no esquecimento. Depois de uma hora, estávamos de volta ao ponto de partida. Momento de compartilhar a experiência com os demais. 
Mais tarde, dei-me conta de que, durante a caminhada, não deixei de exercer a clínica, mas o fiz de uma forma diferente daquela que nos ensinam na faculdade. Fora do consultório, longe de analgésicos e antiinflamatórios, lado a lado com meu paciente, acompanhando-o. Tive enorme satisfação.

Rubens Bedrikow


Campinas, julho de 2014. 
Sr. Antonio - certeza de uma boa prosa

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