sábado, 3 de janeiro de 2015

Feridas médicas

      O semblante tranqüilo e a fala pausada da senhora que acompanhava o marido José a mais uma consulta naquele Pronto Socorro Municipal do interior do estado deixavam transparecer a resignação da cuidadora. Pudera, o companheiro de lutas, bailes, viagens, carinhos, confidências, já não conversava, não andava, nem mesmo sentava. Mais uma vítima de derrame, chamado de acidente vascular encefálico pelos cientistas. A comida passou a ser dada através de uma sonda que entra pelo nariz e chega ao intestino. A dieta tem que ser líquida e seguida de água para evitar a obstrução da sonda. A troca de fraldas já nem dava trabalho. Afinal de contas já se iam mais de cinco anos de cuidados diários, sem férias, passeios, conversas. Nem um dia de folga, pois isso seria um luxo com conseqüências imperdoáveis. Orgulhava-se de haver conseguido evitar as cruentas feridas, popularmente escaras, provenientes da pressão contínua que as protuberâncias ósseas exercem sobre a pele que as recobre. Essas úlceras de pressão aparecem nas pessoas que não se movem.
Infelizmente, as temidas escaras finalmente surgiram, por ocasião de internação prolongada. A esposa só as percebera ao retornar ao lar. As feridas não lhe haviam sido mostradas durante a estadia hospitalar. 
Esta era a segunda vez que procurava ajuda no pronto socorro para tratar as escaras. Da primeira vez, os médicos diagnosticaram pneumonia e deram alta com antibiótico. O pulmão melhorou, mas as feridas estavam piorando. Por isso, retornou.
Diante da minha intenção em retirar a fralda e examinar as feridas sacral (referente ao osso sacro que forma a parte posterior da bacia) e trocantéricas (tuberosidades na parte superior dos fêmures), a senhora advertiu: “cuidado que o cheiro é insuportável”. Portando luvas e máscara, confirmei aquilo que a acompanhante descrevera: feridas profundas com tecido morto e secreção fétida. Procedi à coleta da secreção para análise e pesquisa da bactéria responsável pela infecção, solicitei exames de sangue, prescrevi antibiótico e indiquei internação. Somente bem mais tarde, me dei conta que poderia ter oferecido uma máscara também à esposa do paciente.
Comuniquei à auxiliar de enfermagem encarregada daquele setor minha intenção de interná-lo, a necessidade de cuidados intensivos de enfermagem e até mesmo a participação da equipe de cirurgia retirando o tecido morto das feridas. A internação seria, muito provavelmente, prolongada.
A profissional de enfermagem executou todos os procedimentos a contento, mas comentou que não acreditava na história da acompanhante. A seu ver, as escaras não tiveram origem no hospital e sim após o retorno do enfermo ao lar.
Chegado o término do plantão, transmiti ao colega que assumiria meu posto minhas impressões sobre o doente que, no meu entender, mais necessitaria de atenção da equipe. Nem bem relatei tratar-se de pessoa acamada há cinco anos por seqüela de acidente vascular encefálico, portador de úlceras de pressão infectadas, meu substituto já interrompera para manifestar sua intenção de dar alta para prosseguir o tratamento em casa. Argumentei que os cuidados ministrados no domicílio tinham sido incapazes de obter melhora das feridas. O estado do enfermo era preocupante.
No trajeto para casa, me perguntava o que acontecera, quais as interpretações possíveis para a reação da auxiliar de enfermagem ao fazer questão de deixar claro que as escaras tiveram origem no domicílio e não no hospital, e do médico que, mesmo antes de examinar o paciente ou de conhecer sua esposa, já estava decidido a dar alta. Conversei a respeito com entes próximos. Num primeiro momento, parecia que os profissionais de saúde, mesmo inconscientemente, incomodavam-se com um enfermo trabalhoso.
Algumas semanas se passaram desde aquele plantão e várias outras reflexões ganharam espaço. 
Acreditar que as escaras surgiram em casa e não no hospital equivaleria a culpar o cuidador e se despojar, enquanto profissional de saúde, dessa falha. O culpado tende a agir com submissão. O profissional de saúde, geralmente, é quem domina a relação com o doente ou seu familiar. Deixar claro que o cuidador foi incapaz de cuidar bem do enfermo reforça ainda mais a diferença de poder nessa relação. Permite ao dominador tomar decisões unilaterais, debilmente questionadas pelos fragilizados cuidadores. Decisões como, por exemplo, altas hospitalares mal pactuadas.
Por que, por ocasião da visita anterior ao pronto socorro, o paciente que fôra trazido por causa das escaras, recebeu alta com o diagnóstico de pneumonia, deixando as feridas em segundo plano? Sabemos lidar melhor com doenças agudas? Estamos bem preparados para lidar com moléstias que exigem mais tempo e trabalho para recuperá-las? Sabemos lidar melhor com doenças detectadas por exames complementares? Lembro-me do enfermo idoso que procurou um hospital devido a dor pélvica e recebeu alta quatro dias depois com encaminhamento para o ambulatório de cirurgia torácica devido ao achado de imagem sugestiva de tumor na radiografia de tórax. A dor pélvica decorria da bexiga repleta de urina pois sofria de doença prostática que impedia o esvaziamento da bexiga. A dor foi facilmente aliviada através de sonda vesical colocada em unidade de saúde de outro município, somente após a alta hospitalar.       
Os doentes portadores de seqüela grave de acidente vascular encefálico, assim como vários outros que perdem sua capacidade de viver por si só,  não têm vontade, não pedem, não reclamam, não contribuem, não agradecem. Deixam de ser cidadãos. Como consideramos esses indivíduos na nossa prática diária? Como os atendemos?
E a cuidadora? Procurou o pronto socorro pois julgou que seu marido necessitava de cuidados que ela não era capaz de dar conta. Se seu marido recebeu alta de internação prolongada com escaras, por que as mesmas lhe foram escondidas? E se as escaras surgiram após a alta, como afirmou a auxiliar de enfermagem, por que a cuidadora sentiu a necessidade de afirmar o contrário? Teria ela dificuldade em aceitar seu “fracasso” na tarefa de preveni-las? Ou teria dificuldade de enfrentar a equipe de saúde? Estão os profissionais de saúde preparados para lidar com essas dificuldades? Dificuldade da cuidadora ou dos profissionais?
Qual a relação entre esse modo de agir e o modelo de saúde hegemônico? A antropologia, sociologia, filosofia foram se distanciando das escolas médicas e por conseqüência dos hospitais e outras unidades de saúde do nosso país. Perderam lugar para a tecnologia, a produtividade. Considera-se bom profissional aquele que atende rapidamente grande número de doentes, domina tecnologias sofisticadas e ganha dinheiro.
Seria bom se pudéssemos ouvir a opinião de pacientes como o senhor José.

Rubens Bedrikow

Campinas, 7 de setembro de 2005.

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