sábado, 3 de janeiro de 2015

Saúde da Família como Medicina de Estado

        INTRODUÇÃO
A Estratégia de Saúde da Família (ESF), balizada pelos princípios do Sistema Único de Saúde (SUS), tem a missão de ser a estratégia estruturante principal da atenção primária no país. Trata-se de uma aposta do Estado brasileiro para diminuir as desigualdades de acesso e melhorar a qualidade de atenção à saúde. Alguns conceitos e princípios que regem o funcionamento da ESF identificam-se com características da medicina de Estado que se desenvolveu na Alemanha, no começo do século XVIII, e que Foucault descreveu no livro “Microfísica do Poder”.
A medicina de Estado
De acordo com Foucault, a medicina de Estado alemã representa a primeira etapa na formação da medicina social, seguida pela medicina urbana francesa e da medicina da força de trabalho na Inglaterra (FOUCAULT, 1984). Fez parte ou surgiu a partir de uma ciência do Estado que agrupava por um lado, “um conhecimento que tem por objeto o Estado[..]por outro lado[…]o conjunto de procedimentos pelos quais o Estado extraiu e acumulou conhecimentos para melhor assegurar seu funcionamento” (FOUCAULT, 1984). A prática médica resultante dessa ciência do Estado centrou-se na melhoria da saúde da população e se conduziu pelos princípios da “polícia médica”:
1˚) Um sistema muito mais completo de observação da morbidade do que os simples quadros de nascimento e morte. Observação da morbidade pela contabilidade pedida aos hospitais e aos médicos que exercem a medicina em diferentes cidades ou regiões e registro, ao nível do próprio Estado, dos diferentes fenômenos epidêmicos ou endêmicos observados.
2˚) Um fenômeno importante de normalização da prática e do saber médicos. Procura-se deixar às universidades e sobretudo à própria corporação dos médicos o encargo de decidir em que consistirá a formação médica e como serão atribuídos os diplomas. Aparece a idéia de uma normalização do ensino e, sobretudo, de um controle, pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas.[…]
3˚) Uma organização administrativa para controlar a atividade dos médicos.[…]um departamento especializado é encarregado de acumular as informações que os médicos transmitem, ver como é realizado o esquadrinhamento médico da população, verificar que tratamentos são dispensados, como se reage ao aparecimento de uma doença epidêmica, etc., e, finalmente, emitir ordens em função dessas informações centralizadas. Subordinação, portanto, da prática médica a um poder administrativo superior.
4˚) A criação de funcionários médicos nomeados pelo governo com responsabilidade sobre uma região, seu domínio de poder ou de exercício da autoridade de seu saber.[…]uma pirâmide de médicos, desde médicos de distrito que têm a responsabilidade de uma população entre seis e dez mil habitantes, até oficiais médicos, responsáveis por uma região muito maior e uma população entre trinta e cinco e cinquenta mil habitantes. Aparece, neste momento, o médico como administrador de saúde. (FOUCAULT, 1984).
Coube à medicina de Estado alemã aperfeiçoar e desenvolver a força estatal, isto é, “a força do Estado em seus conflitos, econômicos certamente, mas igualmente políticos, com seus vizinhos” (FOUCAULT, 1984).
Scliar (2002) reconhece na polícia médica alemã um “conceito eminentemente autoritário e paternalista, preocupado, sobretudo, com os aspectos legais das questões de saúde”. A polícia médica seria a forma de alcançar a ordem e “implica o poder da intervenção do Estado, que poderia não apenas colher as informações que julgasse necessárias sobre as pessoas, como também adotar medidas relacionadas ao modo de viver e à educação das crianças” (SCLIAR, 2002). 
Para Nunes (2000), “A Polícia Médica aparece como parte do esquema da organização do Estado cujo objetivo supremo era colocar a vida econômica e social a serviço da política do poder do Estado e, para isso, era fundamental um conhecimento completo da vida da população, a fim de controlá-la por meio de uma legislação que cobrisse todos os aspectos da sua vida, incluindo o controle da profissão médica”. 

A Estratégia de Saúde da Família (ESF)
A ESF nasceu com o nome de Programa de Saúde da Família (PSF), no momento em que o país buscava medidas concretas para consolidar uma reforma sanitária iniciada duas décadas e que já avançara ao incorporar seus princípios e diretrizes na Constituição de 1988. A indignação pela desigualdade de acesso da população e pela má qualidade do sistema de saúde foi um fator determinante para o surgimento do PSF.
Tem como objetivo principal “Contribuir para a reordenação do modelo assistencial a partir da atenção básica, em conformidade com os princípios do Sistema Único de Saúde” (BRASIL, 1997).
Andrade et al. definem a ESF como 
“um modelo de atenção primária, operacionalizado mediante estratégias/ações preventivas, promocionais, de recuperação, reabilitação e cuidados paliativos das equipes de saúde da família, comprometidas com a integridade da assistência à saúde, focado na unidade familiar e consistente com o contexto socioeconômico, cultural e epidemiológico da comunidade em que está inserido” (ANDRADE, BARRETO e BEZERRA, 2006).
De acordo com a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), “As equipes de Saúde da Família devem estar devidamente cadastradas no sistema de cadastro nacional vigente” (BRASIL, 2012). A PNAB considera que cabe ao Estado “Planejar, apoiar, monitorar e avaliar a atenção básica” e “Estabelecer mecanismos de controle, regulação e acompanhamento sistemático dos resultados alcançados” (BRASIL, 2012).
A alimentação regular do Sistema de Informação de Atenção Básica (SIAB), constitui requisito obrigatório para recebimento dos incentivos oferecidos pelo Ministério da Saúde (MS) e permite aos gestores municipais, estaduais e federal o acompanhamento contínuo e a avaliação das atividades desenvolvidas. 
Outra ferramenta adotada pelo MS, capaz de monitorar e avaliar processos e resultados, é o Programa Nacional de Melhoria de Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Para isso, serve-se de indicadores contratualizados com as equipes de atenção básica. O PMAQ também exige a alimentação mensal do SIAB, do Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan) e do Módulo de Gestão do Programa Bolsa-Família na Saúde. Outra ação prevista é a avaliação externa das equipes de atenção básica.

DISCUSSÃO
Desde sua criação oficial, em 1994, a ESF vem ganhando importância e ampliando sua cobertura nos diferentes estados e municípios do país, alcançando o status de principal modelo de atenção à saúde no nível primário. Variados desafios - tais como a dificuldade de fixação de médicos em algumas equipes e o subfinanciamento do sistema de saúde como um todo - obstaculizam ou atrasam a implantação mais ampla da estratégia. Efeitos positivos da ESF têm sido observados, notadamente no que diz respeito à queda da taxa de mortalidade infantil, acompanhamento e controle de doenças crônicas, implementação de medidas de prevenção e diagnóstico precoce, identificação de problemas de ordem social no interior das famílias, preparação das equipes de saúde para lidar com os problemas a partir das famílias e da base territorial e a utilização de novas metodologias de trabalho (MARSIGLIA, 2007).   
O modo como se organiza a ESF e algumas funções que desempenha no sistema de saúde brasileiro, assim como diversas atribuições e atividades do profissionais das equipes de saúde da família, têm como origem ou apoiam-se em conceitos que estruturaram a medicina de Estado alemã, no século XVIII. 
Os moradores de determinado território adscrito a determinada equipe de saúde da família devem ser cadastrados e visitados mensalmente por agentes comunitários de saúde, de forma que tal informação esteja disponível tanto para a equipe como para gestores mais centralizados do sistema de saúde. Os profissionais, na sua prática diária, são solicitados a preencher planilhas com o número do cartão nacional de saúde de cada pessoa atendida, o nome ou as iniciais do nome, data de nascimento, tipo de atendimento e código da doença principal. Tais ações assemelham-se muito ao que a “polícia médica” alemã exigia e colocava em prática, isto é, um sistema de observação de morbidade pela contabilidade pedida aos médicos e o esquadrinhamento médico da população.
O exercício do poder médico sobre determinado território e o controle do que viria a ser esse saber médico oficial e único autorizado, também condizem com os princípios da “polícia médica”. Idem a organização piramidal do corpo médico, com responsabilidades ascendentes sobre territórios adscritos, presente tanto na ESF como na medicina de Estado alemã. Atualmente, as equipes responsáveis por determinado território, respondem a equipes/gestores distritais, municipais, estaduais e federal, numa lógica de organização administrativa semelhante a da medicina de Estado, com subordinação da prática médica a um poder administrativo superior.
A normalização do ensino, da prática e do saber médicos, sob controle do Estado, em conformidade ou ditada por corporações médicas, faz-se presente até hoje nos documentos, tratados, consensos e diretrizes que pretendem nortear as ações e atividades dos profissionais, nos currículos das escolas médicas e dos demais profissionais de saúde, nos programas de residência médica e nos requisitos para obtenção de diplomas ou certificados necessários para que possam  exercer suas profissões. Dita normalização conserva princípios da “polícia médica” alemã que deixava às universidades e à corporação médica a incumbência de decidir sobre a formação médica e a outorga de diplomas. No caso específico do médico de família e comunidade, sua formação obedece ao que preconizam a Comissão Nacional de Residência Médica e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, por sua vez vinculada à Comissão Iberoamericana de Medicina Familiar. São tais corporações que definem o perfil ideal do profissional médico que deveria compor as equipes de saúde da família (BEDRIKOW, 2013).  
Portanto, ainda que focada na melhoria de saúde da população, a ESF igualmente serve ao aperfeiçoamento e desenvolvimento de uma força estatal, implica o poder da intervenção do Estado e faz parte do esquema da organização do Estado cujo objetivo supremo é colocar a vida econômica e social a serviço da política do poder do Estado.

Referências bibliográficas
  1. Foucault M. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 4a ed., 1984.  
  2. Scliar M. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002. 
  3. Nunes ED. A doença como processo social. In: Canesqui AM. (org). Ciências sociais e saúde para o ensino médico. SP: Hucitec/Fapesp, 2000, p. 217-229.
  4. Girade HA. Assim nasceu o programa Saúde da Família no Brasil. In: Memórias da Saúde da Família no Brasil. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.
  5. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Assistência à Saúde. Coordenação de Saúde da Comunidade. Saúde da Família: uma estratégia para a reorientação do do modelo assistencial. Brasília. Ministério da Saúde, 1997. 
  6. Andrade LO, Barreto ICHC e Bezerra RC. Atenção Primária à Saúde e Estratégia Saúde da Família. In: Campos GWS et al. (org). Tratado de Saúde Coletiva. São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 783-836.
  7. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Política Nacional de Atenção Básica / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. - Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
  8. Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. Programa Nacional de Melhoria de Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ): manual instrutivo / Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Atenção Básica. - Brasília: Ministério da Saúde, 2012.
  9. Marsiglia RMG. Famílias: questões para o Programa de Saúde da Família (PSF). In: Acosta AR e Vitale MAF (organizadoras). Família : redes, laços e políticas públicas. São Paulo: Cortez editora / IE PUC-SP, 2007.
  10. Bedrikow R. A clínica e as políticas públicas de saúde para a atenção básica no Brasil. [Tese de doutorado]. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas; 2013.
Campinas, abril de 2014.

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