sábado, 3 de janeiro de 2015

Olho no olho

Olho no olho
Saí para caminhar. Atividade saudável e ao mesmo tempo prazerosa. Dia bonito, céu azul, nem muito quente nem muito frio. Inverno com jeito de outono. Desta vez, decidi não levar nosso vira-lata pois evitaria assim os latidos dos outros, aqueles que ficam por trás dos muros, dos portões e das grades. Por que latem tanto? Será por raiva? Mas por que teriam raiva uns dos outros? Ou seria inveja por não estarem do outro lado passeando com seus donos? Não sei, mas os latidos são tão fortes, tão graves, rosnados. O melhor amigo do homem age como maior inimigo do cão. Por isso, para ter uma caminhada tranquila, é que o deixei em casa, esperando um segundo passeio mais tarde. Não adiantou. Um outro cachorro, jovem, de porte médio, ágil, pelagem negra brilhante, sem raça definida, passou correndo, parou, voltou e pôs-se a caminhar comigo. Não latiu, não se aproximou muito, mas seguimos na mesma direção, viramos na mesma rua e continuamos até beirar a mata. Minha filha mais velha, se estivesse comigo, certamente teria implorado para que adotássemos também esse desconhecido companheiro. Enquanto admirava seu porte, percebi que não escapara dos chatos latidos dos cães presos. De repente, sem nenhuma explicação, deu meia volta e partiu. Eu segui só, pela rua de paralelepípedo, sombreada, silenciosa, circundando a mata. Meu ritmo é bom. Considerando minha estatura mediana, caminho rápido. O fôlego vai bem. O pensamento recuperou então a frase da doutora diante de meus exames: “Esse aumento do ALT deve ter relação com a dislipidemia. Você pode vir a ter cirrose. Vamos investigar. Vou pedir mais alguns exames”. Me sentia tão bem! Mas isso pode não significar nada se os exames decretarem diferente. Divagava sobre o poder dos exames, sobre o método clínico, sobre os anos que vão se acumulando. Já são cinquenta. 
Foi então que a vi. Não temos exatamente a mesma cor de pele, mas somos os dois morenos. Ela, com certeza, menos que a metade da minha idade. Mesmo assim, esboçou certa curiosidade e não desviou o olhar. Assim como eu, dedicava-se aos exercícios matinais. Ela, mais leve, no peso ideal, muito provavelmente sem lombalgia, dislipidemia ou risco de cirrose. Acho que esses assuntos nunca lhe passaram pela cabeça. Torci para que ninguém nunca inventasse de pedir exames para ela. Não parei, mas reduzi um pouco a velocidade da marcha a fim de admirá-la mais um tempo. Não disse nada. 
O que teria passado pela sua cabeça? Que tipo de pensamento? Me achou velho? Fora de forma? O que aquele olho no olho relativamente longo significara? Provocaria alguma mudança, ainda que pequena, no seu dia? Já teria esquecido o cruzamento de olhos? Nos veríamos de novo? Costumo caminhar por lá.
Eu era apenas mais um que passava e, muito provavelmente, ela agia da mesma forma com os demais, lá de cima da árvore, comendo algum fruto ou folha e equilibrando-se com ajuda de sua longa cauda. 

Rubens Bedrikow
Campinas, domingo 7 de julho de 2013 (noite).

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