Exerço a Clínica Médica e a Medicina de Família em Centro de Saúde na periferia de Campinas, Estado de São Paulo. Quase todos os dias recebo pacientes do sexo feminino para atendimento individual ou em grupo com queixa de dores em várias partes do corpo. Essas mesmas dores as conduzem também aos sempre lotados pronto socorros, as afastam do trabalho, tornam as tarefas domésticas penosas, as impelem a tomar antidepressivos, anti-inflamatórios, analgésicos, a perder mais rapidamente a paciência com seus filhos e maridos, a chorar no consultório. Provavelmente representam, nos dias atuais, o principal motivo de procura dos serviços de saúde por parte das mulheres entre 30 e 50 anos, juntamente com os problemas ginecológicos.
Essas dores são alcunhadas por nós, médicos, de fibromialgia, tendinite, mialgia, lesões por esforço repetitivo. Freqüentemente, culminam com receita, às vezes encaminhamento para fisioterapia ou Liang gong e não raramente atestado médico. Amiúde teimam em não abandoná-las ou recidivar.
Quem são essas mulheres, cada vez mais numerosas, consumidoras dos nossos serviços de saúde? São fruto de uma revolução que as inseriu masculinamente no cruel mercado de trabalho, sem poupá-las das arraigadas obrigações femininas e maternais do lar. São pessoas do sexo frágil que conquistaram o direito de trabalhar dentro e fora de casa. Madrugam, aprontam filhos, netos e maridos para escola e trabalho, pegam ônibus, batem cartão, repetem horas a fio os movimentos exigidos pela produção, braços para cima, para baixo, direita, esquerda, varrem, esfregam, lavam, secam, agacham-se, erguem-se, curvam-se, carregam baldes, torcem panos, cortam, temperam, mexem comida, areiam panelas, molham paredes, janelas, escadas, arrumam camas, colocam a mão na região lombar para ver se a dor passa, sentem a pele grossa, as fissuras digitais, exaurem-se, pensam nos pimpolhos no lar, no marido que freqüenta bar, que perdeu o emprego, que deixou de pagar conta, nem sombra daquele homem romântico que lhe prometera estrelas, mas não aquelas provenientes das ébrias agressões, que trocou as flores pelos vômitos, os beijos pelos safanões, as carícias pelos hematomas. De volta à morada, cozinham, lavam, enxugam, guardam, torcem, dependuram, agacham-se, levantam-se, esfregam, educam, gritam, choram e até se entregam.
Faz falta a comadrice na calçada, no banco da praça, ao entardecer, enquanto as crianças brincam de pega-pega e esconde-esconde. Acho que nem existe mais comadre. Só aquela do hospital, fria e chata. Faz falta o esmalte, o batom, o sorriso, a gargalhada. Falta o ombro, o colo, o passeio mão na mão. O companheiro já não acompanha. Falta a grana no fim do mês. Na metade do mês.
Nós, profissionais de saúde, sabemos solicitar a ultrassonografia para detectar a tendinopatia do supraespinhoso, a radiografia de coluna para não detectar a causa da lombalgia, a eletroneuromiografia para importunar ainda mais nossos doentes, a fisioterapia para deixá-los na fila de espera por mais alguns anos, avaliação do ortopedista para constatar que todos tratamos de forma semelhante aqueles que sofrem de dor crônica agudizada: analgésicos, anti-inflamatórios, antidepressivos. Quando os remédios do “Postinho” não resolvem, a esperança é transferida para a cara panacéia alardeada pelos propagandistas, mas acessível apenas a poucos. Fomos treinados a assim exercer nossa profissão.
Aprendemos as doenças e os remédios que as curam. Somos capazes de receitar um medicamento para quase todas as doenças. Sabemos indicar os exames necessários para o diagnóstico. Assim o fazemos pois recebemos de nossos professores, que aprenderam com os seus, que também ouviram de seus mestres o raciocínio médico que prevalece até hoje. Grosseiramente, o jeito de exercer a medicina, ancorado na busca dos sinais e sintomas, elaboração de hipótese diagnóstica baseada nos conhecimentos fisiopatológicos, emprego de exames complementares para confirmar a suspeita, uso de medicamentos ou terapias complementares, não sofreu mudanças significativas nas últimas décadas.
Apesar do discurso da determinação social e biológica das doenças, prevalece a segunda na base das práticas médicas atuais. Carecemos de ferramentas capazes de alterar os determinantes sociais das doenças. A indústria que lucra com o consumo de medicamentos e exames agradece.
A forma pela qual tentamos produzir saúde neste começo de século XXI não responde às demandas atuais. A evolução da prática médica não acompanhou satisfatoriamente as transformações sociais das últimas décadas.
Às mulheres que nos procuram com dores osteomusculares oferecemos soluções biologizadas. Essas pacientes estão “dizendo” que não podem viver do modo que vivem. As dores teimosas, refratárias, recidivantes, são como um apelo por mudança. Um grito. Infelizmente, a maioria de nós, médicos, não tivemos os ouvidos treinados para ouvir esse tipo de súplica. Desprezamos aquilo que não somos capazes de resolver. Não sabemos como mudar-lhes a jornada de trabalho, como adaptar-lhes os modos de produção, como devolver-lhes a esperança e a alegria de ser mulher. Preferimos não ouvi-las e continuamos a tratá-las biologicamente para que continuem a viver as vidas que não lhes agradam. Da mesma forma que médicos eram usados para manter presos mais tempo vivos durante as sessões de tortura e interrogatórios, agora prolongamos a “sobrevida” dessas operárias tão necessárias à sociedade ocidental consumista. Analgésicos, anti-inflamatórios, antidepressivos, fisioterapias têm fracassado amiúde. Ainda assim, insistimos com eles, acreditando nas promessas dos mais recentemente desenvolvidos, pois não sabemos como fazer diferente.
Ao invés de trocarmos os radicais das moléculas, as posologias, as embalagens, os apelidos, poderíamos mudar de rumo. Iniciar uma nova revolução no jeito de praticar a arte hipócrita de Hipócrates. Cavar espaço nos currículos das escolas médicas para pesquisas, reflexões e ações destinadas a balançar os determinantes sociais das doenças. Enxergar os perigos das reservas de mercado, das defesas dos atos médicos, da deificação da medicina baseada em evidências produzidas com o viés do capitalismo. Investir nas ações intersetoriais, na produção de saúde fora das arcaicas unidades de saúde, arquitetonicamente a serviço das consultas individuais, na produção de saúde através da mudança do modo de produzir riqueza, na inversão da hegemonia tecnológica em detrimento da humanística.
O crescimento do número de hospitais, pronto-socorros, médicos têm impacto dúbio na melhoria da saúde da nossa população, apesar do incremento do consumo de tecnologia médica. Este consumo parece não ter relação direta com a saúde e felicidade das pessoas.
Ouvi de uma participante de um grupo terapêutico a respeito do fato de nós médicos não aprendermos na faculdade sobre o uso de plantas e chás no tratamento de doentes: “é lógico que o senhor não iria aprender pois a quem isso interessaria ? Vocês têm que receitar remédios de farmácia”.
Rubens Bedrikow
Campinas, 31 de janeiro de 2006.
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