Médico generalista de equipe de saúde da família de Campinas, reservei a manhã de uma quarta-feira para acompanhar os agentes comunitários na sua lida contra o famigerado mosquito transmissor da dengue. Portando calça jeans, camiseta, tênis e o jaleco amarelo sem manga, na esperança de confundir-me com minhas cicerones, deixei o módulo de saúde do Jardim Fernanda em direção ao ponto de ônibus, na companhia da sempre sorridente Schirlene. Partir do módulo e não do centro de saúde São Domingos, onde habitualmente trabalho, fez parte da estratégia de não chamar a atenção dos pacientes conhecidos. Schirlene passou duas vezes seu cartão e não me deixou pagar a passagem. Na primeira parada, subiram Maria Cristina e Ivanete. Tão logo encerramos a chistosa apresentação deste recém promovido agente de saúde, curtimos nossa breve viagem pelas esburacadas vias, desprovidas de asfalto, dos bairros Dom Gilberto e Campo Belo II. Algumas sacudidas à frente e abandonamos o judiado transporte coletivo para, enfim, caminhar pelas ruas da Cidade Singer. Nesse momento, nosso séquito enriquecera-se com Janaína e Maria Mello.
Coube à Maria Cristina a tarefa de planilhar - gíria usada por elas para preencher a planilha com o nome da rua, número da casa, nome do morador presente e resultado da pesquisa larvária. Naquele bairro periférico, mais de uma rua leva o mesmo nome e a numeração das casas - quando presente - não obedece necessariamente uma ordem lógica.
As ruas são invariavelmente de terra, os muros das casas de tábuas de larguras variadas, texturas diversas, não raras vezes com pontas de pregos exteriorizadas e vãos que facilitam aos transeuntes mais curiosos a observação dos quintais, também de terra dura. Sobre as casas, as caixas d’água azuis contrastam com a tonalidade ocra predominante naquelas bandas. Azuis também os cilindros que reservam água trazida pelos caminhões-pipa.
Nenhuma casa é esquecida pelos agentes de saúde que batem palmas, chamam em voz alta e são recebidos pelos donos das casas, crianças com chupeta e cães nem sempre muito afeitos a estranhos. Aliás, foram estes carnívoros amigos do homem, elevados à condição de mantenedores da segurança privada numa área da cidade onde a polícia evita fazer incursões após o crepúsculo vespertino, que mais preocupação e dificuldades nos trouxeram naquela manhã. Não se recomenda adentrar uma casa sem antes checar se o animal de estimação está bem acorrentado pois, tão logo percebem a presença do invasor, passam a pular, latir e rosnar com o intuito de se ver livre para o ataque ou simplesmente intimidar o desconhecido visitante. Lembrei das histórias de mordeduras de cães relatadas por alguns agentes em reuniões de equipe. Apesar disso, exceto numa ou duas casas guardadas por cães de fila, não vi nenhuma agente deixar de realizar sua tarefa, mesmo diante da ameaça de hostis animais, fossem eles cães ou gansos.
Fomos bem recebidos em todas as residências, inclusive por aqueles moradores que não conseguiam disfarçar a cara de sono, com certeza despertados por nós ao redor das oito da manhã. Chegamos a comentar que durante o inverno a receptividade poderia ser pior.
Uma vez ultrapassado o portão, nossos olhos não paravam de procurar possíveis criadouros de larvas de mosquitos. Perguntávamos sobre o estado de saúde dos moradores, febre, carteira de vacinação das crianças e avisávamos que no próximo dia 3 seriam oferecidas 100 vagas para tratamento dentário no Centro de Saúde.
As tampas dos tambores e demais reservatórios de água foram retiradas e o interior examinado na busca por larvas. Tão logo as primeiras foram detectadas, me aproximei para testemunhar o feito, aprender a capturá-las com pipeta e transferi-las para tubos de ensaio. A sorte grande estava comigo, pois fui iniciado nessa atividade nada menos que pela perita em captura de larvas de Aedes aegypti, Ivanete. Não disfarcei o sorriso quando, mais tarde, capturei três com uma só “pipetada”.
Infelizmente, não foi possível conservar o sorriso por muito tempo. Não diante das crianças nuas, algumas iniciando a marcha, chupeta na boca, descalças, sujeitas a ferimentos com pregos, latas ou pedras. Pensei que Deus protegia especialmente tais crianças.
Marcos, 9 anos, nos autorizou a adentrar o terreno do vizinho, ausente há quinze dias. Coletamos larvas. Esvaziamos e tombamos o tambor de 500 litros. Quatro metros acima, avistei o menino guia e a agente de saúde Janaína, inspecionando uma caixa d’água. Hesitei em subir. Não me sinto bem nessas alturas, mas ponderei que, se a agente de saúde, mãe do Willian, de 3 anos, encarava tais riscos, eu deveria mostrar coragem. Cada degrau de madeira que deixava abaixo, a aflição aumentava. Concluí que uma doença como a epilepsia era incompatível com a profissão de agente comunitário de saúde. Questionado sobre o motivo de não estar na escola, nosso agente-mirim apontou a dificuldade de vaga na escola. Mais tarde, vim a saber outra explicação: ele precisava vender latas! Cada quintal que adentrávamos, a percepção de angústia, receio, apreensão, sorriso, contentamento. Convites para café, água, conversa. Como se manter indiferente diante das três adoráveis crianças, catarrosas, rostinhos imundos, acocorocadas, a engolir o pão com margarina e o cafedório matinais? Claudiane, a mais velha, tomou a iniciativa de abrir o portão e nos acompanhar. Os pequenos Evelin e Nilo nos fitavam com desconfiança quase esquecendo as canecas ainda cheias pela metade. O pequeno de 2 anos se manifestou através de um choro débil, quase imperceptível. A mãe, ausente, confiou à filha de 9 anos o cuidado dos irmãos menores e saiu batalhar a grana do mês ou da semana. Não longe daquela casa, nos deparamos com a cadela Neguinha, puérpera de 7 filhotes. Seu aspecto repugnante vinha da moléstia cutânea responsável por numerosas áreas de peladura. Nosso olhar de asco foi o suficiente para a proprietária do lazarento animal prometer uma visita ao veterinário.
A guerra ao mosquito transmissor da dengue consiste na educação dos moradores, busca ativa de larvas, coleta de potenciais criadouros, uso de larvicidas nos reservatórios de água e pulverização de inseticidas. Schirlene encheu o “sanito” - saco plástico de lixo - com copos de papel, vasos velhos, latas de cerveja, caixas de margarida, potes de iogurte e uma tampa de liquidificador. Maria Mello detectou água parada sobre uma bola de futebol murcha, escondida entre as plantas no quintal. Janaína recolheu uma caixa de ovos com 12 meias esferas suspeitas de abrigar água após as chuvas de verão. Não vi nenhum vaso de planta. Cogitei tratar-se do efeito das campanhas veiculadas pela mídia. Segundo Maria Cristina, não é costume dos moradores da periferia manter vasos de plantas. Nas áreas mais ricas da cidade, a situação seria outra. Da mesma forma, são os moradores dos bairros mais abastados que resistem mais às visitas dos agentes de saúde.
O larvicida BTI chega acondicionado em pequenos potes e se apresenta sob a forma de pó ocre com cheiro de ração de peixe, segundo o apurado olfato da Schirlene, ou ainda como grãozinhos amarelos com odor de Nescau. Recomenda-se uma pazinha do produto para cada 250 litros de água.
Transcorrida a primeira metade da manhã, juntou-se a nós o jovem supervisor da dengue. Gionanni apanhou uma tela na perua “pick-up” e cobriu um reservatório de água. Nos acompanhou por 30 minutos e partiu prometendo retornar para a carona do regresso.
O encontro de homens em muitas das casas me fez pensar que trabalhavam à noite ou estavam desempregados. Não sei bem ao certo a razão, mas acreditei mais na segunda explicação.
Uma jovem de 16 anos, oriunda de Manaus e há pouco em Campinas, contou que viera atrás do amado, radicado por aqui desde o ano anterior. Passava o dia em casa e pouco ou nada sabia sobre a dengue. Da mesma forma, mostrou-se ignorante sobre métodos de contracepção e não conhecia o Centro de Saúde do bairro. Anotamos seu nome e endereço e a convidamos a nos visitar.
Minhas pernas já pediam descanso quando sabiamente decidimos encerrar as atividades. Cento e sessenta domicílios minuciosamente visitados. Acomodados na caçamba da perua conduzida por Giovanni, decidimos almoçar todos juntos. À tarde, reunião científica da nossa equipe.
Uma manhã como agente de saúde propiciou-me conhecimentos e vivências que jamais experimentaria dentro do consultório. Aquilo que observei, aprendi, senti me fez entender melhor aqueles profissionais. Exige-se deles preparo físico, coragem, bom relacionamento inter-humano, senso aguçado de observação, conhecimentos de saúde pública e sobre as atividades e programas desenvolvidos nas unidades básicas de saúde.
Os médicos que tiverem a oportunidade se aventurar nessa atividade, mesmo que por um dia, trabalharão mais integrados aos agentes de comunitários de saúde e conhecerão melhor os desafios e as redes sociais dos moradores do território visitado.
Deixo, portanto, a sugestão de “um dia de agente” para os médicos em geral.
Rubens Bedrikow
Campinas, 2003.
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