Atenção primária em saúde: uma postura ético-político-clínica em favor do cidadão
A Atenção Primária em Saúde (APS) constitui-se na principal porta de entrada de vários sistemas de saúde do mundo. Trata-se do primeiro nível de contato dos indivíduos com esses sistemas que se valem de unidades de saúde localizadas o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham. Espera-se da APS o seguimento longitudinal, continuado, dos indivíduos e famílias, a resolução de grande parte das demandas e a coordenação do cuidado nos diferentes níveis de atenção, garantindo a integralidade do mesmo.
O contexto sócio-político e histórico que originou políticas públicas e modelos de atenção centrados na APS explica porque a produção de saúde nesse nível representa uma postura ético-político-clínica voltada ao cidadão, e não simplesmente uma forma de aumentar a eficiência dos sistemas de saúde, principalmente no Brasil.
Um dos marcos desse movimento de reorganização dos modelos de atenção à saúde com ênfase na APS foi a conferência organizada pela Organização Mundial da Saúde na cidade de Alma-Ata, no Casaquistão, em 1978. Nesse momento, o desafio, comum à maior parte dos países ocidentais, era superar o modelo centrado na assistência hospitalar, no médico e no consumo de medicamentos e equipamentos, e, sobretudo, incapaz de melhorar os níveis de saúde ou possibilitar o acesso da maior parte da população aos serviços e tecnologias. Assim, para alcançar “saúde para todos no ano 2000”, o caminho escolhido foi o fortalecimento da APS. Tendo como base o conceito de cuidados primários em saúde, vários países reorganizaram seus sistemas a partir da APS, enfatizando-se a prevenção, a promoção, a participação comunitária e o conceito de que o processo saúde-doença depende de fatores biopsicossociais.
A amplitude do legado da Conferência de Alma-Ata relaciona-se, pelo menos em parte, ao significado que tinha a União Soviética na década de 1970. Ao contrário do modelo econômico norte-americano, centrado no capitalismo, no individualismo e na lei do mercado, o socialismo soviético representava a possibilidade da distribuição justa de riquezas e a valorização e participação dos trabalhadores e do povo em geral nas decisões sobre como organizar a sociedade. A própria origem do modelo soviético, com ampla participação do povo na revolução de 1917, colaborava para o imaginário desse modo de agir, democrático e com respeito à vontade do povo. Esse era o “recado”, ou melhor, a mensagem que vinha daquele regime. Portanto, a escolha de uma cidade do regime soviético para sediar tão importante conferência condizia com a concepção de modelos centrados nas pessoas, atribuindo real valor às suas opiniões, falas, em prol de um bem comum, mais justo e equânime. Em outras palavras, levar a “Saúde” o mais próximo possível do local onde as pessoas vivem e trabalham não seria apenas para descentralizar e aumentar a eficiência dos serviços, mas também, e principalmente, para dar voz aos cidadãos, para ouvi-los melhor e mais. Uma escolha política. A proposta de Alma-Ata fez sentido para várias nações que lutavam pela democratização, como o Brasil.
No caso brasileiro, as recomendações de Alma-Ata entraram em sintonia com princípios defendidos pelo movimento da Reforma Sanitária, notadamente a universalidade e gratuidade do acesso e a participação popular. Movimentos populares de saúde, principalmente nas áreas periféricas de grandes centros urbanos do país, tiveram influência decisiva para que a saúde passasse a ser um direito de cidadania e um dever do Estado e para que a participação da comunidade se tornasse uma das diretrizes organizativas do Sistema Único de Saúde (SUS), conforme consta no artigo 198 da Constituição. Essa nova política pública que, em teoria, valoriza as opiniões e desejos dos cidadãos e pacientes nos encontros clínicos e gerenciais, foi uma conquista política da luta pela redemocratização do país.
Crucial para reorientar o modelo assistencial, a Saúde da Família (ESF) é considerada a estratégia estruturante principal da APS no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, a ESF opera com equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde, responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em um território delimitado. Espera-se com isso que os profissionais de saúde criem vínculos relativamente sólidos com os moradores das áreas a eles adscritas, o que colaboraria para se obter melhores resultados no controle de doenças e na produção de saúde. Contudo, ainda que certamente benéfico, o vínculo estabelecido não garante o respeito aos desejos, interesses e saberes dos pacientes. Corre-se o risco de apenas transportar a biomedicina para mais perto do local onde vivem e trabalham as pessoas, ignorando o protagonismo destas nas propostas e decisões clínicas, em nome de um saber científico quase sempre restrito aos profissionais de saúde. Ao invés de avançar no sentido da inclusão da cidadania nas questões clínicas e gerenciais, caminhou-se, em grande medida, rumo à descentralização e fortalecimento da biomedicina, agora mais próxima das famílias. Nem mesmo o incentivo para o exercício de uma clínica centrada na pessoa, em particular e quase que exclusivamente na ESF, equilibrou suficientemente o jogo de forças entre a “Saúde” prioritariamente biomédica e o protagonismo consciente e real dos indivíduos e famílias.
Os mecanismos de controle social - conselhos locais, distritais, municipais e as conferências de saúde - são ferramentas disponíveis para que se construa um sistema de saúde realmente centrado nos usuários, a favor destes. É de olho no tipo de clínica praticada que os membros desses conselhos e os participantes das conferências devem exercer o papel que lhes foi confiado. É insuficiente dizer que a APS é a porta de entrada e ordenadora do acesso universal e igualitário às ações e serviços de saúde. É preciso esclarecer que ações de saúde, que tipo de relações desejamos que se dêem nos encontros clínicos no nível primário, a fim de prevenir a mera capilarização de um modelo centrado na biomedicina, com elevado consumo de exames, procedimentos, medicamentos, com claro interesse de indústrias ligadas à Saúde.
Espera-se, dos profissionais que atuam na APS, uma postura ético-político-clínica de valorização das falas dos pacientes e dos cidadãos em geral, tanto nos encontros clínicos como gerenciais. Tal valorização significa mais do que apenas escutá-los. Corresponderia à capacidade de efetivamente considerar uma mudança no exercício da clínica e da gestão diante dos desejos, interesse e saberes de seus interlocutores, considerando o significado ético-político da própria razão de ser da APS. Se não for assim, o fortalecimento da APS não passará da descentralização e multiplicação do modelo biomédico.
Rubens Bedrikow
Campinas, janeiro 2015.
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