Quem é o medico generalista? É aquele que trata um pouco de tudo? Que cuida de criança, adulto e da saúde da mulher? Que cursou a residência de Saúde da Família? Que trabalha no Programa de Saúde da Família?
Recentemente ouvi o seguinte comentário: tem muito clínico por aí sendo rotulado de generalista, mas na verdade está exercendo apenas a clínica médica. Tem generalista com residência médica de pediatria, ginecologia, ortopedia e até oftalmologia.
Afinal de contas, quem é o generalista?
Aproveitarei o relato da minha incursão nessa nova área da medicina para fazer algumas reflexões sobre esse “novo médico”.
Com pouco mais de dez anos de formado, residência e título de especialista em Clínica Médica e seis anos como professor instrutor na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, mudei para Campinas e prestei concurso público para médico generalista do Programa de Saúde de Família, batizado de Paidéia naquele município.
Fui alocado no Centro de Saúde São Domingos, localizado no bairro de mesmo nome, perto da estrada que liga a rodovia Santos Dumont a Vinhedo. A população adscrita a minha equipe pertence a quatro bairros outros que o São Domingos e que não dispõem de centro de saúde próprio. São bairros pobres, desprovidos de asfalto, urbanização desordenada, várias casas de madeira, alta taxa de desemprego, violência, desnutrição. Muitos moradores são imigrantes nordestinos que vieram tentar uma vida melhor numa das cidades mais ricas da nação mas que, infelizmente como no resto do país, apresenta contrastes sociais vergonhosos. Enfim, passei a conviver com uma clientela em muitos aspectos muito diferente daquela que estava habituado a lidar na Santa Casa de São Paulo.
Atrás do centro de saúde, na periferia sul de Campinas, existe uma lagoa que, a exemplo de várias outras da região, está colonizada por caramujos infectados pelo Schistosoma mansoni. Confesso que antes de vir a Campinas não imaginava que esta seria uma cidade com alta prevalência de esquistossomose. Os pacientes com diagnóstico dessa moléstia eram orientados a comparecer à unidade às quintas-feiras a fim de receber o “Mansil” e permaneciam em observação por aproximadamente duas horas pois poderiam apresentar convulsões, náuseas, tontura.
Faço aqui uma primeira pausa para chamar a atenção de que o médico generalista deve se interessar pelas características do território e da população que lhe são adscritos, assim como pelos dados epidemiológicos mais importantes. Ninguém discutirá que ações visando a diminuição da desnutrição infantil, controle de parasitoses e de doenças como a esquistossomose são urgentes, na região acima descrita.
O modelo de assistência à saúde de Campinas preconiza que todo usuário que procure uma unidade de saúde seja escutado, que sua demanda torne-se conhecida da equipe local de referência. A esse processo de trabalho deu-se o nome de “acolhimento”.
Recordo-me da mãe com criança de colo que nos procurou com o intuito de marcar consulta com a pediatra. Infelizmente, a agenda daquela profissional estava lotada para toda aquela semana. Ao invés de simplesmente lhe dizer isso, nossa auxiliar de enfermagem conversou com a usuária e descobriu que a criança estava desnutrida, inapetente, que viviam em um sitio a quase uma hora de caminhada e que dificilmente retornariam se houvesse obstáculos à consulta. A percepção da gravidade do caso, possível somente porque a usuária foi escutada, determinou que a auxiliar procurasse o generalista que examinou a criança e intercedeu junto à pediatra que, sabedora dos detalhes do caso, realizou o atendimento, mesmo que para isso outra com menor urgência tivesse sua consulta reagendada.
A realização rotineira do “acolhimento” torna mais justo o agendamento das consultas que deixam de ser marcadas simplesmente em função da ordem de chegada dos usuários para obedecerem critérios mais técnicos que levam em conta a gravidade de cada caso. Priorizar os mais necessitados. Aproximamo-nos um pouco mais da justiça social na área da saúde. O generalista tem papel importante nessa “triagem” que objetiva atender primeiro e mais aquele que precisa mais. O generalista não deve somente aguardar o paciente agendado. Ele deve participar ativamente desse agendamento.
A criança desnutrida passou a ser uma preocupação de toda a equipe. O interesse e empenho demonstrados pelos profissionais levaram automaticamente ao fortalecimento do vínculo entre usuário e equipe cuidadora. Esse vínculo é desenvolvido com o transcorrer do tempo e necessita do contato relativamente freqüente entre profissional da saúde e usuário. O vínculo é considerado forte quando existe sintonia, cumplicidade, confiança, colaboração entre cuidador e usuário. Qualquer projeto terapêutico está fadado ao fracasso na ausência de vínculo do paciente com a equipe de referência ou de responsabilização da equipe em relação ao doente.
O generalista sabe que seu compromisso com o paciente não se encerra com a consulta. Compromete-se a acompanhá-lo no seu andar na vida, não o abandona quando o encaminha para consultar um especialista e fica atento para recebê-lo de volta. A esse compromisso chamamos de responsabilização.
O generalista não limita suas atividades ao centro de saúde e, quando necessário, realiza atendimentos no domicílio do paciente. Essas visitas domiciliares garantem o atendimento de pessoas que tem limitação de locomoção e não podem comparecer à unidade.
Uma de nossas visitas domiciliares tinha por objetivo primordial avaliar uma senhora idosa, portadora de hipertensão arterial e diabete melito que, devido à amputação de uma das pernas, dependia de cadeira de rodas para se locomover. Nossa tarefa, minha e da agente comunitária de saúde, era avaliar a necessidade de adquirir uma nova cadeira de rodas para a enferma. Sua casa situava-se numa área de invasão cuja urbanização desordenada criava um obstáculo adicional que era a dificuldade de encontrar os domicílios que deveríamos visitar. Mais de uma rua leva o mesmo nome e a numeração das casas freqüentemente não obedece lógica. Fizemos, então, uma primeira parada para perguntar a uma moradora do bairro se conhecia a casa que procurávamos. No colo da moradora estava uma criança e ao seu lado, no chão de terra, um cachorro muito magro, quase sem pelo, com aspecto repugnante e doente. Enxergar a criança convivendo com aquele animal moribundo fez com que, antes de prosseguirmos na missão original, nos detivéssemos mais uns minutos e pensássemos uma ação conjunta com a equipe de zoonoses para solucionar o problema canino. Uma segunda parada, minutos depois, também para perguntar pelo local da residência que procurávamos, nos colocou diante de uma jovem montada em um cavalo sem sela. Além da informação desejada, o encontro da amazona nos suscitou o questionamento sobre as possíveis doenças relacionadas à presença daquele tipo de animal no bairro. Já sabíamos que os moradores costumam levar os eqüinos para se banhar nas mesmas lagoas freqüentadas pelos humanos. Nem havíamos chegado à residência da senhora amputada e já enxergáramos dois outros problemas interessantes, ambos relacionados ao convívio das pessoas com animais domésticos mal cuidados. Esse olhar ampliado e diferenciado constitui-se numa das mais poderosas ferramentas do generalista.
Quando finalmente chegamos à casa procurada avistamos uma placa de madeira com o nome da rua e número da casa escritos com tinta branca porém com as letras invertidas, daquele jeito que fazem as crianças no início da alfabetização. Através da placa deduzimos o grau de escolaridade dos moradores e seu nível sócio-econômico. A cadeira de rodas usada pela enferma estava realmente muito judiada, provavelmente pelo esforço necessário para transportá-la pelas ruas de terra da vizinhança. Quisemos saber quem a ajudava a cozinhar, tomar banho, limpar a casa. Fomos, então, apresentados ao sobrinho que permaneceu o tempo todo calado. Mais tarde soubemos ser ele alcoolista e pouco caprichoso com suas atividades domésticas, o que explicava o fogão sujo. Perguntamos se ninguém mais morava na casa e ficamos sabendo da existência do filho, acometido por doença mental cujo diagnóstico correto a mãe não sabia, mas que explicava o fato de andar com nenhuma ou pouca roupa e sair correndo com uma faca atrás do primo. Em seguida, adentrou a vizinha, sorridente mulher com pouco mais de trinta anos e que limpava a casa da nossa paciente uma vez por semana, sem que fosse remunerada para isso. Separada do marido, recentemente perdera seu emprego e passava dificuldades para por comida no prato dos três filhos e mãe.
No trajeto de retorno para o Centro de Saúde, conversamos a respeito daquilo que encontramos naquela casa. A cadeira de rodas, sem qualquer sombra de dúvidas, não era o problema maior. Compartilhamos nossas impressões com o restante da equipe e elaboramos um projeto terapêutico para aquela família. Procuramos outros familiares que pudessem acolher a senhora amputada e o filho doente. Solicitamos ajuda da equipe de saúde mental para conduzir o caso desse filho com doença mental. A equipe da assitência social nos acompanhou à casa da vizinha e a incluiu em um dos benefícios possíveis. Entramos em contato com a igreja do bairro a fim de saber se uma das pastorais poderia ajudar a cuidar da enferma, levar-lhe remédios, limpar a casa.
O generalista exerce a clínica ampliada, a clínica que leva em consideração não apenas o sujeito e a doença mas também o contexto social, familiar, cultural, religioso no qual eles estão inseridos. Trabalha em equipe, compartilha saberes, procura recursos em outras áreas, participa de ações intersetoriais, explora o território, interessa-se pelos indicadores epidemiológicos da sua região. O olhar é cada vez mais ampliado. Enfim, exerce medicina de alta complexidade e altamente humanizada.
Rubens Bedrikow
Campinas, 2005.
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