Não esboçou qualquer dúvida diante da radiografia de tórax do enfermo febril e pálido, em sofrimento com a tosse, por vezes com hemoptise, que não lhe concedia trégua. Não hesitou ao estabelecer o diagnóstico de tuberculose miliar comprometendo os dois pulmões. Indicou isolamento respiratório na sala “VIP” do Pronto Atendimento e transferência para um hospital. Decisão tomada, deixou o paciente sob os cuidados da equipe de enfermagem e desviou sua atenção para outras pessoas em sofrimento, adoentadas ou traumatizadas. Vários atendimentos depois, passou o plantão a um colega. Aquele doente tuberculoso parecia equacionado e apenas aguardava a remoção, o que não ocorreria nas próximas 36 horas. Entrementes, outras passagens de plantão sucederam e o tísico permanecia alí, isolado, portando máscara bico de pato, assim como sua esposa, acomodada no sofá ao lado.
A reviravolta veio no terceiro dia de internação. Um outro médico desconfiou do diagnóstico tão logo cruzou seu olhar com a conjuntiva amarelada do paciente que exibia taquipneia, taquisfigmia e laivos de sangue na expectoração. Uma olhadela nos exames denunciou o que suspeitava: insuficiência renal.
O achado radiológico não correspondia a tuberculose miliar, mas sim a pneumonia intersticial associada a hemorragia pulmonar decorrente de leptospirose. Segundo a OMS, é a zoonose mais comum no mundo e costuma assumir forma epidêmica após enchentes e estações chuvosas. O sangramento pulmonar é complicação muito grave e sua principal causa de morte. O encontro de icterícia, disfunção renal e fenômenos hemorrágicos indica forma grave da doença, com comprometimento de múltiplos órgãos, a assim chamada síndrome de Weil, em homenagem ao médico que primeiro descreveu a doença, em 1886. Nesses casos, a letalidade é elevada - superior a 10%. Diante dessa nova situação, a remoção foi rápida.
Interessante notar que a icterícia - coloração amarelada da pele e das mucosas - não apareceu em nenhum registro médico, mas esteve presente nas anotações de todas as equipes de enfermagem que se sucederam naqueles dias.
Por que os médicos não enxergaram o amarelo dos olhos do doente? Sofriam de discromatopsia? Olharam e não viram? Não olharam? A radiografia os cegou? Este exame complementar, ao invés de ajudar, aparentemente prejudicou, uma vez que induziu o médico a concluir, equivocadamente, por tuberculose miliar. Uma vez esse diagnóstico firmado, os médicos tiveram sua capacidade de enxergar comprometida? Esse é um dos riscos de se concluir por um diagnóstico. O processo de trabalho - extenuante, apressurado, estressante - próprio (?) de uma unidade de urgência/emergência, os impediu de fitar os olhos nos olhos? Ou seria o tipo de clínica praticada, centrada no biológico, no médico e nos exames?
Os profissionais de enfermagem perceberam e registraram a icterícia. Conservaram a percepção da cor amarela nos olhos do doente. Nisso, distinguiram-se dos médicos. Seria porque não se guiam por exames complementares? Chegaram a sugerir, em suas anotações, o diagnóstico de leptospirose, mas os médicos não costumam ler as anotações deixadas pelos auxiliares e enfermeiros. Como se dá o trabalho em equipe naquele espaço?
Não bastam os olhos. Enxergar exige interesse e atenção pelas pessoas. Os mesmos exames capazes de atravessar o corpo humano e detectar sinais de doenças, podem bloquear a nossa capacidade de perceber outras possibilidades.
Ainda que o local de trabalho e o doente sejam comuns às duas profissões, enfermeiros e médicos percebem de forma diferente a realidade e o sofrimento das pessoas.
Rubens Bedrikow
Campinas, 11 de março de 2010.
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